O autor e seu editor

A relação conflituosa entre aquele que cria e aquele que vende a criação
01/12/2009

A cultura valeu-se principalmente dos livros que deram prejuízo aos editores.
Thomas Fuller

Autor bom é autor morto. Pelo menos é o que pensam alguns editores, seguindo a linha de raciocínio do general Sheridan sobre os índios.

No habitat literário, as cinco espécies que por força das circunstâncias são obrigadas a coexistir ­— a dos escritores, a dos editores, a dos distribuidores, a dos livreiros e a dos críticos — raramente convivem harmoniosamente. Choques e chispas ocorrem o tempo todo entre o escritor e o crítico, entre o editor e o distribuidor, entre o distribuidor e o livreiro e, é claro, entre o escritor e seu editor. Principalmente entre o escritor e seu editor.

O ódio de Goethe contra os editores é conhecido: “Os editores são todos cúmplices de Satã. Deveria haver um inferno especial para eles”. Mas, na trincheira do adversário, boa parte dos editores de ontem e de hoje também não cansa de reclamar: “Os escritores são todos cúmplices de Satã. Deveria haver um inferno especial para eles”.

A diferença entre um autor e um cavalo está no fato de que o cavalo não compreende a linguagem do comerciante de cavalos.
Max Frisch

O editor tem dois papéis fundamentais: publicar obras de qualidade e vendê-las. O conflito entre esses dois papéis é o que muitas vezes dá início ao extenuante, selvagem, sangrento embate entre o autor e seu editor. Denunciando esse conflito gerado pela dupla identidade, o editor Siegfried Unseld, da alemã Suhrkamp, escreveu:

O mal-estar persistente que caracteriza a relação entre o autor e seu editor é resultado da própria atividade editorial, que, como Jano, tem duas faces. O editor precisa — conforme diz Brecht — produzir essa “mercadoria sagrada que é o livro”, e também vendê-la. Isto é, ele precisa associar a atividade intelectual ao comércio, para que quem produz essa literatura possa viver e quem a edita tenha condições de continuar editando. O autor e seu editor (Guanabara)

A questão fica ainda mais séria quando o autor inédito e rejeitado decide pelejar com o assecla de Satã que teve a baixeza, a vileza, a crueldade de recusar seu original.

No início do romance A casa na escuridão (Record), o português José Luís Peixoto inseriu uma cena saborosíssima. O protagonista é um autor que, após escrever algumas páginas de um romance, entra no carro e as leva ao seu editor. O detalhe é que o editor está preso, por ter cometido o crime hediondo de ter recusado um original.

Quando cheguei à sala de visitas, ele já lá estava. Vestido com o uniforme azul, veio ter comigo de braços abertos e disse só tu é que te lembras de mim. Naquela altura, o meu editor já estava preso havia quase três anos. Tinha sido apanhado em flagrante a recusar o livro de um jovem escritor, dizendo-lhe sabe como é, as pessoas já lêem pouco, quanto mais um autor novo de quem nunca ouviram falar. No tribunal, onde fui testemunha de defesa, pesaram sobretudo várias cartas, assinadas por si próprio, onde tinha escrito unicamente: junto devolvemos o original enviado para leitura, lamentando informar que o mesmo não foi selecionado para publicação. Apanhou dez anos de cadeia. No princípio foi muito difícil. Os editores e os pedófilos são os mais maltratados nas prisões. Embora ele nunca me tenha dito, suponho que o tenham violado.

Há quem defenda os editores. E há quem faça isso com muito bom humor, o que torna a defesa bastante eficiente. O canadense Camilien Roy defendeu-os na irreverente coletânea A arte de recusar um original (Rocco). Não podemos deixar de notar, é claro, que ele fez isso com a ajuda de seu editor, que aceitou publicar o livro. A arte de recusar um original reúne dezenas de divertidos modelos de carta de recusa. Se fossem transferidos para o universo ficcional do romance de José Luís Peixoto, os autores dessas cartas pegariam no mínimo prisão perpétua. Para eles não resta a menor dúvida de que autor inédito bom é autor inédito morto.

Os mais de cem modelos estão classificados de maneira simples, porém eficaz. Há recusas de todos os gêneros: a clássica, a desonesta, a cansativa, a paranóica, a lírica, a maternal, a gastronômica, a psicanalítica, a preguiçosa, a pornográfica, a constrangida, a nostálgica, a incompreensível, e por aí vai.

Essas cartas são o obstáculo intransponível que, se removido (jamais será, jamais será), traria para o autor a imortalidade. Ou algo muito parecido com a imortalidade, cuja chave são os três selos clássicos, cada qual com uma frase mágica: Imprimi potest (do superior da ordem), Nihil obstat (do censor da diocese) e Imprimatur (do bispo).

Para o deleite do leitor, segue o início de algumas delas:

Insensível
Escute, meu senhor,
Não sei se alguém o encorajou a escrever, mas uma coisa é certa: essa pessoa perdeu uma boa oportunidade de ficar calada. Você escreve tão mal que não resisti à tentação de ler alguns trechos em voz alta para os colegas da editora. Nós nos mijamos de rir.

Sem rodeios
Senhor,
Para dizer as coisas com clareza e sem rodeios, após a leitura de algumas páginas de seu manuscrito, chegamos à conclusão de que nunca, jamais, em tempo algum, o publicaremos.
Solicitamos a gentileza de não incomodar no futuro os integrantes de nossa equipe de leitura com outras remessas de mesmo teor.

Incomodado
Em trinta e cinco anos de trabalho no ramo editorial, nunca me deparei com um manuscrito como o seu. Como ousa chamar isso de romance?! Meu senhor, posso garantir duas coisas: o senhor não é um escritor e o senhor precisa de ajuda.
Essa porcaria que nos enviou nos chocou profundamente. Nossa casa editorial é modesta, sem dúvida, mas isso não lhe concede o direito de nos afligir com tão indigesta salada mista de frutas podres.

Desalentado
Senhor,
Estou farto! Acabou! Cheguei ao limite. Trinta e dois anos seguidos lendo manuscritos ruins, histórias tediosas escritas por gente sem talento. E pensar que eu tinha a ilusão de que a profissão de editor fosse me fazer conhecer pessoas maravilhosas e, ao mesmo tempo, me propiciar a descoberta de grandes escritores. Como fui tolo! É preciso ser realmente muito ingênuo.

Enojado
Senhor,
Essa imundície defecada pelo seu cérebro em mais de trezentas horrendas páginas está emporcalhando minha mesa de trabalho. Fiquei enojado com essa obra fedorenta e pavorosa que o senhor ousou qualificar de romance. Essa bosta gosmenta que o senhor confunde com a verdadeira literatura me causou grave mal-estar e me deixou com ânsia de vômito.

Novato e rabugento
Mas o que vem a ser isso? Será que é possível? Toda semana é a mesma ladainha: estou tranqüilo em meu canto, cuidando das minhas tarefas e um desgraçado me aparece para jogar meia dúzia de manuscritos sobre a mesa dizendo: “Senhor Paul, o senhor poderia ler tudo isso e nos apresentar um relatório detalhado na segunda-feira?” Eles vão ver que tipo de relatório eu vou fazer!

O escritor e editor Rodrigo Lacerda, resenhando o livro de Camilien Roy (www.rodrigolacerda.com.br/sempre-te-li-nunca-te-amei), refletiu melhor do que eu sobre essa ilusão de obstáculo à imortalidade que está no centro do ódio que todo autor rejeitado sente pela criatura abominável que o rejeitou:

Arrisco dizer que para a maioria dos escritores, bons ou ruins, o livro realiza antes de tudo mais um sonho de imortalidade. Se ele será considerado uma obra-prima, isso é um segundo momento de concretização do sonho, mas a publicação é o primeiro passo crucial. E não me digam que postar seu romance num blog é a mesma coisa. A virtualidade não dá as mesmas garantias da sobrevivência material do texto. E contra a morte, contra o desaparecimento da matéria que sustenta a consciência individual, nada como a tinta preta sobre papel branco. Livro é livro. Nada é tão permanente. O espetáculo teatral passa, os filmes de menos de cem anos atrás hoje são verdadeiros trapos velhos, precisando ser remasterizados e fotochopados, para não falar dos registros musicais, que até pouco tempo arranhavam, chiavam e disparavam pipocos para todos os lados. Um livro, para o editor, é mais um; mas para o escritor, é o sumo de sua existência.

Então, quando lhe recusam um livro, o autor ouve a recusa como se o editor estivesse dizendo: “Não vou contribuir para a sua imortalidade, vou barrar a transcendência de sua passagem pela face da Terra; você, se depender de mim, permanecerá mortal e medíocre, com sua memória sendo definitivamente enterrada dentro de duas ou três gerações de seus filhos e netos, e todas elas juntas não serão mais que um espirro do carona no banco de trás do rolo compressor da História”.

Luiz Bras

É escritor. Autor de Sozinho no deserto extremo e Paraíso líquido, entre outros.

Rascunho