🔓 Cine Dimeticona

Algumas histórias sobre a matriarca Vigna, que aprendeu desde muito cedo que a idade lhe garantia um certo salvo-conduto para dizer o que bem entendesse
Ilustração: FP Rodrigues
11/11/2021

Ir ao cinema é, sem sombra de dúvida, o que eu mais gosto de fazer fora de casa. Muitos partilham desse gosto. Poucos, provavelmente, compartilham a associação muito específica e particular que faço de Dimeticona com cinema. A Dimeticona é mais ou menos da mesma linhagem do Luftal.

A história é da minha avó. Eu era muito pequena e precisei reconstruir na memória posteriormente, já que na época eu sequer sabia que isso era um remédio.

Ela tinha me levado para ir ver As aventuras de Bernardo e Bianca, dessa parte me lembro com clareza. Era, portanto, 1977 ou 1978 e eu tinha uns 6 ou 7 anos de idade; ela devia ter algo próximo dos 60.

Bem à nossa frente, um sujeito inquieto. Levantou, sentou, tossiu, conversou com as pessoas ao lado, saiu para comprar pipoca, voltou, fez barulho ao tomar o final do refrigerante. Só não mexeu no celular e fez selfies porque isso na época ainda estava no plano da ficção científica, se tanto.

Minha avó estava irritadíssima com os barulhos excessivos e desnecessários, como toda mulher Vigna. Abriu a bolsa e retirou um frasco do remédio. Virou-se para o cidadão e entregou para ele, dizendo “toma, meu filho, porque só falta você peidar”.

Minha avó aprendeu desde muito cedo que a idade lhe garantia um certo salvo-conduto para dizer o que bem entendesse. Foi piorando conforme a idade avançava e ficava mais aparente e, portanto, inquestionável.

Anos depois, ela e eu na fila de um mercado. Ela comprando uísque, vício que a acompanhou até quase o dia da sua morte, com 100 anos de idade. Eu, comprando café, vício que ainda tenho e que, espero, me acompanhe por tempo similar. À nossa frente uma senhora de talvez uns 60, 70 no máximo. Minha avó tinha, naquele momento, 92.

A senhorinha à nossa frente contava as moedas vagarosamente, conversava com a caixa, lembrava de alguma coisa, se perdia, voltava a contagem do zero, olhava para o céu, falava do tempo…

Minha avó, com a voz empostada, reclamou “olha, Carolina, se algum dia eu ficar uma velha assim, você por favor acaba com a minha miséria”. A senhora, naturalmente, se virou para comprar a briga, a falta de respeito com os idosos, etc. Deu de cara com a minha avó. As duas se calaram e a fila andou.

São muitas as histórias da impaciência da minha avó. Impaciência com o mundo, de uma forma geral.

O pior é que um dia, em um exercício literário, escrevi uma história dela na primeira pessoa. Fui acusada de ser intolerante com os idosos. Primeiro tentei explicar. Depois deixei pra lá porque meu interlocutor obviamente não entendeu o conceito de literatura.

As mulheres Vigna não são exatamente famosas por sua paciência.

Eu não, eu sou uma flor.

 

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho