🔓 Eu era um lobisomem juvenil

Dona Almerinda, benzedeira do bairro, curava qualquer mal, até mesmo o medo do neto em se transformar em um monstro horrendo no meio da noite
Ilustração: Oliver Quinto
30/01/2022

Embora eu tenha nascido no dia 23 de dezembro, minha família comemorava meus aniversários na Véspera do Natal. Eu era um menino muito quieto e, naquele tempo, imagino que não viam necessidade de mostrar-me certidão de nascimento ou prestar-me satisfações. Então, eu acreditava mesmo que nascera no dia 24. Na virada da noite, costumava ganhar um único presente, mas não me importava muito com isso. O que me preocupava de verdade, talvez sugestionado pelas leituras das revistinhas do Capitão Mistério, a arte com as cores sempre tão vivas, era se eu poderia transformar-me em lobisomem enquanto dormia.

Segundo a lenda, a maldição recaía em quem fosse filho primogênito e, por azar, tivesse nascido na véspera da celebração natalina. Não era uma lenda tão clara e específica. Em algumas versões, o primogênito precisava ser o sétimo filho de seis irmãs. Eu era o segundo filho de apenas três, mas o mais velho dos homens. A janela do nosso quarto não tinha cortina e, às vezes, era possível enxergar a lua cheia por trás dos galhos do abacateiro. A dúvida me tirava o sono. Eu me imaginava acordando no meio de uma rua erma, após o nascer do Sol, e descobrindo, ao meu lado, um corpo dilacerado e ensanguentado. Minhas roupas estariam em farrapos e eu não guardaria nenhuma lembrança do que houvera acontecido.

Minha avó Almerinda, que sabia dos segredos do Além, me ensinou um truque para espantar o medo do monstro em mim: pegar um pequeno pedaço de papel e, com minhas próprias mãos, fazer dele uma cruz, jogando-a debaixo da cama ou colocando-a sob o travesseiro antes de me deitar.

A modesta casa onde vivíamos tinha sempre a porta destrancada durante o dia, mas nós quase não recebíamos visitas. A não ser quando um bebê apresentava uma indisposição qualquer, fosse perda de apetite ou excesso de sono, quando o desânimo se abatia sobre Seu Gaguinho, Dona Gilda sofria uma queda inesperada no chão da cozinha ou meu amigo Carlos tinha uma prova importante e lhe faltava confiança para a aprovação. Era quando procuravam minha avó para que os rezasse.

No nosso quintal, havia espada de São Jorge e pé de arruda. Eu gostava de assistir minha avó murmurar sua reza enquanto passava os galhinhos de arruda ou batia levemente a espada de São Jorge nos corpos dos então necessitados. O murmúrio parecia um canto distante, a expressão de um passado esquecido em que ser humano e Natureza se encontravam fielmente irmanados.

Minha avó Almerinda tinha longos cabelos lisos em que fios gris se alternavam com o mais puro carvão. A pele era um pergaminho a preencher os ossos zigomáticos. Já os olhos, eram pequenos, escuros e cândidos. Não era alta em relação aos outros adultos a me rodear. Sua grandeza se manifestava no acolhimento com que me abraçava ao voltar da escola e no prazer que me dava o seu cafuné.

Ao final do rito, a pessoa devidamente benzida suspirava e dizia sentir o corpo muito mais leve. Minha avó quebrava os galhinhos de arruda ou a espada de São Jorge em vários pedaços e os jogava no lixo. Eu gostava de ver o bem que ela fazia às outras pessoas. Dona Almerinda não aceitava nenhum pagamento, mas seus amigos mais próximos compravam carteiras de cigarros da marca que ela fumava e a presenteavam. Aliás, não me recordo de ela ter feito um único pedido a ninguém em toda a sua vida.

Nessa época, eu ignorava os problemas vividos por minha avó antes de eu vir ao mundo e conhecê-la. Não sabia que parte da sua placidez se devia aos remédios receitados por um psiquiatra nas consultas em que minha tia a levava uma vez por mês. Para mim, bastava estar ao seu lado enquanto assistia aos Três Patetas ou a um filme da Sessão da Tarde na TV. Ao contrário do neto, ela nunca ria das piadas engraçadas ou se comovia com os dramas das mocinhas e heróis dos filmes. Eu não me importava. Nós nos aceitávamos exatamente como éramos. E juntos, estávamos bem.

Com o passar dos anos, eu não senti mais medo de pegar no sono e me transformar num monstro horrível. Minha avó Almerinda e eu não passávamos mais tanto tempo na companhia um do outro. Eu trabalhava durante o dia, cursava faculdade à noite e nos finais de semana saía para me divertir com os amigos. Apesar de tudo, dava-me segurança saber da sua remota presença, suas rezas.

Com o passar dos anos, a saúde dela foi se deteriorando gradualmente. E de nada adiantou as cruzinhas de papel que depositei abaixo de sua cama.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

Rascunho