🔓 Nem toda brasileira é bunda

Comprar um monte de roupa, buscar aprovação de homem hétero, dias ensolarados no litoral: quem precisa disso quando se tem muita literatura?
Ilustração: Thiago Lucas
06/01/2022

Munida de forças retiradas do além, saí de casa para uma das atividades que mais odeio na vida: comprar roupa. Era isso ou ingressar no nudismo.

Como não sou nem rica e nem fashion, compro roupas em grandes magazines mesmo.

Na fila do provador, assisto à mesma cena repetida a cada casal que aparece. Um dos membros do casal entra, coloca a roupa e em seguida aparece para pedir a opinião do outro. Sempre com aquela mesma cara de transgressão, fazendo sinais a distância, prestando atenção no cubículo onde deixou seus pertences, vendo se o segurança não vai encher o saco, etc. Acho engraçado.

Lembro de quantas vezes já fui essa pessoa que pede opinião de namorado e me envergonho um pouco. Hoje não quero mais a opinião de absolutamente ninguém, muito menos de homem hétero, cruz credo. Levei quase 50 anos de existência para chegar à óbvia conclusão de que quem tem que gostar ou não de uma roupa é quem vai usá-la. Não sou muito esperta.

Meu cérebro começa a cantarolar Pagu, da Rita Lee e da Zélia Duncan. Adoro essa música.

Mexo, remexo na inquisição. Só quem já morreu na fogueira. Sabe o que é ser carvão. Eu sou pau pra toda obra. Lálálá (esqueci). Nem toda brasileira é bunda. Meu peito não é de silicone. Sou mais macho que muito homem…

Feliz de que todas as peças que selecionei serviram, escolho uma de cada tipo e saio.

Sigo em direção ao caixa prestando atenção nos modelos e pensando em quais eu conseguiria fazer na máquina de costura. Quem estou querendo enganar? Sigo em direção ao caixa roubando mentalmente designs e ideias para tentar copiar depois.

Saudades da minha mãe e do nosso sempre compartilhado fracasso como consumidoras. Uma vez fomos ao shopping determinadas a comprar quilos e quilos de roupas e mais roupas. Compramos um par de Havaianas, demos nossa empreitada por encerrada e tomamos doze cafés, quatro águas e dois sorvetes. Conversamos sobre um monte de assuntos, foi ótimo. Não resolveu nossos problemas de vestuário, mas foi ótimo.

Exausta, tenho vontade de me jogar em um café, como fazíamos, mas ainda não tiro a máscara dentro de shopping.

Eu precisava de, bem, de basicamente tudo. Acabei conseguindo comprar uma calça, uma bermuda e um maiô. Para os meus parâmetros, isso foi um absoluto sucesso.

Segundo a previsão meteorológica, choverá durante os três dias em que estarei no litoral. Ainda assim, comprei também um protetor solar.

O meu otimismo pelo que resta de férias é palpável mas, infelizmente, delirante.

Ainda bem que o Kindle está cheio de delícias. Na fila de leitura, A universidade desconhecida do Roberto Bolaño, Não é um rio da Selva Almada, Copo vazio da Natalia Timerman, O quarto de Giovanni do James Baldwin e Ladrão de cadáveres da Patrícia Melo. Além disso, peguei uma boa promoção do Kindle Unlimited e espero encontrar algumas descobertas.

Pensando bem, estou quase torcendo para chover.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho