Mia Couto, autor já conhecido por seus livros de certo engajamento político, brinda-nos com um belo romance a respeito de inúmeros temas, Antes de nascer o mundo. O principal, no entanto, trata da culpa, o fantasma do passado que assombra os viventes. Nota-se, facilmente, que se trata de um poeta que também escreve romances e contos, passagens que foram lapidadas, esculpidas da brutal realidade para o universo poético, isto é o que Mia Couto faz ao tratar de um tema tão ordinário (entenda-se em todas as acepções da palavra).
Composto por três livros — A humanidade, A visita, Revelações e regressos, respectivamente —, o romance é dividido em capítulos não numerados e, sim, nomeados. A humanidade, por exemplo, divide-se em seis capítulos, intitulados com o nome de quatro humanos (Mwanito, Silvestre Vitalício, Nuntzi e Tio Aproximado) e dois quase-humanos (Zacaria Kalash e Jezibela, a jumenta). Mwanito, personagem-narrador da história, apresenta-se como um afinador de silêncios, pois havia nele um dom natural para a quietude. Conforme o próprio personagem nos diz: “A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, uns simplesmente para serem outros. Eu nasci parar estar calado. Minha única vocação é o silêncio”.
Após a morte da mulher, Dordalma, Silvestre Vitalício toma o resto de sua família e decide se mudar para uma terra distante, um vilarejo abandonado por causa das guerras; enquanto os seus habitantes fugiam, Silvestre lá chegava, apenas um dos vários contra-sensos deste homem amargurado. A partir de então, batiza o vilarejo com o nome profético de Jerusalém, a terra em que Jesus iria descrucificar, pois um dia Deus lhe pediria perdão. Toda a humanidade residia ali, o mundo dividia-se entre Jerusalém e o resto, Lado-de-Lá, sendo-lhes terminantemente proibido ultrapassar os limites de Jerusalém. Os filhos, Mwanito e Nuntzi, viviam em casa separada da do pai; Zacaria Kalash, um velho militar e amigo que decidiu acompanhar Silvestre, morava num antigo galpão; Aproximado, cunhado de Silvestre e tio dos garotos, guardava as fronteiras de Jerusalém e lhes trazia comida e outros mantimentos. Jezibela, a jumenta, “tão humana que satisfazia os devaneios sexuais” de Silvestre, habitava um espaço próprio e próximo dos demais.
Há várias tensões que permeiam o romance, mas todas elas, de alguma forma, ligam-se por pertencerem ao passado. Na ausência de um presente que fizesse sentido e sem qualquer perspectiva de futuro, só resta recorrer ao passado para tentar compreender o que lhes acontecia. Instaura-se então uma espécie de passado-presente-perpétuo que ocupará grande parte da narrativa, senão toda.
A morte da mãe constantemente assombra os filhos. Nuntzi tem certeza de que o pai é culpado pelo ocorrido e o ataca, sempre que pode, com perguntas e afirmações; ele ainda se sente preterido pela figura do irmão, a quem o pai convoca, todas as noites, para apurar silêncios junto de si.
Ao contrário de Mwanito, que nada recorda, pois, quando tudo ocorrera, ainda era muito miúdo, Nuntzi conserva algumas lembranças da mãe e do mundo anterior, nutrindo verdadeiro ódio pelo pai; segundo ele, aquelas terras eram tão distantes que até Deus se perdera pelos caminhos. Nuntzi arquiteta diversos planos de fuga, mas não consegue fugir, pois, quando estava próximo dos limites de Jerusalém, subitamente, acometeu-lhe uma paralisia das pernas.
Mwanito, instruído pelo irmão, descobre seus únicos passatempos: banhar-se no rio, imaginando para onde iriam aquelas águas, ler e escrever, que faz com a voracidade de quem desbrava um mundo inteiramente desconhecido — “a escrita era uma ponte entre tempos passados e futuros…” —, e também rezar; todas, atividades proibidas pelo pai.
Aproximado sempre discute com Silvestre a respeito de sua decisão e das conseqüências para ele e para os garotos; até o dia em que, com ânimos atiçados, pela febre que afligia Nuntzi, Silvestre o expulsa de Jerusalém e o proíbe de voltar lá, pois, para ele, a culpa da doença certamente viria da sujeira do mundo, do Lado-de-Lá, que Aproximado insistia em habitar.
O segundo livro, A visita, inicia-se com A aparição e apresenta-nos Marta, mulher que saiu de Lisboa à procura de Marcelo, seu marido, que se perdera na Guerra. Ela chega à Jerusalém com a ajuda de Aproximado. Através de seus escritos, podemos observar suas impressões sobre Jerusalém, seus medos e suas venturas. Marta desestabiliza todo aquele pequeno mundo, até então habitado apenas por homens. Uma das cenas mais tocantes é a do encontro de Mwanito com Marta, tão emocionante que o garoto simplesmente chora ao vê-la:
— Desculpe, a senhora é mesmo uma mulher?
(…)
— Por quê? Não pareço mulher?
— Não sei. Nunca vi uma antes.
No terceiro e último livro, Revelações e regressos, atam-se as pontas, conforme o próprio título prefigura. A mulher então se constitui um ser ambíguo (e de fato, não o é?): provoca a dor e o exílio (Dordalma), mas também é conforto e regresso (Marta). As diversas narrativas tocam-se, explicando-se, mas não findando, porque, tal qual a vida, as histórias prosseguem, sempre prosseguem.