Midiosfera bolsonarista e dissonância cognitiva (2)

A teoria da dissonância cognitiva, elaborada pelo americano Leon Festinger nos anos 1950, ajuda a explicar o delírio coletivo do bolsolavismo
Bolsonaro nas manifestações de 7 de Setembro
01/10/2021

Guerra cultural e dissonância cognitiva
A midiosfera bolsonarista tem como missão promover o bolsolavismo, um poderoso sistema de crenças, dotado de coerência interna paranoica, tornando-o praticamente imune ao princípio de realidade. Esse efeito inesperado é possível porque a guerra cultural, como vimos na última coluna, alcançou novo patamar, convertendo-se literalmente numa forma de vida. Os últimos acontecimentos da conturbada vida nacional demonstram à exaustão as consequências graves desse momento preocupante da cena política, como começarei a discutir na próxima seção.

Mas, de imediato, como entender que um sistema de crenças tão alheio ao princípio de realidade possa produzir um tal nível de alienação e, sobretudo, tenha um tal impacto no dia a dia de milhões de pessoas, produzindo um engajamento existencial inédito na vida brasileira?

Arrisco uma hipótese: a dissonância cognitiva é o motor das massas digitais bolsonaristas.

Refiro-me ao conceito proposto por Leon Festinger em seu clássico A theory of dissonance cognitive (1957). Em alguma medida, nesse livro elaborou-se a articulação teórica para o estudo de caso apresentado pelo próprio Festinger, associado a Henry W. Riecken e Stanley Schachter, em When the propechy fails (1956). Fascinante relato de uma seita, “The Brotherhood of the Seven Rays”, que combinava crença em vida extraterrestre, discos voadores e apocalipse, e cujo pendor milenarista era preciso como um relógio suíço: no dia 21 de dezembro de 1954, um terrível dilúvio levaria ao fim do mundo. Contudo, os membros da “Brotherhood” não tinham com o que se preocupar, pois um disco voador viria salvá-los.

Ocorreu então uma decepção dupla, embora a não confirmação da segunda previsão não tenha deixado de ser um alívio: o disco voador nunca chegou, mas, ao menos, o mundo também não acabou! Ora, qual seria a reação dos membros da seita, uma vez que muitos venderam suas propriedades e inclusive terminaram casamentos, a fim de estarem livres para o encontro salvador com os extraterrestres? Eis que a teoria da dissonância cognitiva começou a ser esboçada, pois, por mais incrível que pareça, eles encontraram uma explicação alternativa: o dilúvio foi sustado precisamente porque os membros da seita, com sua fé e força de pensamento, terminaram por impedir o pior. Portanto, passaram a acreditar ainda mais em seu sistema de crenças. O princípio do livro é um retrato acabado do bolsonarismo:

Um homem convicto é difícil de ser mudado. Expresse seu desacordo e ele se afastará. Mostre fatos e estatísticas: ele questionará suas fontes. Apele à lógica e ele não entenderá sua abordagem.[1]

Ao teorizar o fenômeno, Festinger desenvolveu hipóteses que descrevem à perfeição a atitude mental dos fiéis apoiadores do presidente Bolsonaro:

1. A existência de dissonância, psicologicamente desconfortável, motivará o sujeito a tentar reduzir a dissonância, a fim de produzir harmonia.

2. Em presença da dissonância, além de buscar sua redução, o sujeito ativamente evitará situações e informação que poderiam aumentar a dissonância.[2]

Em livro recente e de grande interesse para essa discussão, Piero Leirner enumerou conceitos que esclarecem o alcance do caos cognitivo contemporâneo:

São muitas as palavras que povoam essa nossa guerra híbrida: golpe, crime, governo, exército, arma, rede, dissonância, cismogênese, cognição, truque, informação, criptografia, célula, terror, guerra psicológica de espectro total (GPET), velocidade, ciclo, observação, orientação, decisão, ação, OODA, ideologia, fake, cortina de fumaça, guerra absoluta, estratégia, tática, blitzkrieg, centro de gravidade, estação de repetição, radar, drone, estratégia da abordagem indireta, movimento de pinça, proxy war, para-raios, viés de confirmação, guerra neurocortical, Amazônia, domesticação, invasão, soberania, ataque, defesa, bomba semiótica, teatro de operações, segurança, infiltração, violência, limited hangout, escalada horizontal, dissuasão, dissonância cognitiva, feedback, desenvolvimento, firehose of falsehood, false flag, cabeça-de-ponte, hegemonia, consórcio, e, possivelmente, esqueci umas tantas e virão tantas outras.[3]

Vale dizer, a guerra cultural, uma das formas da guerra híbrida, produz deliberadamente um caos cognitivo, cuja desorientação somente se resolve pela adesão aos termos do sistema de crença proposto pela própria guerra cultural — e, aqui, a redundância é antes de tudo um método.

No universo das redes sociais, além de evitar informação que produza dissonância, as massas digitais buscam a confirmação de suas crenças no grande supermercado contemporâneo de fatos alternativos, notícias falsas e teorias insensatas, isto é, o YouTube, que se transformou numa máquina delirante, produtora sistemática de desinformação ao gosto do cliente.[4] O resultado é a criação de estruturas autocentradas e imunes a críticas, já que toda ressalva exterior somente confirma o acerto das premissas internas ao sistema de crenças. Não há aí uma descrição acabada da adesão cega ao bolsonarismo?

Terra em transe
Brasil: laboratório mundial de dissonância cognitiva: os acontecimentos relativos ao recentíssimo 7 de Setembro de 2020 são eloquentes e, estivesse Leon Festinger vivo, certamente escreveria um novo livro…

Acompanhemos uma cronologia elementar, que nem mesmo o mais ardoroso bolsolavista negaria.

Dia 6 de setembro, véspera do “grande dia”: a militância bolsonarista encontra-se num estado de excitação somente comparável à reta final da campanha presidencial em 2018. O segundo turno é aqui e agora — por assim dizer.

Dia 7 de Setembro: o volume e a voltagem das mensagens enviadas nos grupos bolsonaristas de WhatsApp desafiam qualquer capacidade de assimilação — até o sujeito antropófago oswaldiano pediria misericórdia.

(Participo, para efeito de pesquisa, de um grupo com 247 membros: entre o dia 7 e o dia 9 de setembro aproximadamente 3.500 mensagens foram transmitidas sem pausa.)

A retórica golpista do presidente, anunciada em Brasília, explodiu no comício da Avenida Paulista, incendiando seus apoiadores em todo o país. A ruptura institucional, sonhada pela militância bolsonarista, retornou ao horizonte político, após a escalada golpista de maio de 2020 (e que já analisei em texto anterior desta coluna).

Dia 8 de setembro: um número surpreendente de manifestantes permanece aquartelado em Brasília, à espera da decretação da Garantia da Lei e da Ordem (GLO), que, em seu delírio, equivale ao estado de sítio, o que daria materialidade à radicalidade discursiva do dia anterior. Vídeos circulam incessantemente nas redes sociais com a “celebração” de boslonaristas, comovidos às lágrimas com o estado de sítio que não foi decretado!

Dia 9 de setembro: ameaçado de impeachment, Bolsonaro volta atrás e assina uma constrangedora (para sua massa digital) “Declaração à Nação”: rima pobre que, nos dias seguintes, provocou um autêntico curto-circuito no sistema de crenças bolsolavista.

Como entender a distância entre a promessa autoritária e a realidade conciliatória?

Como dar conta do abismo entre a imagem do mito e a humilhante rendição (ainda que temporária)?

Como conciliar a promessa rendentora de apocalipse político (invasão do STF e do Congresso; a “terra prometida” do estado de sítio) e a mediocridade dos acordos com o Centrão?

Dissonância cognitiva a todo vapor: eis a única resposta disponível para compreender o delírio das massas digitais bolsonaristas.

Na próxima coluna, detalharei seu funcionamento.

Notas

[1] Leon Festinger, Henry W. Riecken e Stanley Schachter. When the Propechy Fails: A Social and Psychological Study of a Modern Group That Predicted the Destruction of the World. New York: Martino Publishing, 1964, p. 3.

[2] Leon Festinger. A Theory of Cognitive Dissonance. Stanford: Stanford University Press, 1962, p. 3, grifos meus.

[3] Piero Leirner. O Brasil no espectro de uma guerra híbrida: militares, operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo: Alameda, 2020, p. 21.

[4] A eleição norte-americana e, sobretudo, a ação golpista de Donald Trump, acenderam (outra vez!) uma luz vermelha sobre o papel das redes sociais na desestabilização das democracias. Ver o artigo de Gelo Gonzales, “Social media lessons from the 2020 US presidential elections”: http://bit.ly/3rWEgqR

 

João Cezar de Castro Rocha

É professor de Literatura Comparada da UERJ. Autor de Exercícios críticos: Leituras do contemporâneo e Crítica literária: em busca do tempo perdido?, entre outros.

Rascunho