Cento e vinte e cinco anos depois de sua publicação na Gazeta de Notícias, A cartomante, um dos mais conhecidos contos de Machado de Assis, me ajuda a pensar o difícil vínculo que liga, mas também afasta o escritor de seus escritos.
A estrutura triangular do relato reproduz o impasse — ele também de três pontas — que aprisiona o escritor enquanto escreve. Triângulo que tem seus vértices no próprio autor, no texto e em um terceiro, que entre eles se interpõe.
É conhecida a história do amor secreto entre Camilo e Rita, nas barbas de um silencioso Vilela. O casal teme ser desmascarado. Aflita, Rita visita uma cartomante que, depois de ler as cartas, a tranqüiliza.
Ela não teme, apenas, que o marido, Vilela, descubra sua traição. Receia, também, que o amante Camilo, sob a pressão do segredo, se afaste. A cartomante a acalma, nada de mal acontecerá. Rita relata seu desafogo a Camilo que, racional e cético, se põe a rir. Enquanto isso, Vilela se conserva em absoluto silêncio, como se as duas outras pontas do triângulo não lhe dissessem respeito.
Machado isola seus personagens em uma espécie de enigma. Afasta-os das contingências externas e os conserva, intactos, no mundo da invenção. “Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura e nenhuma explicação das origens”, escreve. Inscreve-os no universo arbitrário da literatura, sem passado (sem “origens”) e sem futuro. Três pessoas aprisionadas em uma ação gratuita, que se sustenta unicamente por si mesma.
“Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade”, Machado prossegue. O pacto se solda. Quando Camilo faz aniversário, Vilela lhe traz de presente uma rica bengala. Rita, “apenas um cartão, com um vulgar cumprimento a lápis”. Camilo despreza a bengala, mas não consegue arrancar os olhos do bilhetinho. “Palavras vulgares, mas há vulgaridades sublimes”, Machado diz.
Potência das palavras — mais do que qualquer objeto elegante, são elas que magnetizam as atenções. Força que se evidencia não só no cartão de Rita, mas, logo depois, em uma carta anônima que o mesmo Camilo recebe. O autor secreto o acusa de “imoral e pérfido”. Palavras doces (de Rita), ou palavras duras (do escriba misterioso): sempre as palavras a atordoar.
É das palavras, portanto, e de sua potência — e não de um triângulo amoroso banal, ou de uma crença ingênua nas artes divinatórias — que o relato de Machado de Assis trata. Narrativa, também, sobre o poder da leitura — mais potente que qualquer outro. Narrativa a respeito daquilo que se quebra, quando alguém se põe a escrever.
Assustado com as ameaças anônimas, Camilo se retrai e pouco aparece. Vilela reclama de suas ausências, ele as atribui a “uma paixão frívola de rapaz”. Poupa as palavras, para nelas não se enroscar. Cheia de dúvidas, Rita procura a cartomante. Busca alguém capaz de ler aquilo que, sozinha, não pode ler. A cartomante nada mais é que uma leitora. Seus poderes vêm não só das palavras que lê, mas das palavras que diz.
Desconfiando de Vilela, Rita leva os sobrescritos da carta anônima para comparar com os seus. Também ela, imitando a cartomante, se torna uma leitora, de cujas habilidades, ou incompetência, depende o próprio destino.
No dia seguinte (novas palavras), Camilo recebe uma carta de Vilela. “Vem já, já, à nossa casa, preciso falar-te sem demora.” Novas palavras, que o convocam para a audição. O que o bilhete significa? — pergunta-se Camilo, investido, agora, do papel de leitor. Esforça-se para ler, repete as palavras terríveis (“Vem já, já…”), mas as palavras lhe escapam.
Camilo é o escritor, que confia em seu poder de distinguir e manobrar as palavras; o homem “dono de si” que, em contraste com a sonhadora Rita, para quem o devaneio é tudo, pensa que as palavras são qualquer coisa. Ocorre que todo escritor é, antes de tudo, um leitor; só gera novas palavras quem consegue dominá-las.
Desassossegado, Camilo pega um tílburi e vai à casa de Vilela. Quer defrontar palavra contra palavra, tirar as palavras a limpo. Comporta-se como o escritor que, aflito, persegue o texto impecável e a palavra perfeita. E que acredita em seu poder de conseguir isso.
Mas que nada… No caminho, as dúvidas (a voz de Vilela: “Vem já, já…”) o atormentam. Ruas à frente, uma carroça tomba e bloqueia o caminho. Camilo se dá conta, então, de que está diante da casa da cartomante. A voz secreta da pitonisa — expressa em um par de janelas fechadas — o chama. A idéia de ouvir a cartomante, “muito longe, com asas cinzentas”, aparece, desaparece, reaparece. Ele vacila.
Quando dá por si, já entrou. A cartomante pega as cartas, embaralha, lê. “As cartas dizem-me…”. Dizem que Camilo deve agir com cautela, mas que perigo algum o ameaça. Nada aconteceria, “ele, o terceiro, ignorava tudo”.
Embriagado pelas palavras, Camilo (como o escritor, fascinado com o que escreveu) segue seu caminho. Chega à casa de Vilela, encontra o silêncio. Vilela aparece, Camilo se desculpa pela demora. Vilela silencia — as palavras já não lhe servem de nada. Conduz o visitante até a sala. Vem o golpe: Rita está morta, ensangüentada sobre o canapé. Camilo nem tem tempo de sofrer: Vilela pega o revólver e, com dois tiros, sem precisar de uma só palavra, o mata.
Retorno à literatura, que o triângulo de Machado sintetiza. Camilo ocupa o lugar da realidade: convenções sociais, regras naturais, saber racional, bom senso. Rita, o da fantasia: sonhos, crendices, arroubos, superstições. Tanto a realidade, como a fantasia, expressam-se em palavras. Sem elas, não existem.
A literatura, porém, não está nem na realidade (no realismo), nem na fantasia (na imaginação). Terceira ponta afiada, ela está entre os dois, ali onde Vilela, com seu revólver, se perfila. As palavras — enxutas, brutais, comprimidas em um bilhete — anunciaram um corte. Não, não estou dizendo que o escritor deva ser um assassino. Seria horrível, mas ainda assim seria simples demais.
Ainda que Machado trabalhe com a metáfora da morte, a ruptura que Vilela impõe a Rita e Camilo é de outra ordem: diz respeito à invenção. Ali onde as palavras se arrastam, ora empenhadas em sincronizar com a realidade, ora lutando para desmenti-la, Vilela impõe um golpe seco, brutal. Abismo em que a literatura, enfim, se faz.