Cordilheira

Autor explica como se deu a construção do romance que integra o projeto Amores expressos
Daniel Galera, autor de “Cordilheira”
01/04/2009

“Eu queria mesmo ter filhos aos cinqüenta ou sessenta. Até lá a medicina já vai permitir isso.” A guria que me disse isso era brasileira e tinha vinte e poucos anos. Era uma tarde de abril de 2007 em Buenos Aires, numa calçada da Avenida Corrientes. Como participante do projeto Amores Expressos, eu estava passando um mês na capital argentina para pesquisar um novo romance. A frase que escutei aquela tarde — como tantas outras coisas que escutei, vi e experimentei naquela cidade — acabou entrando em Cordilheira.

Mas as idéias por trás desse romance nasceram antes, ainda em 2006, pouco depois do lançamento de Mãos de cavalo. Primeiro foi a leitura de O negro dorso do tempo, de Javier Marías. Numa época em que eu andava refletindo sobre o significado de coisas como autoria, identidade, exposição da privacidade e os limites entre biografia e ficção na literatura, o romance de Marías forneceu a faísca inicial para meu projeto seguinte. Decidi que queria escrever um romance ao redor de uma intriga literária em que noções de realidade e ficção se borrassem. Tratar das formas como a literatura pode interferir na vida de autores e leitores, dos mistérios e enganos que cercam a vida literária. Imaginei uma jovem autora às voltas com um grupo de escritores excêntricos que se interessa nem tanto por ela, e sim por um de seus personagens.

Uma autora, e não um autor. Naqueles dias eu já tinha decidido que meu próximo livro seria protagonizado por uma mulher. Além do mero desejo de variar meu tema, estava convicto de que as mulheres contemporâneas, com suas vidas atribuladas por novos objetivos e valores, davam assunto bem mais complexo e intrigante do que os estagnados narradores masculinos. Um conflito em particular me interessou: o choque do instinto materno com os ideais de independência, realização afetiva e sucesso profissional que fazem muitas jovens mulheres adiarem cada vez mais a realização do desejo de ser mãe.

Assim nasceu Anita van der Goltz Vianna (sobrenome emprestado de uma amiga minha, sempre adorei e queria colocar numa personagem). O convite para ir a Buenos Aires surgiu quando ainda elaborava esses temas e personagens na imaginação. Calculei que a cidade daria um cenário ideal para a história. Eu queria um grande centro urbano, e tanto melhor que fosse palco de uma tradição literária rica e fascinante em que os livros são levados a sério, às vezes até demais.

Fôlego feminino
Não foi a primeira vez que narrei de um ponto de vista feminino, mas uma coisa é se colocar no lugar de uma mulher pela duração de um conto, outra é adotá-la pelas duzentas páginas de um romance. Escolhi a terceira pessoa, mas achei o resultado artificial. Só encontrei o tom desejado quando cedi à primeira pessoa. Concluí que, em termos literários, não há diferenças fundamentais entre a voz masculina e a feminina. Quis, inclusive, fazer frente a uma certa voz feminina homogênea e enfadonha que assombra muitos romances narrados por mulheres, não importa o gênero do autor. Boa parte das mulheres que conheço não se expressa numa derivação da lengalenga delicada e metafísica da prosa de Clarice Lispector.

Levei isso em conta ao pensar na linguagem de Anita, que é uma mulher cínica, detalhista, carente de familiares e de um homem que lhe dê segurança, tão obcecada em ser mãe quanto desvairada em relação a todo o resto. O livro abre e encerra com rápidas visões masculinas dessa autora que não quer escrever, que quer ser apenas, nas palavras dela, a mulher de um homem. O resto é narrado do ponto de vista dela. O livro esconde o que ela esconde de si mesma, é confuso a respeito do que a confunde, reflete sobre o que ela reflete.

A primeira versão ficou pronta em seis meses. Após a leitura de amigos e editores, fiz duas outras versões. Até o texto definitivo, foi pouco mais de um ano de trabalho. A primeira coisa que escrevi foi o capítulo final do livro de Anita, que é lido num evento de lançamento em Buenos Aires. Ali estaria a âncora da protagonista, que ironicamente é uma personagem criada por ela própria. Holden (que não é referência a Holden Caulfield; quem fizer questão de uma referência pode escolher entre o Juiz Holden de Cormac McCarthy ou o ator William Holden) se aproxima de Anita apenas por causa dessa personagem, Magnólia. Os limites entre autores e personagens, entre realidade e ficção, vão se confundindo e refazendo. Os protagonistas se exploram e representam papéis. Se isso pode ser chamado de uma história de amor, cabe ao leitor decidir.

O título vem de uma frase citada no livro e extraída das memórias de um colonizador da Terra do Fogo. Li essas memórias num bar de Buenos Aires, como Anita. A cordilheira é símbolo da proteção, da domesticidade e do afeto que Anita procura e que o mundo, de acordo com ela, parece disposto a lhe negar. Me comovi com a mesma frase que ela e demorei um pouco para me dar conta, na ocasião, de que estava lendo aquilo pelos olhos da minha personagem.

NOTA
A coluna Making of é publicada originalmente pelo jornal Pernambuco, de Recife (PE). A republicação no Rascunho é uma parceria entre os dois veículos.

Daniel Galera
Rascunho