A prosa como negação

Primeiro romance do poeta Fabrício Corsaletti trata de período sabático em Buenos Aires
Fabricio Corsaletti, autor de “Golpe de ar”
01/12/2009

Triste é a sina de quem nasce poeta em cidade pequena. Chega uma hora em que a alma já não cabe nas ruas empoeiradas de paralelepípedo e o sujeito tem que partir, levando sua Itabira no coração, mas deixando-a irremediavelmente para trás. A Itabira de Fabrício Corsaletti chama-se Santo Anastácio, tem hoje uns 20 mil habitantes, sequer enche um Maracanã, e, em 1978, ano em que Fabrício nasceu, sabe-se lá de quantas poucas mil pessoas era a cidade.

O poeta orgulha-se da cidade natal, incluindo na sua curta biografia ao final do livro o fato de ter composto o hino da cidade ao lado do pai, Paulinho Corsaletti. “Oh, Santo Anastácio/ Não consigo te esquecer/ Oh, Santo Anastácio/ Terra boa de viver”, diz o refrão do hino municipal.

Só que, em 1997, aos 19 anos, Fabrício inicia o processo de esquecimento do torrão natal ao se mudar para São Paulo, onde vai estudar na USP. Esquecimento e recriação. Feliz a sina de quem nasce poeta em cidade pequena, pois pode recriar sua Itabira em versos e dedicar-se criativamente à ficção do que deixou para trás. Alguns poetas passam o resto da vida empenhados em dar às memórias uma imagem poética, ou ficcional. Recriam assim um passado em que um universo biográfico perdido se reencontra na recriação ficcional. Exilados de quem foram, esses autores passam a viver em um não-lugar e se aplicam a uma busca contínua de alguém, eles mesmos, que não existe mais. Essa busca pode se dar em diferentes níveis, do mais raso escapismo às mais profundas investigações. E, no segundo caso, chega-se à Itabira de Drummond, ou à madeleine de Proust. Golpe de ar, de Fabrício Corsaletti fica em algum lugar desta vaga gradação.

A memória do narrador de Golpe de ar não se aplica à cidade natal de Fabrício, não se trata de memorialismo no sentido estrito da palavra, mas sim a uma Buenos Aires que entrega seus bares e ruas à imaginação do poeta que quer esquecer a literatura por algum tempo. A história é a de um escritor relativamente jovem, que já publicou um par de livros de poesias no Brasil e que se encontra refugiado em Buenos Aires. Refugiado de si, pois não há qualquer conotação política em seu auto-exílio.

Para o leitor de Fabrício, no entanto, e, em especial, para este leitor de Fabrício, que deseja escrever sobre Fabrício, que deseja elaborar sua própria leitura ficciosa para ser aplicada sobre o que leu de Fabrício, não há como não ver nesse quase diário de viagem que é Golpe de ar, uma outra camada que sugere o que ficou em São Paulo, e sob essa, uma outra ainda, que nos diz que esse narrador não é nem mesmo de São Paulo. No entanto, esses desníveis de leitura são apenas sugeridos. A leitura rápida do romance ligeiro pode prescindir de qualquer uma dessas buscas, mas aí o encanto se perde e o livro de Fabrício torna-se apenas mais uma história de um escritor angustiado, atrás de bares e do aconchego das mulheres.

Um intervalo
Ocorre que Fabrício, antes de prosador, é poeta. E pedir para um poeta não falar de si significa dizer para que não escreva. E não se trata de um poeta ingênuo, pois sabe que “existe um mundo real atrás dos mundos em que nos defendemos”, como diz em um de seus versos espalhados pela internet, e que, por sua vez, explica muito do que encontramos, e do que não encontramos em Golpe de ar.

O que não encontramos talvez seja o principal do livro. Não há uma investigação profunda do eu, não há digressões literárias, não há portenhas conversas imaginárias com Cortázar ou Borges, que se limitam a ser nomes de ruas e praças, não há explicações memorialistas sobre o que foi deixado para trás. Não há pretensões de explicar o mundo, ou muito menos de se explicar. Não há reminiscências da infância.

O que há é uma pessoa vivendo um intervalo. Um narrador que não diz seu nome, vivendo há quatro meses em Buenos Aires, onde pretende ficar até o dinheiro acabar, quando então voltará para São Paulo. Um poeta, que não quer saber de outros escritores, que não tem música em casa. Até sua vida ser, inesperadamente, tomada por um grupo de meninas paulistas, criadas a base de “danoninho e Folha de São Paulo”, e que, aos 19 anos, orgulham-se de poder beber blood maries e falar de Truffaut, como quem fala de suas roupas preferidas.

Não é um dia, mas vários, meses talvez, de uma vida Mastroianni, expressão que, segundo Corsaletti, foi cunhada por ele e emprestada a Cuenca para dar título ao seu O dia Mastroianni. Uma vida dedicada ao ócio improdutivo de pular de bar em bar, ou de cama em cama, e manter conversas supostamente inteligentes.

A gente se acostumava com tudo e o fato é que o pessoal sentava nos bares e fazia pose e ninguém mais tinha histórias pra contar. Se você ia com uma menina pra casa era como se levasse o bar inteiro junto com você, e eu trepava imaginando o caminho do bar até a cama, como se não tivesse porta nenhuma entre o quarto e a mesa onde os meus amigos continuavam a pedir porções de carne-seca com abóbora.

Essa narrativa-lamento é um traço de geração. De uma geração que aparentemente não sabe mais sobre o que escrever e dedica-se interminavelmente a buscar o fundo perdido de seus próprios umbigos. São narradores que ecoam romances das décadas de 50 e 60, as vozes da literatura noir, os romances beat, Bukowski, Henry Miller, Salinger e toda uma gente que, naquela época, atacava o status quo com seus livros sujos e inovadores. Atualmente, esse tipo de livro transformou-se no próprio status quo e esses mastroiannis e suas doces vidas nada mais questionam além de seu próprio vazio e falta de projetos reais de vida.

Em Golpe de ar, no entanto, Fabrício deixa algumas frestas abertas para ventilar esse huis clos. Frestas que permitem entrever parte do que o narrador quer deixar para trás nesse período sabático em Buenos Aires. O narrador não carrega para lá os livros de poesia que publicou, mas eles fazem parte da história. E é na poesia de Fabrício que se encontra o verdadeiro golpe de ar que escancara as portas da casa e da existência literária de um autor que usa a prosa como negação e a poesia como afirmação. Afinal de contas, na cidade em que ele nasceu “havia um bicho morto em cada sala, mas nunca se falou a respeito”, como escreve no poema História. E Fabrício escondeu o bicho morto neste seu breve romance. A graça da leitura será farejá-lo.

Golpe de ar
Fabrício Corsaletti
Editora 34
96 págs.
Fabrício Corsaletti
Nasceu em Santo Anastácio (SP), em 1978, e, desde 1997, vive na capital paulista. Formou-se em Letras pela USP e, em 2007, publicou, pela Companhia das Letras, o volume Estudos para o seu corpo, que reúne seus quatro livros de poesia: Movediço (Labortexto Editorial, 2001), O sobrevivente (Hedra, 2003) e os então inéditos História das demolições e Estudos para o seu corpo. Também é autor dos livros infantis Zôo (Hedra, 2005) e Zôo zureta (Companhia das Letras, no prelo) e das histórias de King Kong e cervejas (Companhia das Letras, 2008).
Daniel Estill
Rascunho