🔓 Futebol de botão

O grito de gol que ecoa desde sempre nas jogadas inesquecíveis dos times a batalhar sobre uma mesa
19/05/2021

Em 1929, com 18 anos, o campinense Geraldo Cardoso Décourt teve a ideia de criar um esporte. Retirou os botões de uma camisa velha, dispôs sobre uma placa de celotex — usada originalmente para o isolamento de paredes — e reencenou, ali, uma partida de futebol. Décourt mirava longe: já ano seguinte elaboraria um primeiro livro de normas, as Regras Officiaes do Foot-ball Celotex. Que logo virou “futebol de botão”.

Dia desses o jogo rendeu assunto no Twitter, mobilizando um bando de marmanjos. Cada qual recordava a escalação de seu time, o material de que eram feitos os “atletas” — galalite, plástico, coco, capa de relógio —, eventuais títulos conquistados. Sim, no botão como no gramado, quase todo mundo foi craque em tempos pretéritos.

Eu também tinha história para contar — e o fiz. Abri minha antiga caixa, que até hoje guarda as paletas e os escretes do leva-leva, do Disco e da Bola 3 Toques, mostrei o caderno de anotações onde os confrontos estão registrados à caneta, os escudos que trocava com outros jogadores como se fossem flâmulas. Não demorou até que o feed se transformasse num grande álbum de recordações e fotografias. Alguns mostravam, com indisfarçável orgulho, que mantêm intactos os seus times.

Acredite ou não o leitor, eu levava jeito para a coisa. Assim como boa parte dos que ingressavam no novíssimo universo das regras oficiais. Isso em geral acontecia quando a destreza chegava ao ponto de fazer a partida no estilo leva-leva perder a graça. Com a possibilidade de conduzir o dadinho até a melhor posição de chute, cada ataque praticamente representava um gol, e o vencedor acabava definido já no par ou ímpar da saída de bola.

Na regra do Disco, por exemplo, o jogador só pode dar um toque. Então será a vez do outro, num revezamento sucessivo. Não me refiro ao botão, mas ao jogador mesmo. Busca-se lançar a bola ao campo oposto, de modo a obrigar o adversário a devolvê-la. Nesse movimento, os botões do rival vão aos poucos deixando espaços onde você constrói as jogadas ofensivas. É quase uma partida de xadrez, de tão estratégico.

Muita gente desconhece, mas o futebol de botão é considerado modalidade esportiva desde 29 de setembro de 1988. Nessa data, o Conselho Nacional de Desportos (CND) o reconheceu como uma das vertentes do chamados “esportes de salão”. Atualmente, há quatro regras institucionalizadas: as já mencionadas Disco e Bola 3 Toques, a Bola 3 Toques e a Dadinho. Mas o nome usado, inclusive pela confederação que regula a categoria, é “futebol de mesa”.

Já era assim na época em que, levado pelo meu primo Adriano, integrei a Associação Metropolitana de Futebol de Mesa e a equipe do Madureira Esporte Clube. A justificativa dos botonistas — termo que designa os competidores — é que não lhes interessa a ligação do esporte com a prática de uma brincadeira infantil. Como se aquele garoto que acendeu a fagulha da paixão paradoxalmente não coubesse mais, apesar da miudez, no corpo do adulto.

Cheguei a disputar um campeonato estadual e um brasileiro, ambos dentro da regra do Disco. Com árbitro, súmula, uniforme. Mas as lembranças sempre escapam do invólucro da solenidade. E tão cálidas quanto a memória dos jogos federados são as imagens que trazem de volta os certames contra o Misto, do Roberto “Nonô”; o Canoas, do Rodrigo Plotek; o Sul América, do meu xará Marcelo Cardoso. Aliás, os confrontos entre o Misto e meu Tradição F. B. ganharam status de clássico em meio à turma. Roberto narrava as próprias jogadas e enfeitava seu campo Estrelão com faixas à moda das torcidas organizadas do futebol. Eram feitas de papel e palito.

Esse time continua guardado, com todo o esmero, ao lado dos elegantes botões das competições oficiais. Ao reabrir a velha caixa naquela tarde de conversas no Twitter, foi como se ouvisse, lá de longe, um grito de gol.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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