🔓 Crônica do trabalhador sentado

Um poema sobre o orgulho de dar bom dia ao porteiro, ser vegano e outras maneiras edificantes de fazer do mundo um lugar melhor
03/08/2021

Eu achava que ia fazer do mundo um lugar melhor

ao dar bom dia ao porteiro

tu achavas que ia fazer do mundo um lugar melhor

ao dar bom dia ao porteiro

ele achava que ia fazer do mundo um lugar

nós achávamos que íamos fazer

vós acháveis que

 

eles não

eles não achavam que iam fazer do mundo um lugar melhor

ao dar bom dia ao porteiro

porque eles são o porteiro

ali — do outro lado

— do balcão

que distantes os porteiros

 

eu achava que ia fazer do mundo um lugar melhor

ao dar bom dia ao porteiro

e depois comentar com amigos

na mesa do bar de cerveja artesanal

sobre a estupidez das pessoas que nunca dão bom dia ao porteiro

 

eu achava que podia me orgulhar de dar bom dia ao porteiro

como se esse gesto de civilidade

farelo de respeito

fosse o equivalente contemporâneo de impedir que uma guilhotina caia sobre um pescoço

 

eu nunca pensei que talvez o porteiro

não queira cumprimentar ninguém

talvez o porteiro ache um pé no saco quando eu passo na catraca

talvez o porteiro prefira ficar quieto lendo um livro

talvez seja o porteiro quem dá bom dia a mim

 

talvez depois o porteiro comente aos amigos na mesa de bar

que não suporta mais dar bom dia a gente chata

talvez o porteiro goste de silêncio

talvez o porteiro tenha uma vida interior muito mais rica do que a minha

e a cada um dos meus bons dias

um personagem de fantasia morra na cabeça do porteiro

talvez a guilhotina esteja em cima é do meu pescoço

 

mas a minha guilhotina com certeza é mais bonita

que a guilhotina do porteiro

a minha é exclusiva para pejota

acompanha um cartão de crédito bonito contactless

acompanha brindes que têm storytelling

acompanha um manual de mindfulness

acompanha um bonito saco de algodão egípcio

para guardar a cabeça

 

eu achava que podia salvar o mundo

com uma alimentação vegana

tu achavas que podia salvar o mundo

ao ser um vegetariano que come peixe

ele achava que podia salvar o mundo

ao ser um carnívoro de carne branca

nós achávamos que podíamos

ser onívoros que compram de produtores locais

vós achais que podeis

comer saudável

para cagar regras saudáveis

 

eu achava que todo mundo podia trabalhar com o que ama

menos o porteiro

ninguém ama a portaria

o porteiro ficava feliz com a sexta-feira

o porteiro me perguntava: coisa boa a sexta-feira, né?

eu também ficava feliz com a sexta-feira

ninguém ama nada quarenta e oito horas por semana

por quarenta e nove anos

eu dava boa noite para o porteiro

mas ele dizia

espera aí

e a gente caminhava junto até a parada de ônibus

Julia Dantas

Nasceu em Porto Alegre (RS). É editora, tradutora e doutoranda em Escrita Criativa pela PUCRS. É autora de Ruína y leveza (Não Editora, 2015) e organizadora de Fake Fiction: contos sobre um Brasil onde tudo pode ser verdade (Dublinense, 2020).

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