Eu tinha um medo danado de ler Elizabeth Bishop. Acho que foi porque, anos atrás, estive com uma antologia dela debaixo do braço, para cima e para baixo, sem conseguir entrar no clima direito. Então eu desisti ou abandonei, nem sei se são a mesma coisa. E pensei que fosse poesia demais para o meu caminhãozinho. Menti.
Cultivei esse medinho durante longos anos. Foi quando assisti ao filme Flores raras, de Bruno Barreto, que consegui me reaproximar da poeta, interessada pela trajetória dela e por suas passagens pelo Brasil. Nem assim voltei a lê-la. Queria apenas conhecer brevemente sua biografia, suas tragédias pessoais, seus êxitos quase impossÃveis, para então voltar ao silêncio que os livros dela pareciam conter, ali na minha estante. Bishop era uma espécie de enigma entre as lombadas grossas expostas na sala.
Até que, um mês ou dois atrás, numa incursão voraz por uma livraria em São Paulo, uma capa me chamou a atenção. Era Questões de viagem, na coleção de bolso da Companhia das Letras, com tradução de ninguém menos que Paulo Henriques Britto. BilÃngue, para completar.
Mala de mão
Entre outros livros, quase nenhum de poesia, veio o volume, que resolvi encarar antes que um novo ar de incompreensão passasse pela janela aberta do apê na Pamplona. Cheguei em BH decidida a corrigir minha rota, furando fila, atravessando tudo. Era quase uma dÃvida. Uma dúvida, também. Nova tentativa.
Passei alguns dias me surpreendendo com os poemas, em sua maioria caudalosos, que me levaram a outras paragens, em outros tempos, além de uma espécie de conto que o volume enfeixa meio desajeitadamente. Vacas, mugidos, pessoas estranhas, numa cultura alheia, com referências em montanhas que estou certa de nunca ter visto. Uma guerra, um conflito que aparece forte entre os temas dos textos, espécie de saudação ou despedida que sei que tenho limites para visualizar. Até que, sem demora, comecei a anotar e a rabiscar. Sinal de que a poesia começa a incomodar devidamente, começa a dar sustos, causar encantamentos, espetar.
Melhor de dois
É preciso confessar que a brincadeira da leitura bilÃngue leva mais tempo, mas dá mais emoção. Não deve ser fácil para nenhum(a) tradutor(a) desapegar-se das duas lÃnguas que estão em jogo e inventar uma outra. Em muitos incontáveis momentos, deixei que meus olhos corressem as linhas de duas páginas paralelas, conferindo versos e palavras, lá e cá, inglês, português, rindo entredentes com as reescritas do poeta brasileiro, que não raras vezes pôs no lugar dos versos de Bishop uma composição toda nossa, toda dele, um tanto dela, com toda a licença. E eu ainda me atrevia, à s vezes, a pensar que assim faria ou não faria, em especial quando algum efeito original era perdido ou abandonado em nossa lÃngua. Paciência. O que não pode uma leitora?
Lá pelas páginas finais, sublinhei estes versos, de um poema de 1950 intitulado Visitas a st. Elizabeths:
Este é o soldado voltando das batalhas.
Estes são os anos e as portas e as muralhas
que encerram um garoto que apalpa o soalho
para ver se o mundo é redondo ou achatado.
Rabisquei, marquei, destaquei. Se ela falava de guerra, eu me identificava na pandemia, imaginando nesse menino o meu sobrinho de 3 anos, que mal pode imaginar o que o mundo seja, fora da sala da casa dos avós. O garoto apalpa o piso frio, põe os ouvidos, senta-se à janela, com as perninhas atravessando as grades verticais, vê as casas ao redor, chora quando abrem a porta, não sabe que na natureza há muito mais que cães, gatos, castanheiras e telefones celulares. Em todo caso, vamos preparando-o para uma Terra redonda, distante dos negacionistas e da brutalidade do que preparam para o futuro dos garotinhos reféns. Bishop falava de um outro mundo, tão este. Finalmente, a dÃvida está paga.