simone é o nome do desejo
que também pode ser sérgio
ser sônia célia, pode até
sidônio, pode atar cinara
pode ater-se em sílvio
quando o desejo é todo cosme
por mais que eu ivete
eu teodoro
Publicado no livro Sabor plástico (1983), esse curto poema do latinista e tradutor piraporense Raimundo Carvalho traz à baila onze nomes, desde o título, que estruturam e dão sentido, mistério e graça aos oito versos. Ainda que o leitor não decifre de imediato, ou mesmo depois, o jogo onomástico (e menos ainda qualquer possível alusão à vida real do poeta), o poema em si produz um riso, um humor, a sensação de que se leu algo com sabor e saber, que aciona possibilidades de desejo, por meio do entrecruzamento de sugestivos nomes próprios.
Pelo poema, desfilam, provocadores, nomes (que lembram, de viés, e diferida, a quadrilha de Drummond, com sua trupe própria): bandeira, simone, sérgio, sônia/ célia, sidônio, cinara, sílvio, cosme, ivete, teodoro. Há uma alternância calculada entre os nomes masculino (M) e feminino (F): MFMFMFM /// MFM. Na quebra da estrofe, ocorre a repetição do gênero (M/M), de sílvio a cosme, insinuando a impertinência do par, ou a recusa, ou o suspense: daí que, diz o verso 5, interrompendo a alternância, “pode ater-se em sílvio”. Antes, no verso 4, os dois gêneros se encontram (MF) porque “sidônio, pode atar cinara”. Embora o desejo — protagonista do poema — possa se realizar sob muitas faces, o poeta decide o vaivém do querer nos dois versos finais: há um paralelismo visual-espacial (FM — ivete/teodoro), mas o eu, narrador subsumido dessa nova quadrilha amorosa, se explicita e diz que, “por mais que eu ivete”, isto é, por mais que possa e queira exercer o desejo com a força feminina de ivete, prefere a força e atração masculina de teodoro. Sim, mas não somente.
Se o som do fonema alveolar /s/, ainda que simbolicamente e decerto conforme o contexto em que se situa, reforça um sentido de sibilância e deslizamento (desde o desenho em curva do grafema), quando se considera sua ocorrência junto à conjunção condicional “se” e ao pronome pessoal “si”, ainda que disfarçados ou aglutinados a nomes, percebemos no sintético poema uma impressionante gama de tais sinais (s, se, si), basicamente na primeira estância: “SImone é o nome do desejo/ que também pode SER SÉRgio/ SER SÔnia CÉlia, pode até/ SIdônio, pode atar CInara/ pode ater-SE em SÍLvio”. O que se encena nessa sequência de SI SER SÉR SER SÔ CÉ SI CI SE SÍL é a própria hesitação ou aventura da experiência, da formação, do afeto. Feita a iniciação, na estrofe seguinte preponderam os fonemas linguodentais /d/ e /t/ e o velar /k/, contundentes, decisivos, que destacam uma posição: “QUANDO o DEsejo é TODO COSme / por mais QUE eu iveTE / eu TEoDOro”. A decisão se dá (pensando na relação entre som e sentido) não só por meio da mudança de hegemonia de um fonema deslizante a outros contundentes, mas também por meio da criação de uma nova estrofe a anunciar a passagem e, por fim, por meio do recurso visual que dá primazia a “teodoro” em detrimento de “ivete”. (Ver, a propósito, O estudo analítico do poema, de Antonio Candido, sobretudo o capítulo dedicado à sonoridade.)
A dança dos sons encontra eco em outros lances anagramáticos: nome sai de simone, ser entra em sérgio, sônia puxa sidônio, atar ci-quer ater-se, todo está em teodoro. (Algo similar fez Paulo Leminski em poema de La vie en close: “isso sim me assombra e deslumbra / como é que o som penetra na sombra / e a pena sai da penumbra?ˮ.) Embora às claras, sutilmente percorre o poema um anafórico pode a cada vez acompanhado por um parceiro ou uma parceira: pode ser sérgio/ pode até sidônio/ pode atar cinara/ pode ater-se em sílvio. Ou seja, diz o poema, todo o mundo (todo cosme) deve e pode ser capaz de escolher e exercer a sexualidade, ou sexualidades, que desejar. A despeito de censuras, normas, instituições (e não se ignora o enorme poder coercitivo desse conjunto de repressões de toda ordem), o desejo do poema se vincula ao desejo do corpo, e para ele abre as comportas da linguagem.
O terceto que fecha o poema é de rara felicidade, parecendo mesmo um bem-humorado happy end do sujeito que se encontra consigo no outro: “quando o desejo é todo cosme/ por mais que eu ivete/ eu teodoro”. “Cosme” remete ao grego kósmos — universo, mundo; mas todo cosme é o desejo que se quer sem fronteiras de gênero, ainda que cercado por elas. Não escapa do leitor o hilário trocadilho “por mais que eu ivete”, em que se intromete a conhecida expressão “por mais que eu evite”. A ambivalência onipresente no poema chega ao auge, por meio de um recurso tido tantas vezes como inferior: o trocadilho, no entanto, entre ivete e evite se estende ao verso final, quando uma parte da máquina do poema se entreabre no neologismo: eu teodoro (em vez de “eu te adoro”). O verso final se articula, circular, ao título — Bandeira 2, e somos levados ao célebre poema Neologismo, de Manuel Bandeira:
Beijo pouco, falo menos ainda.
Mas invento palavras
Que traduzem a ternura mais funda
E mais cotidiana.
Inventei, por exemplo, o verbo teadorar.
Intransitivo:
Teadoro, Teodora.
No poema de Bandeira, o poeta cria um verbo, “teadorar”, que conjuga (“teadoro”) para mostrar seu “intransitivo”, intransmissível amor pela amada, que atende pelo nome de “Teodora”. Já no poema em pauta, Raimundo Carvalho mantém com sensibilidade o espírito amoroso e trocadilhesco de Bandeira, criando um “novo neologismo”: “eu teodoro”. Nem teadoro, nem Teodora: teodoro. Amor que ousa dizer os nomes. O poema de Bandeira pertence a Belo belo e está datado: 25/02/1947; o poema de Raimundo está em livro da década de 1980. Entre um tempo e outro, entre um poeta e outro, entre uma geração e outra, muitos amores, muitas metamorfoses, muitas histórias se passaram. Não se trata de gesto inaugural de poesia homoafetiva, pois dela há uma antiga tradição na literatura e na arte, no Brasil e no mundo (ver, por exemplo, os livros Devassos no paraíso, de João Silvério Trevisan, e Por que calar nossos amores? Poesia homoerótica latina, organizado por Guilherme Gontijo Flores, Márcio Meirelles Gouvêa Júnior, João Angelo Oliva Neto — e Raimundo Carvalho). Trata-se, antes, de perceber a delicadeza com que o tom alegre do amor heteronormativo do poema de Bandeira ganha abrigo no tom também alegre e lúdico do poema de Raimundo.
Lúdico porque, além da declarada paródia (no título e no verso final), outra dobra se faz ver, se recordamos que “bandeira 2” é licença do poeta ao tomar de empréstimo a expressão dos profissionais taxistas que significa, em épocas ou horários especiais, a cobrança de uma taxa mais elevada que a normal. Assim, o título remete a esse “outro Bandeira” que o poema de Raimundo elabora (de Teodora a teodoro), tal como afirma o elevado valor de tal elaboração, escolha, alteridade, desejo, neologismo. A intertextualidade crítica e amorosa coroa a beleza singela e despudorada do poema de Raimundo, que se diverte ao insinuar que o preço diferenciado a pagar — bandeira 2 — fica na conta do leitor.
Por fim, para fazer jus ao clima de época do livro Sabor plástico, de 1983, que se localiza na transição de uma poesia marginal para uma poesia “profissional”, do relaxo ao capricho, ecoa ainda no título do poema a expressão “dar bandeira” (mais em voga outrora): “deixar escapar algo que não podia ou não devia ser divulgado; expor-se, fazer uma inconfidência, ger. por lapso ou ingenuidade” (Houaiss). Logo, “dar bandeira” era e é uma espécie de lapsus linguae, sob as rédeas do inconsciente. No poema, todavia, a bandeira é dada desde o título, e se colore ao longo dos versos: não há o que esconder, pois qualquer maneira de amor vale a pena, vale amar. E, ao cabo, o poeta opta por teodoro, nome cuja etimologia significa “presente de Deus”, “dádiva divina”. Pelo nome, o profano se consagra.
Em artigo de 1992, Demarcando terrenos, alinhavando notas, Italo Moriconi afirma que “a glória do poema é libertar-se de seu contexto original para poder renascer em qualquer outro”. O belo poema de Bandeira consegue esse feito. E o belo poema de Raimundo consegue refazer esse feito, essa glória, que tem também um tom político, de afirmação de um querer, contra os estereótipos e preconceitos do senso comum. Em tempos de treva e violência, de burrice e caretice, nada melhor para a vida cotidiana do que contemplar a beleza de um poema sobre o desejo. Seduzidos, e cúmplices, os leitores (teodoros desejados pelos poetas) também sentimos a glória do poema acontecer em nós.