🔓 Isto é um título

Os inusitados e diversos caminhos para se chegar a um título que faça sentido ao livro, à trama e aos leitores
Ilustração: FP Rodrigues
13/03/2022

Quando se escreve um livro, escolher seu título é uma das últimas e mais difíceis coisas. Ou uma das primeiras e mais fáceis. “Vareia”, como diria o sábio filósofo Didi Mocó.

Há diversos estilos de títulos. Eu sempre achei que os longos eram curiosos e elegantes. As ideias e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy não é um charme? Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios já não traz em si paixão e tragédia?

Seguindo esta linha, meu primeiro livro chamou-se “Galantes memórias e admiráveis aventuras do virtuoso conselheiro Gomes, o Chalaça”. Minha intenção era sugerir que o livro tinha certo estilo refinado (“galantes memórias”), mas também ação (“admiráveis aventuras”) e humor (“virtuoso” x “chalaça”, que é sinônimo de piada). Talvez não tenha dado muito certo. As pessoas acabaram chamando o livro apenas de Chalaça. E o pior é que, certa vez, numa palestra, esqueci o título completo de meu próprio livro.

Acho que títulos óbvios são muito bons. Você consegue pensar em algo melhor que “Metamorfose” para o Metamorfose? Eu não. “Acordei como um inseto repugnante” ou “Afaste de mim esse inseticida!” não têm a mesma força.

Um dos primeiros livros que eu mesmo comprei, comprei por seu título. Era O livro vermelho dos pensamentos de Millôr. Poxa, ele era vermelho e trazia os pensamentos de um cara chamado Millôr. Não havia como ser mais honesto. Mesmo sem conhecer Millôr e Mao, levei o livro para casa e gostei um bocado.

Honestidade é uma qualidade importante para um título. O assassinato no expresso Oriente é um exemplo perfeito. Ele conta que acontecerá um crime num trem que vai para uma terra longínqua e misteriosa. Como não ler?

Ideias para adiar o fim do mundo também entra na minha categoria de honestíssimos. Ele traz esperança, mas não tanta. Afinal, são apenas “ideias” e vão somente “adiar” o fim do mundo.

Gosto muito dos que têm duas coisas unidas por um “e”. Por exemplo: Guerra e paz, Pride and prejudice (Orgulho e preconceito), O velho e o mar, Crime e castigo. Geralmente esses títulos possuem uma bela sonoridade e têm um fantástico poder de síntese, já sugerindo o grande embate do livro.

Simpatizo também com os que trazem apenas o nome de seu personagem principal. Estes títulos estão a dizer que há alguém tão interessante naquelas páginas que nada mais é necessário ou possível além de seu nome. E geralmente esse nome já fala muito. São os casos de Pedro Páramo, Felpo Filva, Dom Casmurro, Ricardo III e Lolita (haverá nome mais sexy e infantil?). Meu próximo livro (na verdade, uma HQ) seguirá este padrão. Seu título será Super-Zé. Não consegui pensar em nenhum outro.

Alguns títulos envelhecem e confundem. Quando criança, eu pensava que Narizinho era uma rainha que tinha conquistado vários reinos, e por isso o livro sobre ela chamava-se Reinações de Narizinho. Eu nem imaginava que “reinações” quisesse dizer folia, farra, estripulia. Se soubesse, teria lido o livro bem mais cedo.

Por conta do medo desse envelhecimento, troquei o título de O pentelho príncipe” para O pequeno plebeu. A palavra “pentelho” já não é mais tão usada para indicar alguém impertinente, sendo muito mais lembrada como o desagradável pelo pubiano que se prende em nossos dentes em momentos mais impróprios. Aliás, este foi um livro que nasceu do título. O clássico O pequeno príncipe sempre me pareceu sentimental demais, até meio chato, e certo dia cometi o ato falho de chamá-lo de “O pentelho príncipe”. Gostei tanto que decidi escrever um livro para o título.

Hoje em dia, tempo de moralidades exaltadas, há que se tomar certos cuidados com títulos. Por exemplo, estou escrevendo um livro que pretendo chamar de “Além do cu do mundo”. O título é sonoro e honesto (fala de uma bandeira de Raposo Tavares que foi para além do Brasil conhecido), mas acho difícil que alguma escola adote este romance histórico. Em vez de ficar na prateleira de “romances brasileiros”, é mais provável que ele acabe na prateleira de “erotismo”, onde talvez fique ao lado de Os cus de Judas e O amor é fodido. Enquanto isso, Cinquenta tons de cinza pode ser encontrado na prateleira de “decoração”.

José Roberto Torero

Escritor e roteirista, Torero nasceu em Santos (SP), em 1963. É autor de O chalaça (prêmio Jabuti na categoria romance em 1995) e Os vermes, entre outros. Também é autor de livros de não ficção e de literatura infantojuvenil. Ao lado de Paulo Halm, assinou o roteiro do longa-metragem Pequeno dicionário amoroso.

Rascunho