A pesquisadora Teresa Montero se dedica à vida e à obra de Clarice Lispector há mais de 30 anos. Nesse período, escreveu e organizou inúmeros trabalhos sobre a autora de A paixão segundo G. H. Agora ela diz estar encerrando sua carreira como pesquisadora de Clarice com a biografia À procura da própria coisa, que a Rocco acaba de lançar.
Trata-se de uma versão bastante ampliada do livro que Teresa publicou há mais de 20 anos com o título de Eu sou uma pergunta. Ao ser questionada sobre o que há de novo neste trabalho, a biógrafa lista vários temas e documentos que foram acrescentados nesta nova versão, como entrevistas que a autora deu para a imprensa brasileira até então pouco conhecidas do público.
Diferentemente do que acontece com a maior parte das biografias, À procura da própria coisa faz caminho inverso ao apresentar as origens da personagem não no início do livro, mas em capítulos subsequentes.
“A primeira parte é mais concisa, para um leitor típico desse tempo de internet, de leituras velozes. Uma espécie de minibiografia”, comenta a biógrafa. Ela também opina sobre a origem do “fenômeno Clarice” nas redes sociais, um reflexo do sucesso editorial da autora. “O texto de Clarice chega mais perto do leitor do que a gente imagina.”
Teresa também fala sobre a biografia escrita pelo americano Benjamin Moser, que recolocou em evidência o nome de Clarice no exterior, mas também gerou algumas polêmicas em relação aos métodos de trabalho do biógrafo.
À procura da própria coisa sai mais de 20 anos após você ter publicado a primeira versão da biografia de Clarice Lispector, com outro título, muito mais enigmático, de Eu sou uma pergunta. O que o leitor pode esperar de novo nesta versão que é publicada agora?
É um livro novo. Ele inclui Eu sou uma pergunta. Uma biografia de Clarice Lispector (1999) na terceira parte — que ganha um capítulo novo, “Recife, 1976”, onde reconstituo a viagem de Clarice ao Recife, fundamental na feitura de A hora da estrela; cujas imagens inéditas aparecem no Caderno de Fotos; e acrescento diários de bordo onde explico o processo da pesquisa de Eu sou uma pergunta. O livro é uma homenagem também aos pesquisadores, professores e arquivos públicos. As outras três partes reúnem material inédito, do início ao fim. Da entrevista concedida a Araken Távora para “Os Mágicos” (TVE, 1976 — atual TV Brasil) em dezembro de 1976. Uma raridade guardada por 45 anos no Arquivo Nacional, onde se vê Clarice em seu apartamento no Leme ao lado do amado cão Ulisses. (O documentário Clarice Lispector — A descoberta do mundo, da pernambucana Taciana Oliveira, irá exibi-lo pioneiramente no dia 14 de dezembro no 16º Festival de Cinema Latino Americano em SP, no Centro Cultural SP. ) Passa pelas fichas da Polícia Política em dois momentos da história do Brasil: no governo Dutra e na ditadura militar. Na Segunda Parte, atualiza a árvore genealógica, a culinária em família; em os laços com o pai reconstitui os caminhos dos Lispector e parentes na Praça Onze, coração da comunidade judaica do Rio (tema nunca pesquisado). Depoimentos inéditos de amigos e parentes sobre diferentes temas que ajudam a entender quem foi a mulher e a escritora. Na vida literária encontrei novos documentos que propiciam outras reflexões sobre A paixão segundo G. H. E Água viva. Encontrei dois capítulos de G.H. na Revista Senhor, em 1962. Isso me permitiu especular sobre o processo de criação da obra em um diálogo com a participação de Marly de Oliveira e Paulo Mendes Campos, e com interpretações de Fauzi Arap sobre uma nova terapia com o LSD feita com o dr. Murilo Pereira Gomes. As críticas de Pagu em A Tribuna de Santos no início dos anos 1960, como ela já via Clarice como uma grande escritora. E a apresenta, também, como comentadora de livros (faceta desconhecida por nós pesquisadores), sobre um romance de Lawrence e um livro de contos do Graham Greene. Textos que publico também pela primeira vez. No capítulo sobre as relações de Água viva e a gravura A Águia, de Maria Bonomi, também se propõe novas reflexões sobre essa obra. Mostro um parecer que indica que se Objeto gritante (segunda versão de Água viva) não tivesse sido recusado pelo INL (Instituto Nacional do Livro), hoje teríamos outra obra e não Água viva. A publicação da única tela de Clarice que permanecia inédita Matéria da coisa (acervo de Bonomi), também é um presente desse capítulo. O olhar da América Latina sobre a sua obra (pouquíssimo estudado) é ampliado com as novas pesquisas. A importância da Geração Mito e a desconstrução da ideia de “Clarice como uma bruxa”. Suas viagens à Colômbia e à Argentina são importantíssimas para entendermos o contexto político e cultural daquele momento e sua conexão com o movimento de mulheres na França. Esse tema acabou sendo abordado ao longo dos anos como algo folclórico, com a história de uma escritora ir para um Congresso de Bruxaria. É muito mais do que isso. Uma reflexão sobre as imagens de Clarice pelos fotojornalistas também é uma proposta nova de reflexão. Idem, ao analisar um Caderno de Telefones (inédito, sob a guarda da sobrinha-neta Nicole Algranti), onde se reconstitui o cotidiano da escritora no Leme e também do Rio daquela época. E indico inéditos de Clarice na imprensa na primeira parte do livro em Clarice Lispector colaboradora. (Ela colaborou em O Cruzeiro, fato desconhecido). É muita coisa para descrever. Quem ler com atenção vai entender que a “arqueóloga” não perdeu o fôlego.
E por que a mudança de título?
Com a inserção das novas partes, criou-se um novo livro e quando me deparei com a frase de Clarice sobre o título que daria a sua vida foi inevitável. E é perfeito. Ninguém melhor do que ela para dar o título.
Seu livro começa mostrando algumas das raras entrevistas de Clarice à imprensa. E mais pra frente ele mostra as origens da autora. Como pensou a estrutura do livro?
O material encontrado e os temas que mais me intrigaram nesses 31 anos foram determinantes. A primeira parte é mais concisa, para um leitor típico desse tempo de internet, de leituras velozes. Uma espécie de minibiografia. A segunda parte é mais extensa, mais reflexiva, propõe novos olhares sobre algumas obras e sobre seu itinerário biográfico. O objetivo é sempre estimular outros pesquisadores a aprofundarem os temas que ampliei. Eu compartilhei muitas pistas com esse objetivo. Nosso trabalho é coletivo. Não me agrada a ideia de ser uma pesquisadora e biógrafa detentora de toda “a verdade” do itinerário biográfico de Clarice Lispector. Tudo o que fazemos é o resultado de muitas mãos. Por isso, fiz questão de inserir na abertura do livro a lista dos depoimentos, dos arquivos consultados. E eu estou encerrando com esse livro minha fase de pesquisadora da vida e obra de Clarice Lispector. A quarta parte é a geografia afetiva do Nordeste. Eu já tinha feito isso no Rio com o passeio O Rio de Clarice, criado em 2008, e que foi publicado pela Autêntica em 2018. O leitor pode percorrer Recife e viajar nos caminhos clariceanos de ontem e de hoje. Ver as marcas de seu legado na cidade.
Clarice teve uma vida bastante agitada, com muitas mudanças de rota, viajou e morou em diversas parte do mundo. Acha que isso foi determinante para a literatura dela? Esse traço biográfico está de alguma maneira refletido em seus textos?
O exílio voluntário, já que ela se casou com um diplomata, desenvolveu a experiência do desenraizamento. Creio que isso pode ter aprofundado uma tendência mais reflexiva, uma rica vida interior que ela já tinha. Ela se queixava muito nas cartas de não poder conversar, compartilhar suas experiências com as irmãs. Não dá para afirmar que foi determinante para a literatura, mas uma trajetória nômade deixa marcas profundas no ser humano, ainda mais ela sendo filha de imigrantes judeus.
A literatura de Clarice Lispector passa longe de uma escrita “popular” ou de fácil compreensão. Mesmo assim, por que ela se tonou quase um fenômeno pop?
São muitos fatores. Um projeto editorial que investe na circulação de sua obra. Eu publiquei Eu sou uma pergunta (1999) no momento em que a Rocco comprou os direitos da obra de Clarice Lispector em 1997. Assinei o contrato em 1998. Acompanhei tudo, participei 20 anos com outros pesquisadores desse projeto editorial. Das reedições da obra a editora começou a publicar os inéditos: correspondências (organizei várias obras), as antologias (idem), contos, crônicas, páginas femininas. Somado a isso há uma rede de pesquisadores, de professores que estudam a obra. Isso circula na graduação, na pós-graduação. Fora as adaptações para o teatro, algumas para o cinema (os premiados A hora da estrela, de Suzana Amaral, e O Corpo, de José Antonio Garcia, por exemplo). E várias exposições, da célebre do CCBB-RJ em 1992, da Casa de Cultura Laura Alvim-RJ em 1987, a do Museu da Língua Portuguesa em SP. E a internet potencializou o que já estava pavimentado. O texto de Clarice chega mais perto do leitor do que a gente imagina. Há níveis de compreensão dependendo do texto. E o público vai aos poucos compreendendo essa nova forma narrativa.
Tanto a obra quanto a figura de Clarice conservam uma aura enigmática. Ela era uma pessoa intransponível, até mesmo fria?
Não é o que dizem os amigos. Ela era carinhosa e preocupada com os amigos, solidária. Mas também vivia em outra sintonia. Ela estava “à procura da própria coisa”. Como se vive em um mundo onde tudo te leva para o lado oposto? Ela foi fiel a ela mesma, ela não fazia pose de enigmática, misteriosa. Ela era assim. Para alguns, podia parecer uma pessoa estranha, esquisita. Quem se permitiu ser amigo de Clarice viu a amiga especial que ela era. Basta ler os depoimentos dos amigos no capítulo “Os laços de amizade” para entender isso.
A biografia de Clarice escrita pelo americano Benjamin Moser foi bastante festejada (e recebeu algumas críticas também). Qual a diferença do seu relato para o de Moser?
Ele constrói uma narrativa conectada com as origens judaicas de Clarice Lispector, o itinerário biográfico e literário é interpretado a partir desse viés, paralelamente aborda o contexto político e cultural onde a obra da escritora está inserida. Mesmo sendo um livro pensado para um leitor estrangeiro, conseguiu ter uma recepção festejada no Brasil, como você define, porque a narrativa amarra de uma forma interessante o itinerário. As críticas decorrem da metodologia do biógrafo, particularmente no episódio sobre a doença de Marian Lispector. Seus argumentos geram dúvidas e ele optou por deixar em uma nota de rodapé o único documento que poderia respaldar a tese que levantou sobre este episódio trágico: o depoimento da pesquisadora canadense Claire Varin. Explico isso em À procura da própria coisa na atualização da árvore genealógica. A pesquisadora, autora de Línguas de fogo (tese de doutorado) é quem descobriu este fato a partir do depoimento que Olga Borelli lhe concedeu. O biógrafo não revelou o nome da amiga de Clarice que contou o fato para Varin. Isso gerou dúvidas sobre essa tese de Benjamin. Só fui saber do depoimento de Varin à Folha de S.Paulo (em 2011) recentemente, onde ela então revela o nome de Borelli. À procura da própria coisa propõe uma nova metodologia para abordar um conjunto de fontes primárias e referências bibliográficas que passaram despercebidas pelos pesquisadores. As quatro partes mostram as diferentes possibilidades (inclusive narrativas) de se ler a biografia de Clarice. Por isso, é um novo livro. A biografia ajuda-nos a refletir sobre sua formação como cidadã e escritora, e tenta entender como ela se tornou Clarice Lispector. Ela busca as fontes primárias como já fizera em Eu sou uma pergunta. A minha proposta é sempre ir na origem do documento. É escavar e encontrar o “fóssil”, é ele que nos aproxima de uma “possível” verdade sobre o fato. Por isso, Eu sou uma pergunta se tornou indispensável para as outras biografias e similares, mesmo que nem sempre isso seja reconhecido por alguns. Não tenho a pretensão de ter escrito uma “biografia definitiva”. Biografia é um campo infinito. Cada biógrafo escolhe o seu método e suas fontes. Cada uma tem a sua importância no itinerário de Clarice Lispector.
Como biógrafa, o que mais lhe atrai na obra e na trajetória pessoal de Clarice?
A inteireza de seu caráter. Clarice não se vendeu ao sistema. “Não fez concessões”, para sua obra ser publicada ou se tornar mais aceita, como ela mesma declarou na entrevista à TV Cultura. Foi fundo nos seus mergulhos, na essência. Ela não usou o seu prestígio como escritora para obter qualquer tipo de privilégio. Sobre a obra de Clarice Lispector, como escreveu seu amigo, o poeta e psicanalista Hélio Pellegrino, “ela gemeu e chorou, neste vale de lágrimas, para legar-nos um testemunho perene sobre o susto, a dor — e a glória — da condição humana. (..) Clarice foi um ser assinalado, convocado a revelar o mistério que arde no coração das pessoas — e das coisas.(…) o campo gravitacional criado por Clarice ultrapassa a dimensão literária, para tornar-se, também, depoimento filosófico, místico — e visionário.” (p.195 — “Clarice: a paixão do real” in: A burrice do demônio. Rocco, 1988).