Atestado de qualidade

Nova reedição brasileira da obra de Juan Carlos Onetti reforça sua aura de gênio criativo
Juan Carlos Onetti por Osvalter
01/12/2009

Das muitas efemérides de 2009, o mercado editorial e o círculo dos leitores mais informados não se esqueceram do centenário de nascimento de Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio morto na Espanha em 1994. As datas fazem sentido porque, de um lado, tem-se a possibilidade de revisitar a obra e o projeto literário de um escritor de renome; e, de outro, existe a oportunidade, para o mercado, de abastecer as prateleiras das livrarias com mais títulos a respeito do mesmo autor, reacendendo, aqui e ali, um nome que estava literalmente esquecido. Nesse último caso, em específico, vale a pena observar que as casas editoriais adoram tais celebrações, uma vez que conseguem colocar na praça edições de luxo que aguçam o apetite consumidor dos leitores, que, por sua vez, se confundem com consumidores. O problema aqui reside no fato de que nem sempre os escritores incensados merecem tamanha deferência. Muitas vezes, há mesmo o risco de se incensar autores cuja capacidade criativa, em vida, esteve sempre sob suspeita e que, depois do passamento, tornaram-se celebridades devido ao culto das falsas imagens promovido pela indústria cultural, capitaneado pelas referências da sociedade de espetáculo.

No caso de Juan Carlos Onetti, esses elementos estão, sim, subjacentes, posto que, ainda nesta década, as editoras brasileiras (Planeta e Companhia das Letras, pela ordem) já lançaram as obras do escritor uruguaio. De acordo com essa evidência, portanto, não haveria, em tese, necessidade para o relançamento da obra, a não ser se houvesse um fato novo, por exemplo. A novidade em questão que justifica o relançamento de parte significativa dos livros do escritor uruguaio não poderia ser mais apropriada: o atestado de seu gênio criativo. Dito de outra forma, o fato de o autor ocupar lugar único no panteão dos artistas da palavra na América Latina, muito embora Onetti não esteja diretamente ligado às chamadas “veias abertas dos escritores da América Latina”, parafraseando o livro de outro uruguaio, Eduardo Galeano. Explica-se: ainda que tenha sido perseguido pela ditadura militar, chegando, por esse motivo, a ficar preso e depois ter sido encaminhado para um manicômio, Onetti não transformou sua experiência em matéria a ser tratada em seus livros. Muito ao contrário. No lugar de romances históricos, lê-se nas obras do autor um elogio à imaginação, à criatividade e ao exercício literário levado às últimas conseqüências.

Nesse sentido, nota-se que há algo em comum que costura os livros O poço, A vida breve, Para uma tumba sem nome, O estaleiro e Junta-Cadáveres, todos reeditados pelo selo Planeta Literário, do grupo editorial Planeta. E o ponto que faz dessas obras provas incontestes de que são frutos da mesma árvore literária é a assinatura, o tom grave que envolve as histórias e que chamam a atenção do público graças à desolação exposta pelo autor. Se, no Brasil, o sempre celebrado Vinicius de Moraes cantou “é melhor ser alegre que ser triste”, Onetti, no Uruguai, parece remar na contramão. Ao descobrir sua obra, o leitor tem a impressão de que o sentimento de perda, de desilusão, de interrupção não apenas compõem o universo temático do narrador e dos personagens, como também podem ser considerados elementos constitutivos da prosa de Onetti. O leitor, nesse caso, que costuma encarar a literatura como puro momento de fruição ou prazer (imediato e) descompromissado terá mais chance de aproveitar essa experiência intelectual ao se despir de seus prejuízos estabelecidos acerca do significado da “boa literatura” e preparar-se para encarar um modelo distinto de narrativa. Essa passagem, no entanto, não há de ser feita sem algum sofrimento, e é sobre essa sensação que a obra de Onetti versa. Antes, porém, de discutir com mais vagar esse sentido do projeto literário de Juan Carlos Onetti, é preciso entender um pouco a respeito das motivações do escritor.

Sem messianismos
Certa feita, Millôr Fernandes, um dos grandes aforistas da literatura brasileira, escreveu: “O otimista é um mal informado”. Rápida, cortante e seca, a declaração provoca boas risadas. O que não quer dizer que não tenha lá alguma dose de razão. Dita de outra maneira, a frase de Millôr causa efeito porque atesta uma verdade inconveniente: a verdade pode ser crudelíssima, uma vez que carrega consigo um conteúdo que nem sempre estamos preparados para ouvir. Onetti não se propõe a falar a verdade em seus romances. Aliás, não há intenção mais messiânica na arte do que pretender dizer a verdade. Mas, assim como o poeta é um fingidor, os personagens podem ser repletos de mistérios, dramas existenciais e dilemas morais que os tornam sem qualidades. Em Onetti, essa característica está evidenciada pela forma com que as personagens lidam com os respectivos dramas nas histórias criadas pelo escritor. Como ele próprio, seus protagonistas estão à margem do cotidiano, embora vivam na cidade, haja vista o fato de ter vivido recluso nos últimos anos de vida. Na literatura, porém, esse distanciamento ocorre de maneira menos radical, porém com alguma parcela de crueldade.

Em O poço, por exemplo, o protagonista decide narrar em um diário suas memórias. A banalidade dessa decisão, por mais contraditório que pareça, torna-se solene tamanho é o desassossego que permeia a existência do protagonista. Com isso, a um só tempo indiferente e angustiado, o narrador declara: “Há milhares de coisas e eu poderia encher vários livros”. Como que uma sentença, Onetti salienta a necessidade de, mesmo em estado de prostração, escrever — algo que se confunde com sua própria trajetória literária. Em outro livro, mais precisamente naquela que é considerada sua obra-prima, A vida breve, Onetti põe na boca de uma personagem o que parece ser o seu lema — “alguma coisa repentina ia acontecer” —, para depois completar: “e eu poderia me salvar escrevendo”. Para o escritor Eric Nepomuceno, tradutor e especialista em literatura latino-americana, essa frase representa a visão de mundo do escritor uruguaio. Uma visão de mundo amarga, a considerar a história de A vida breve.

No livro, a esposa do publicitário Juan María Brausen, recém-saída de uma cirurgia em que seus seios foram extraídos, se recupera na cama enquanto, na cama do vizinho, outra mulher goza o prazer carnal. Nesse ambiente sórdido, em que o calor sufoca e a chuva não vem, o protagonista escolhe viver outra vida, que, a partir de sua imaginação, seria mais emocionante do que sua fatídica existência. Mais uma vez, a solidão e a tristeza contrastam com os bons sentimentos que se costuma esperar da ficção. Como nos demais, não há trégua nesse Onetti cujos personagens atacam sem qualquer sinal de remorso:

Em vez de me dar pena, os animais têm a delicadeza de simular inveja. Você pertence à outra espécie animal; não tem inveja nem pena de mim. Se alguém soubesse o que tenho de suportar, o que me custam em torturas. Podemos usar a última como símbolo de meu martírio. Casada, trinta anos, dois filhos, um marido que se dedica a coisas que nunca pude entender, num clube esportivo.

Cidade invisível
O aspecto que parece mais simbólico da narrativa de Juan Carlos Onetti, sobretudo em A vida breve, é outro. Trata-se de Santa Maria, que não é Buenos Aires, tampouco Montevidéu. É Santa Maria, local que abriga uma galeria de personagens rotos, desvitalizados e que parecem não esperar por muito mais, a não ser pela desilusão. E Santa Maria, como a Yoknapatawpha do escritor norte-americano William Faulkner (uma referência declarada por Onetti), é o palco ideal para que a desilusão aconteça. Nesse caso, por mais imaginária que seja a cidade, a verossimilhança e a aproximação ocorrem porque é flagrante o sentimento de perda, com sabor de amargura e derrota. A despeito dessa leitura, o que certa parcela dos críticos deixaram de lado foi o fato de Onetti ser o possível representante de uma efetiva proposta para um novo milênio. Que sejam devidamente escanteadas as grandes esperanças, as ilusões que, quando existem, logo em seguida são perdidas. É necessário dar lugar para expectativas mais simples e comedidas, que não estão de acordo com o desejo de status apregoado pelos gurus da auto-ajuda. A literatura do escritor uruguaio, nesse aspecto, é um vaticínio, um aviso que não pode ser ignorado.

A motivação para tanto é mais objetiva do que a obtenção de certa cultura livresca ou, mesmo, de um discurso de autoridade — no caso, do escritor. Em vez disso, pode-se viver melhor, de fato, se as expectativas não condicionarem a sociedade contemporânea para receber apenas reforço positivo. Em outras palavras, diferentemente daqueles anjos, caídos, que desistem de sua missão em função de um amor que pode não se concretizar, a humanidade seria mais realista e, portanto, mais feliz, se soubesse lidar melhor com baixas expectativas. Em grande parte, a literatura de Onetti surpreende e granjeia admiração porque o público aguarda desfechos redentores e histórias que remetam a um formato mais clássico na maneira de se contar e de apresentar sua narrativa. No caso do escritor uruguaio, mesmo essa expectativa, no tocante ao estilo, frustra os anseios do leitor comum; em contrapartida, esse mesmo leitor descobre outro universo pleno de imaginação literária, abordagem sofisticada e personagens que, ainda que sombrios, conquistam a atenção a partir do olhar do autor.

Para uma tumba sem nome, nesse aspecto, obedece à tendência e à linhagem criativa inaugurada pelo autor. Na obra, que traz a curiosa relação de um jovem com uma mulher anônima. A narrativa se sustenta, portanto, na condução de um mistério para o leitor — não um mistério policial ou algo equivalente, mas, sim, algo obscuro, que envolve as intenções e a projeção que o autor pretende dar à obra. Desse modo, é como se Onetti, agora mais maduro, tivesse atribuído a seus personagens a possibilidade de estabelecer suas próprias versões e contraversões acerca do ambiente que os envolve. O leitor, por sua vez, poderá ficar ciente de que a simbólica Santa Maria, ainda que seja uma cidade invisível, permanecerá para aqueles que decidirem decifrar a narrativa do escritor uruguaio, posto que, também aqui, o local se torna um espaço geográfico da literatura de Onetti.

Juan Carlos Onetti por Osvalter

Arte engajada
Já em Junta-Cadáveres, na mesma Santa Maria, tem-se a história de Junta Larsen, cujo grande emplastro — ou projeto de vida — é o de criar o bordel perfeito. No que consiste a idéia desse bordel? Recrutar prostitutas mais experientes que dominavam o ofício. Esse exercício de imaginação não pretende apresentar uma crítica contundente à exploração da mulher como objeto. Não é esse tipo de juízo que se extrai da leitura de Onetti. Em vez disso, observa-se como os intentos aparentemente mais singelos não alcançam êxito devido às vicissitudes que são contingentes no cotidiano. Essas atribulações podem ser bem entendidas à medida que o leitor entende o contexto social no qual a obra se insere, a saber: a classe política, burguesa e até eclesiástica, simbolizada na figura de um padre, que pouco a pouco não medem esforços para destruir o projeto de Junta-Cadáveres.

A despeito dessa consciência política e da possível discussão de cunho moral e ideológico presente em sua obra, não se pode afirmar que a literatura de Onetti se encaixe no projeto de arte engajada, que tanto faz a cabeça de certa camada de leitores da prosa latino-americana. De cunho filosófico, Onetti parece se distanciar da crítica política, ao menos objetivamente, e investe na digressão de natureza existencial. A crítica aos costumes, quando acontece, investe no argumento de como alguns projetos estão fadados ao fracasso, não importa o quanto envolvido se está em determinada causa.

De alguma maneira, essa também parece ser a mensagem central de O estaleiro. Haverá, inclusive, quem diga que o uruguaio se repete como uma velhota sem cessar. Todavia, como certa feita observou Nelson Rodrigues, um artista não é nada sem as suas obsessões. Junta Larsen, desacreditado, parte para sua última aventura, agora com a possibilidade de consertar sua embarcação. Diferentemente do que acontece com o personagem de Hemingway, em O velho e o mar, ou de Herman Melville, em Moby Dick, o resultado dessa obsessão não é necessariamente faustoso, posto que obedece aos ditames do sentido da literatura de Onetti. Assim, no lugar da conquista e da jornada triunfal, entra em cena a sensação de dissolução das expectativas. Como em poucos autores, na prosa desse escritor uruguaio que morreu na Espanha, o leitor tem a chance de compreender o significado de um projeto estético delineado, consciente e não menos sofisticado no que se refere à abordagem literária dos temas.

Juan Carlos Onetti, embora não pertença à casta da literatura latino-americana do realismo mágico, faz jus às homenagens que freqüentemente recebe de gigantes como Mario Vargas Llosa. Em vez de ancorar sua obra no estilo lúdico do texto, sua prosa, seca, porém contundente, consegue identificar com precisão os maus hábitos e os sentimentos imperfeitos que corrompem e corroem o nosso caráter. Demasiadamente humano, sobremaneira falível, o ser humano em Onetti destoa do discurso da vitória e não mantém qualquer esperança. E ao projetar o fim, simbolicamente estabelece um marco criador tanto na linguagem quanto na abordagem temática. Um original, à margem do consenso.

Essa originalidade, em certa medida, cai como uma luva para os tempos que correm. Isso porque, de acordo com recentes reportagens na imprensa cultural, bem como em diversos anúncios no mercado dos cursos livres, hoje há não apenas escolas que ministram cursos livres para escritores, como também há demanda para esse tipo de ensino. Recentes reportagens mostram como mesmo escritores sem estatura intelectual se metem a ensinar a escrever, com algum arremedo de estilo e muita afetação, porque sequer sabem o que é ser escritor, tampouco o que significa pensar em um projeto literário. Onetti, por sua vez, fez seu próprio caminho, esquecendo os esquemas facilitadores ou mesmo a literatura de maior apelo, e adotando um tema e um estilo que naturalmente não interessaria a todos. Por essa razão, enquanto uns se engajam em eventos culturais, festas literárias e convescotes midiáticos, outros aproveitam seu tempo e disposição para produzir literatura que sobreviva aos ditames do mercado. Onetti pertencia a esse último grupo. Em vida, como um personagem de si mesmo, permaneceu recluso, introspectivo e pouco afeito ao contato com o grande público. Escrevia. Ainda assim, é correto afirmar que produziu peças das mais relevantes para a prosa da América Latina, bem como para a literatura mundial. Assim, mais do que uma estratégia comercial, a reedição dos livros de Onetti cumpre a obrigatória missão de valorizar a literatura em vez de cultuar as falsas imagens que grassam nas estantes e prateleiras das livrarias do Brasil.

O poço/Para uma tumba sem nome
Juan Carlos Onetti
Trad.: Luis Reyes Gil
Planeta
168 págs.
A vida breve
Juan Carlos Onetti
Trad.: Josely Viana Baptista
Planeta
360 págs.
O estaleiro
Juan Carlos Onetti
Trad.: Luis Reyes Gil
Planeta
248 págs.
Junta-Cadáveres
Juan Carlos Onetti
Trad.: Luis Reyes Gil
Planeta
349 págs.
Juan Carlos Onetti
Nascido no Uruguai, em 1909, Juan Carlos Onetti é um dos principais autores da literatura latino-americana do século 20. No Brasil, sua obra tem sido relançada ao longo desta última década. Pela Companhia das Letras, foi publicado 47 contos de Juan Carlos Onetti. Pela editora Planeta, agora sob o selo Planeta Literário, foram publicados O poço/Para uma tumba sem nome, A vida breve, Junta-Cadáveres e O estaleiro.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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