🔓 Então, não é Natal

De sua “torre de vigia”, o cronista observa a vida nos prédios vizinhos, e então lhe surgem lembranças do Natal, época que suscita sentimentos ambíguos
Ilustração: Oliver Quinto
28/11/2021

Da minha torre de vigia, acostumei-me a contemplar o entardecer. Mal se encerra o expediente remoto (ponto eletrônico finalizado, reuniões e atividades futuras anotadas, telefone e notebook desconectados) e eu corro para a sacada. A fuga se faz cada vez mais necessária. Ver e absorver o entardecer.

À esquerda, logo depois da curva e do supermercado, a linha do horizonte se encolhe entre edifícios em contraluz. Os carros seguem os pontilhados brancos das lâmpadas LED e avançam no cortejo de retorno aos lares, das novas lidas, pulsações. Ao fundo, bem ao fundo, a palidez do azul pode aparecer cortada por uma lâmina tênue e vermelha. Duas ou três nuvens-pão talvez plainem soberanas. Não se percebe mais vestígio do Sol. Outras estrelas se acendem por trás das vidraças. São luzes artificiais que denunciam sopros de vida e pouco a pouco exibem seu brilho.

Da minha torre de vigia, vejo três prédios residenciais: um amarelo, outro verde e um azul. No terceiro andar do amarelo, mora a professora aposentada. Não a conheço, mas já a vi dançar um tango sozinha em sua sala. Talvez, embora ostente óculos e adore ler, nem professora seja, e as pastas na estante do quarto guardem coleções de moedas.

Dois andares acima, no prédio verde, Neusinha e Zezinho costumam iniciar os preparativos para o jantar. Embora pareçam sexagenários comportados, ousaram na decoração do apartamento e suprimiram a parede que separava sala e cozinha. O que me permite saber que gostam de vinhos, cerveja e preferem um pequeno lanche à janta. Uma vez por semana pedem pizza. Zezinho tem um quepe de marinheiro. Neusinha, uma echarpe com as cores do arco-íris.

No mesmo edifício, um senhor barrigudo gosta de falar ao celular defronte à janela. Ele está sempre sem camisa e seu ventilador de teto nunca para de girar. Com a distância e o ruído dos automóveis passando, não se consegue ouvir sua voz nem o que diz, mas a impressão é a de que está constantemente brigando com alguém. De cara fechada, esmurra o ar com a mão livre.

Mas não é só. Tem uma menina de uns cinco anos que mora com o pai no sétimo andar do edifício amarelo. Ela muda o penteado de cabelo com frequência e adora cantar as músicas do Johnny Hooker nas noites de sexta. Há uma pessoa no primeiro andar do prédio azul que a única parte do corpo vista por mim foi um dos seus pés. Um pouco acima, dois rapazes eram observados sentados em lados opostos de uma mesa, as caras enfiadas em computadores, sem interagir um com o outro. Se um deles se levanta é para fechar as cortinas e isolá-los dos olhos do mundo.

Quando a noite cai por completo, os apartamentos vão se iluminando aqui e ali e, a partir desses pequenos flashes que se alternam, se acendem e se apagam, eu recupero meu eixo. Então, pode acontecer do ruído da música urbana se contaminar com uma ladainha mecânica, uma canção exaustivamente repetida por uma voz feminina, entrecortada de sinos, e eu decida que é hora de entrar e fechar as portas.

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Os pisca-pisca nas vitrines dos corredores dos grandes centros comerciais são algo a se comemorar. Quase dois anos depois, enfim vacinados, conquistamos um pálido retorno. Caminho pelo longo piso encerado, vejo os seguranças e seus rádios comunicadores nas esquinas, as filas para os elevadores, a decoração planejada para que nos sintamos num ambiente distinto e agradável, embora impessoal, e me enterneço por respirar, ainda que filtrado pelo tecido da máscara, o frio ar que sai de suas máquinas. Uma lojista monta um presépio em meio a anúncios de promoções de roupas e calçados. Em sua cabeça, um gorro vermelho brilhante, um pompom que lhe acaricia uma das orelhas.

Estou incerto do presente que procuro. Algumas das lojas que gostava foram fechadas. Em tapumes coloridos, promessas de novos estabelecimentos que não se realizaram no decorrer de um ano. Chego perto da livraria e ouço sair de suas portas ecos de uma canção de infância. Caminho pelo piso encerado e sinto que, para além da alegria dos visitantes, uma leve sensação de desespero ronda o lugar. Já na livraria, distingo a música natalina. Os versos são de Assis Valente.

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Conheço muitos cristãos que odeiam o Natal. Dizem que é uma data desvirtuada de seu sentido primitivo, a celebração do nascimento do Salvador, em razão de um hediondo comércio. E pergunto-me se, quando foram crianças, pensavam do mesmo modo. Se não se alegravam ao ganhar um presente de Papai Noel. Ou se, muito precocemente, já associavam o Bom Velhinho à sedução do império capitalista.

Eu, que fui leitor de Carl Barks e menino pobre, amava o Natal. É curioso o papel colonizador concedido ao Tio Patinhas nas revistas Disney por parte de certa intelectualidade. Certamente ignoram que a inspiração de Barks para a personagem veio do senhor Scrooge, figura central de Um conto de Natal, de Charles Dickens. Assim como ignoram a severa crítica de Barks aos excessos do consumismo e à desigualdade social em várias de suas histórias.

Muitas crianças que viviam no Guará de minha infância, uma das cidades-satélite do Distrito Federal, não possuíam tantos brinquedos em suas casas nem costumavam ganhar presentes sem um motivo importante que o justificasse. Recordo da felicidade que senti aos cinco anos, quando eu e minha irmã, um ano mais velha, ganhamos uma bicicleta verde. Minha mãe e minha tia tomaram o cuidado de esperar a meia-noite, colocá-la junto à árvore de Natal, cobri-la com um lençol branco e deixar a janela, que dava para o quintal, aberta. Pulamos de intensa alegria. Nossos vizinhos e amigos pularam também. Até que um garoto apontou para o céu estrelado por trás da janela e gritou: “Olha, Papai Noel!”. Todos corremos alvoroçados para a rua. E houve quem jurasse ter visto seu trenó voando. Naquele tempo, eu não desconfiava que minha tia pagaria essa nossa incomensurável alegria com um crediário em dez prestações.

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Da minha torre de vigia, contemplo novamente o entardecer. O senhor barrigudo que falava ao celular na janela hoje não apareceu. Noto que dia após dia há um número cada vez maior de janelas imersas numa inexpugnável escuridão. Penso nos mais de 600 mil mortos da Covid-19. É quase o mesmo número da população de Cuiabá. Imagine você uma catástrofe em que Cuiabá fosse varrida do mapa. Seiscentos mil mortos. Supera a população das cidades de Porto Velho, Macapá, Florianópolis, Boa Vista, Rio Branco, Vitória e Palmas. Seiscentos mil. Como se uma cidade dessas, uma cidade onde você mora, de uma hora para outra deixasse de existir. Parece vago? Em meio aos mortos havia crianças, homens velhos, mulheres jovens, estudantes, gente rica, gente pobre, assassinos, ladrões, noivas, esportistas, cegos, apostadores da bolsa de valores, feirantes, pintores e engraxates. Entre esses e outros tantos, havia pessoas iguais a mim e a você. Seiscentos mil. Para nenhum deles haverá uma bicicleta verde. Para nenhum deles chegará um novo Natal.

Lima Trindade

Nasceu em Brasília (DF), em 1966. É mestre em Letras pela Universidade Federal da Bahia. Publicou o romance As margens do paraíso (2019), a novelaO retrato ou um pouco de Henry James não faz mal a ninguém (2014) e o livro de contos Corações blues e serpentinas (2007), entre outros.

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