🔓 Até que o WhatsApp nos separe

O aplicativo de conversa é um quarto apertado, sem porta e sem janelas, onde tudo que se fala é ouvido pelos demais, que não podem fingir indiferença
29/03/2021

Um grupo mais ou menos heterogêneo de amigos — alguns deles se encontram cotidianamente, outros nem tanto, alguns nem sequer conhecem todos os que ali estão — calha de se encontrar durante um almoço. Quanta alegria! Conversa vai, cervejas vêm e, lá pelas tantas, o pessoal passa a combinar a organização de uma festa junina, um encontro de ex-alunos do colégio ou um campeonato de botão. O assunto não vem ao caso. Mas é justamente nesse momento que um participante mais empolgado grita a proposta fatal: “Vamos criar um grupo de WhatsApp para combinar tudo?” Péssima ideia.

Como veremos mais adiante, o desgraçado jamais deveria ter sugerido isso, mas é simplesmente tarde demais. Ninguém em sã consciência poderá, na presença de amigos, se recusar a fazer parte de um grupo de WhatsApp. Quem se atrever a tal sinceridade será tratado, até a consumação dos tempos, como um maldito seboso dos infernos. O grupo é criado.

Até o dia do tal evento, a coisa até que flui bem. O grupo é uma mão na roda para a troca de informações sobre horários, quem vai e quem não vai, instruções de como chegar, que comes e bebes devem ser levados e por quem, essas coisas mundanas. “A tecnologia é uma bênção!”, parecem exclamar todos. E então o torneio de botão é disputado, as batatas doces são assadas na tal da festa junina, brasas de antigas paixões colegiais são sopradas e tudo acaba bem. Acaba?

Ledo engano, pobres coitados. É mais fácil exterminar as baratas da face da terra ou moralizar o Congresso Nacional do que acabar com um grupo de WhatsApp — ao menos não sem prantos e ranger de dentes, não sem muita luta e sofrimento. Na manhã seguinte ao evento, um miserável (provavelmente o mesmo que propôs a criação do grupo) posta a mais manjada e imbecil das frases: “Bom dia, grupo!” Pronto. A tragédia está consumada. Por que diabos um grupo originalmente criado para tratar dos trâmites de uma festa junina deveria continuar a existir depois de sua realização? Eu não sei. Perguntem para o safado que mandou o bom dia na manhã seguinte.

A tragédia continua ganhando corpo. Sim, porque enquanto alguns consideram desnecessário responder a um bom dia tão besta, muitos acham o cúmulo da falta de educação uma pessoa deixar sem resposta uma saudação tão simpática de um amigo — ou quase amigo, colega, amigo do amigo, conhecido do amigo, o que seja. Pelas minhas estatísticas pessoais, uma saudação de bom dia ou um emoji de joinha num grupo de 20 pessoas no WhatsApp costuma render, em média, 12 retribuições de bom dia ou 16 joinhas (que são mais práticos de enviar).

Concretizado o retorno médio esperado do post de bom dia, ocorrerão os seguintes eventos: 1) Um dos participantes contabilizará quantas pessoas responderam ao seu joinha versus quantos responderam à carinha de gato com beijinho de coração de outro amigo. Caso o placar o desfavoreça, ideias suicidas passarão pela cabeça do infeliz; 2) Três ou quatro amigos criarão um grupo à parte, com o objetivo de falar mal das pessoas que insistem em não responder ao bom dia e emojis dos demais; 3) Os que não respondem às mensagens criarão outro grupo para reclamar da imbecilidade que é ter de reagir a toda e qualquer carinha feliz que um bocó posta no grupo — que, aliás, por que cargas d’água continua a existir, ainda mais tendo a participação de Fulano e Beltrano, que nem são amigos de verdade, sendo que o mané do Cicrano nem sequer respondeu a uma mensagem direta minha propondo a apresentação de um projeto de patrocínio incentivado; 4) Uma facção mais reivindicativa criará um grupo com o administrador para forçá-lo a tirar do grupo os caras que não fazem parte da velha turma do colégio; e 5) Cansadas de tudo, algumas pessoas tentarão sair de fininho, mas, como o aplicativo não possui mecanismos que favoreçam a discrição, todos os que saírem serão continuamente recolocados no grupo com palavras de incentivo tais como “fica, amigo, todo mundo aqui te adora”.

É importante mencionar que as cinco situações listadas no parágrafo anterior podem se desdobrar pelos subgrupos criados como dissidência do grupo original da festa junina, fazendo com que a quantidade desses subgrupos tenda ao infinito.

O WhatsApp é inacreditável, no bom sentido. Pena que o uso que as pessoas fazem dele seja ainda mais inacreditável, só que no mau sentido. Por meio do formidável aplicativo, pessoas, que não se conheciam até ontem, hoje são enfiadas por amigos comuns em um grupo de futebol ou política e amanhã estarão brigando com aquele ódio ancestral que só inimigos (ou amigos) de longa data são capazes de destilar. Famílias que conviviam maravilhosamente bem, se encontrando nada mais do que um par de vezes por ano — no almoço de Páscoa e na ceia de Natal —, uma vez forçadas a conviver nessa espécie de Big Brother digital, apelidado de zap, passam a adotar comportamento radical e belicoso no estilo coxinhas e petralhas, sendo que só não trocam cusparadas porque tal nível de interatividade ainda não é possível nas redes sociais.

O fato é que em pontos de encontro virtuais, como o Facebook, o Snapchat, o Instagram e o Twitter, a gente pode até fingir que não está nem aí para os comentários dos amigos. Esses lugares são como praças públicas, nas quais podemos ver os demais, mas não somos obrigados a conversar com todo mundo. Já no WhatsApp, meus amigos, a chapa é quente. Ele não é uma praça: é um quarto apertado, sem porta e sem janelas, onde tudo que se fala é ouvido pelos demais, que não podem fingir indiferença — já que os desenvolvedores da plataforma tiveram o requinte de dotá-la de cruéis pirulitinhos azuis que deduram aqueles que já acessaram as mensagens. A vida moderna não é para os fracos.

Falando assim, parece até que o famigerado WhatsApp foi uma invenção que procurou combinar maquiavelicamente a mais alta tecnologia com as mais avançadas teorias antropológicas, tudo com o objetivo sinistro de promover a desunião entre as pessoas e, assim, provar que Sartre tinha razão quando afirmou que o inferno são os outros. Na verdade, se a gente aprendesse de uma vez por todas a não esperar das pessoas mais do que elas são capazes de oferecer, boa parte dessas brigas — as sérias e até mesmo as engraçadas — nem sequer chegaria a ocorrer. Mas isso já é assunto para outra crônica.

Marcos Caetano

É cronista com textos publicados nas revistas Piauí, Bravo!, Trip e Placar e colunas nos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal do Brasil e Meio & Mensagem.

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