Quando lancei o primeiro trabalho — uma seleta de contos ruins que tentavam emular Caio Fernando Abreu —, minha irmã insistiu para que eu mandasse um exemplar para a Hilda Hilst. Lilian sabia que eu era fã dos textos da Hilda e tinha um amigo que morava na Casa do Sol, onde a poeta hospedava os amigos em temporadas repletas de conversas, drinques, astrologia, ciência, filosofia, música e literatura.
A obra da escritora — ela que hoje faria 91 anos — me chegara por intermédio justamente do Caio. Ao se conhecerem, num curso de jornalismo que a revista Veja promoveu em 1968, os dois logo se tornaram próximos. No ano seguinte, Caio partiu de mala e cuia para a Casa do Sol. Ficou muitos meses por lá, voltando noutras ocasiões em passagens mais rápidas.
A Casa do Sol, aliás, marca um momento decisivo na vida do autor gaúcho. A história se soma a muitas outras cujo centro é o poder mágico da figueira que havia no local. Certa noite de lua cheia — quando a capacidade da árvore, segundo Hilda, alcançava intensidade máxima —, ele se aproximou e fez dois pedidos. Queria que sua voz engrossasse e também ganhar um concurso de que estava participando. Na manhã seguinte, contam o próprio e pelo menos três testemunhas, o sortilégio se deu. Caio acordou com voz de barítono. “Me sinto felicíssimo, isso resolve praticamente todos os meus problemas, posso fazer o que quiser, falar com quem quiser, ninguém vai rir nem achar esquisito”, ele contaria aos pais, em carta enviada pouco depois. O segundo pleito foi igualmente atendido. Inventário do irremediável, seu livro de estreia, conquistou o Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira de Escritores.
“Nós sempre fomos muito ligados”, comentou Hilda em artigo enviado para O Estado de S. Paulo pouco antes da morte de Caio. “Ele empenha a vida, a morte, a doença, tudo o que tem em sua literatura. A tentativa do escritor é sempre essa: dizer a sua pequena verdade para o outro.”
O vínculo tão afetivo, tão vigoroso, entre artistas referenciais me causava admiração. Mais do que isso, uma espécie de fome. Na época em que minha irmã sugeriu a expedição do exemplar, eu era um escritor iniciante e sem contato algum com meus pares ou com o mundo literário. Parecia-me incrível descobrir a possibilidade de troca, amorosa e estética, entre dois criadores. Esse antídoto possível para a solidão.
Sem muita expectativa, fiz uma dedicatória e remeti o livro pelo Correio. Pus, no envelope, um papel com meu telefone escrito a caneta.
Passaram-se alguns meses, eu me mudara para uma quitinete — a primeira experiência de morar sozinho — e já nem lembrava do envio. Um dia, o telefone lá de casa tocou.
— Oi, Marcelo.
— Quem fala?
— É a Hilda.
— Que Hilda?
— A Hilda Hilst. Recebi seu livro.
Fiquei paralisado de tal forma que não consigo me recordar de nada que ela disse durante a conversa de poucos minutos. Só das palavras finais:
— Continue escrevendo. Sempre.
A frase ficou encrustada dentro da minha cabeça como a forma que dorme dentro da pedra.
Passados alguns anos, usaria versos da Hilda como epígrafe de Somos todos iguais nesta noite: “A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos/ E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima / Olho d’água, bebida. A vida é líquida”.
Generosa e mítica. Assim era Hilda Hilst.