O escriba de opulentos sonhos

“Carta aos loucos”, de Carlos Nejar, dialoga com a tradição por meio da vida de um povo sofrido e lutador
Carlos Nejar, autor de “Carta aos loucos”
01/04/2009

O livro Cartas aos loucos, de Carlos Nejar, é um conjunto de narrativas em torno de um vilarejo plantado num imaginário mítico, que reúne seres, sonhos, desejos, amor, delírios, esperança, vida, morte e loucura. “Assombro era uma comunidade que as cartas geográficas destacavam e esqueciam, pois as gerações se envolvem mais nas paixões do que na história.” Este não-lugar, essa ilha da utopia perdida num espaço imaginário cheio de paixão e sobressaltos, discute o tempo e seus efeitos, seu inexorável movimento rumo à ruptura e às ruínas. O tempo histórico, que consome os dias, tem como adversário o tempo mítico do imaginário popular ou o da tradição literária, que vai reunindo narrativas sobre narrativas, como Sherazade, em As mil e uma noites, narrava para seduzir o sultão e adiar a morte. Neste sentido, o tempo é inimigo e aliado. Ele é destruição que avança, ele é milagre que ressuscita Lázaros. E tem, portanto, duas faces.

Roland Barthes, em Mitologias, define o mito como uma fala, um sistema de comunicação, uma mensagem. E, ainda, especifica: “O mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere…” A tensão que se estabelece no sistema de significação que compõe o texto, como um todo, diz respeito a essa relação entre as duas faces inseparáveis do Tempo. Por um lado, situa-se como eixo o tempo cronológico, linear, inscrito na história da cidade e do mundo, que mistura memória de um passado coletivo ou individual, um presente narrativo dos dias que correm e uma perspectiva utópica de futuro. Por outro, e na contramão desta lógica, ou a contrapelo, como diria Walter Benjamim, encontra-se o tempo mítico, que composto por um sistema de crenças se desdobra na fala compulsiva de um narrador épico, ligado à tradição de um discurso contemporâneo e ao mesmo tempo milenar.

O livro é construído por fragmentos que se organizam, além de um epílogo, em treze capítulos. Cada um destes aglutina histórias e personagens cujas vidas são exemplares vivos ou fabulosos da multiplicidade de tipos humanos em sociedade ou mesmo de elementos naturais em suas mutações, capazes de, através da personificação, funcionarem como grandes alegorias. Lázaro, o rio que seca, desaparece e ressurge em abundâncias e enchentes, é um bom exemplo. O Oceano, um verdadeiro deus grego, também ocupa, em dado momento, a cena. Neste sentido, situa-se a própria Assombro, que ora é cidade, que ora é a mulher amada, que ora é sentimento das criaturas e do criador das histórias. Além de espaço físico e aglutinador, Assombro é mulher, é musa, que alimenta de vida, amor e imaginação o narrador dessas histórias, um poeta delirante e convicto do seu papel de escriba de opulentos sonhos. E assombro é, ainda, substantivo abstrato que surpreende os seres viventes desse lugar aparentemente despretensioso, mas grandioso pela abrangência de figuras e exemplares humanos que agrega. Com Assombro, povoado, com Assombro mulher, Israel Rolando, o escriba narrador, interage, integra-se, ama, inventa e reinventa a palavra e o milagre e assombro que é a vida. Buscar uma definição para Assombro é irrelevante. “O que importa é que tudo em nós permaneça vivo, miraculado diante da palavra e com ela ressuscite.”

Homenagem à tradição
É esse narrador que a tudo designa e, através disso, cria significações ou aproxima-as através do poder da Palavra que detém ou que, segundo acredita, foi a ele autorgado pelo destino. Alguns dos seres viventes dessa cidade surgem no romance sem se constituírem personagens propriamente ditos, são tipos que saem como entraram na ação, cumprem seu papel e se vão. Outros têm uma permanência garantida durante todo desenvolvimento da ação, e assumem, portanto, perfil próprio e maior importância. A maioria dessas figuras possui nomes ligados a personalidades clássicas. Surgem ou como personagens, ou tipos ou mesmo referências bibliográficas em citações de uma intertextualidade explícita. Isso soa com familiaridade aos ouvidos eruditos, mesmo quando a oralidade popular predomina. Lázaro, Parmênides, Deleuze, Napoleão, Mateus, Demétrio, Porfio, Maquiavel, Voltaire, Diógenes, Paul Valéry, Virgílio, Novalis, Lucas, Oceano, Kant, Homero, etc., são alguns dos inúmeros nomes que avançam em ações ou referências. Os nomes e os seres com eles designados muitas vezes são singelas homenagens à tradição. Circunscrevem-se num sistema de signos que se organiza dentro do texto ou se desorganiza no contexto do maravilhoso, inusitado ou louco, eixo importante predominante no modo como essa história se faz contar, se faz ouvir, se deixa ler.

Cada capítulo possui fragmentos, personagens ou tipos ligados a temas secundários, que servem de pretextos para reuni-los. Discute-se, em torno de uma temática central, questões como justiça, leis dos homens, da natureza e dos deuses, disputa de poder institucional, religião, amor, a palavra e outras artes e artifícios para se levar a vida e, se não for para vencer, pelo menos, para fazer frente à morte, que se esforça muito para reinar soberana. O tempo histórico é o grande aliado da morte e a tudo destrói, enquanto o tempo mítico é circular, opera o eterno retorno dentro da esfera de um imaginário capaz de operar milagres, de fazer renascer das cinzas sonhos e esperanças sepultados pelos dias. As imagens do círculo e da esfera são, exaustivamente, levantadas para afirmar essa perspectiva e, portanto, direcionar a leitura para esta guerra de titãs: a vida e a morte. Contra a destruição do tempo inscreve-se o retorno ao primitivo atemporal e regenerador dos sonhos, da loucura, tendo o Amor e a Palavra como grandes articuladores do milagre da vida. Esse sistema de comunicação, essa mensagem é dirigida “aos que descobriram uma razão no desconhecido”, aos que conseguem ainda ver com novos olhos e perceber os sentidos e aparente absurdo da fala dos rebeldes, dos sonhos, dos loucos. Inútil também rotular a narrativa como fantástica, ou maravilhosa, ou poética. A rigor, do ponto de vista das teorias, paradoxalmente, Carta aos loucos é tudo isso, e mais alguma coisa, contida no realismo que inegável dialoga com todo o resto, através dos aspectos mais banais e corriqueiro da vida de um povo sofrido e lutador, herói mítico de um tempo imemorial e ao mesmo tempo atual, contemporâneo. Afinal, fica a sabedoria popular como tributo: “tudo se mostra perturbador ou fabuloso, quando se aprende a ver”.

Carta aos loucos
Carlos Nejar
Novo Século
255 págs.
Vilma Costa

É professora de literatura.

Rascunho