Soneto da bunda branca, de Marcus Freitas

A sofisticada lírica do autor mineiro contribui com a longuíssima tradição da multifacetada poesia erótica através do pastiche, humor e sátira
Ilustração: Carolina Vigna
01/10/2021

Ah, uma bunda branca me emociona!
O traço, a curva — desenho preciso —
matemático muro, alvo e liso,
estandarte e brasão da bela dona.

A bunda-ícone, bunda de neve,
onde a luz da seda sinta-se sombra,
onde o corpo role pela alfombra
e viva de prazer, que a vida é breve.

Oh, praça onde danço em apoteose!
Que geômetra te sonhou na bruma?
Estou tonto e quero mais, mais uma dose

dessa bunda-mulher que me desanca.
Se digo anca, a arma se apruma:
quem diz anca, diz bunda, bunda branca.

Antes de sair no livro No verso dessa canoa, em 2005, na seção Sonetos eróticos, o poema de Marcus Freitas foi publicado, em edições caseiras e tiragens pequenas, em 1993, 1997 e 2001. Com a companhia de outros sonetos e de outras seções (Redondilhas roubadas, Barca da dúvida, Canto do tordo), os versos agora se assentam em versão, até o momento, derradeira. O périplo do poema se assemelha, em certo sentido, ao próprio périplo de elaborar um soneto e, no caso, de elaborar um desenho de signo tão apreciado por poetas: a bunda. (Disso sabe, entre outros, Drummond, que, em seu O amor natural, lança mão da palavra por dezenas de vezes, chegando ao corolário no hilário “A bunda é a bunda,/ redunda”, de A bunda, que engraçada.)

A inusual abertura com a interjeição “Ah” já introduz o dionisíaco clima de alegria e prazer que vai atravessar o poema, clima a que a disciplina apolínea há de tentar dar rumo e régua. Se a bunda branca, força-fetiche, “emociona!”, mais se exige o poeta e do poeta na busca do “desenho preciso” da forma-bunda, santo e pornoerótico graal. Com todas as rimas consoantes, para que flua sem tranca o ritmo, o diálogo entre o engenhoso poema e sua glútea musa se estrutura a um tempo em explícitos e sutis pares, a começar do sintagma que, desde o título, abre e fecha o soneto: em “bunda branca”, o bilabial fonema /b/ explode duas vezes nas duas palavras paroxítonas e ambas nasais. A citada interjeição “Ah” encontra eco na parceira “Oh”, da terceira estrofe. Os versos 2, 3 e 4 trazem, cada um, dois pares: “traço curva”, “desenho preciso”, “matemático muro”, “alvo liso”, “estandarte brasão”, “bela dona”. No verso 5, a bunda branca se transmuta em “bunda-ícone” e “bunda de neve”. Os versos 6 e 7 se iniciam com “onde” e “onde”. No verso 8, em cada hemistíquio comparecem um termo “viva” e um termo “vida”, parônimos. Esse jogo de pares se disfarça, no verso 11, em “estou tonto”, “quero mais” e “mais mais”. A última estrofe exubera o recurso: “bunda-mulher”, “arma apruma”, “desanca anca anca”, “digo diz diz”, “bunda bunda branca”.

Todo esse movimento de repetição parece querer simular algo do próprio movimento das bandas da bunda, como visualizou o mesmo Drummond no mesmo poema: “A bunda são duas luas gêmeas/ em rotundo meneio”. Tal efeito se encena e se insinua ondulante no delicioso Ipanema — Voyeur, de Cairo Trindade: “de segunda a segunda/ gingando gingando/ pra lá y pra cá/ em tangas ou sungas/ vagam vaga-/ bundas bundas”. O curto poema de Cairo se concentra em poucos sons-fonemas e se constrói em ritmo que mimetiza o caminhar de alguém, supostamente observado por outrem, na Ipanema de Vinicius e Tom, e da menina “que vem e que passa/ num doce balanço/ a caminho do mar”. Também, dizem, e o poema de Marcus afirma isso categoricamente em seu verso 9, Oscar Niemeyer teria homenageado “a bunda” com aquele baita e curvilíneo “M” em plena Praça da Apoteose, no Sambódromo carioca: “Oh, praça onde danço em apoteose!”.

É longa, longuíssima a tradição da multifacetada poesia erótica, e permanece rija em tempos de hoje, no Brasil e alhures. O poeta, também professor de Literatura da UFMG e romancista, explica no Prólogo de No verso dessa canoa, que os poemas da seção Sonetos eróticos são “releituras das formas tradicionais através do recurso ao pastiche, ao humor e à sátira”, e cita Aretino, Bocage, Verlaine, Vinicius de Moraes, Glauco Mattoso, Marcelo Dolabela, entre outros sonetistas. Especificamente, quanto a poetas com sonetos pornoeróticos, vale a leitura dos fesceninos Escarnho (2009), de Paulo Franchetti, e de Cantáridas (1933), dos capixabas Paulo Vellozo, Guilherme e Jayme dos Santos Neves, e de muitos que estão no “sonetário erótico” de Glauco (http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/erotico.htm), caso das poetas Olga Savary e Renata Pallottini. Para conhecer obras fundamentais da poesia pornoerótica brasileira, são incontornáveis as antologias de Alexei Bueno (2004) e Eliane Robert Moraes (2015).

Para o mexicano Octavio Paz, erotismo é poética corporal, e poesia é erótica verbal. Nas suas palavras, no clássico A dupla chama: Amor e erotismo: “O erotismo não é mera sexualidade animal — é cerimônia, representação, é sexualidade transfigurada: é metáfora (…) Também no poema — cristalização verbal — a linguagem se desvia de seu fim natural: a comunicação”. Por isso, o poema erótico necessariamente não excita, porque é lúdico, é cena, é firula, é linguagem. No poema em pauta, a musa-bunda se torna o claro objeto de desejo, desde o verso de abertura, quando o poeta se emociona, diante, aparentemente, de sua visão ou de sua lembrança. De imediato, à emoção se soma a norma, haja vista as manobras que todo soneto requer.

A primeira estrofe enfatiza exatamente o caráter visual do objeto, que mistura e aciona imagens de concretude (curva, muro) e simbólicas (estandarte, brasão). Na segunda, a delicadeza reina: o verso seis, com sua sequência aliterativa — “a luZ da Seda Sinta-Se Sombra” —, se reforça com o termo clássico (“alfombra”, para “tapete”, “relva”) e repercute ainda na alusão ao tradicional bordão que diz ser longa a arte e breve a vida. O terceto se inicia citando, sutil, a famosa praça da Sapucaí carioca; já o genial verso 10 — “Que geômetra te sonhou na bruma?” — ecoa pergunta semelhante feita em The Tyger, de William Blake, na tradução sublime de Augusto de Campos: “Tygre! Tygre! Brilho, brasa/ que a furna noturna abrasa,/ que olho ou mão armaria/ tua feroz symmetrya?”. O olhar do matemático, do geômetra cede, no entanto, ao deslumbramento da “bunda-mulher”, que, a essa altura (“mais uma dose”), já “desanca”, vence o poeta. Eis que, contudo, a dupla chama se reacende, pois “a arma se apruma”, isto é, se aprumar é pôr-se em linha vertical, não resta dúvida de que tal arma é figuração do órgão masculino (cacete, relho, mastro, vergalho, pau, pica, vara são alguns dos nomes que se alternam entre os 14 poemas da seção).

Além do pênis-arma, também o soneto se apruma, não só por sua verticalidade, mas no sentido de “se vestir com elegância”, pela inequívoca metalinguagem que envolve todos os versos, e que o verso de ouro, perspicaz, arremata: “Quem diz anca, diz bunda, bunda branca”, em que o sintagma “diz anca” recupera e ressignifica o “desanca”; o “diz bunda” ressoa “disbunda [desbunda]”, ou seja, apesar de imenso o impacto da “bunda branca”, que o deslumbra e emociona, o poeta está atento aos traços e às curvas dos versos. (Não à toa escolheu como título do livro, No verso dessa canoa, um verso — do belíssimo poema Na beira do rio Providence — que remete ao ofício e à vida que nos leva feito um rio.) Se a vida é breve, leme (sic) do poema, digamos bunda, bundas, bundas brancas pretas amarelas, desbundemos, entre o desenho preciso do geômetra e a dose a mais da tonteira.

Marcus Freitas ensina poesia, seus modos e mundos, e faz poesia, confirmando um perfil comum em tempos de hoje: o poeta professor, o poeta profissional. Inventou, inclusive, uma forma poética, o pentâmetro oitavo, tomando “o limite dos 140 caracteres [do Twitter] como modo de composição, não como barreira (…) Tratava-se de seguir, no ambiente digital, o mesmo expediente de outras formas fixas, como por exemplo o soneto, em que a equação fechada desafia o escritor ao exercício contínuo para superar as balizas do gabarito”, diz o inventor. São pérolas como essa: “quando ela passou/ com os cabelos soltos/ pensamento torto/ me sobrevoou: a terra não gira/ os cabelos dela/ é que são manivela/ do astro à deriva”. No Soneto da bunda branca, erotismo, metapoesia e humor se dão as mãos, em elegante simetria: traços da sofisticada lírica do mineiro Marcus Freitas, cuja obra espera que a crítica perceba a “luz da seda” que ali se trama, deslumbra, tonteia e, superando a baliza, nos desbunda.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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