Existe uma pequena pousada a beira-mar em Búzios, no estado do Rio, denominada Casa da Joana. Fica na parte quase central da praia de Geribá. Tem dois andares, entre oito e dez quartos, metade no térreo, metade no segundo piso. Como estilo arquitetônico, faz o gênero colonial délabré, ou seja, é um desses imóveis que talvez ganhassem com uma nova mão de tinta aqui ou ali — sem que a ausência da melhoria seja propriamente notada pela administração ou reclamada por sua clientela.
Ao contrário, tudo naquele espaço, bem como em seu entorno, prima por uma elegante casualidade, fronteiriça ao desleixo; e qualquer pequena falha que se registre (lâmpadas a serem trocadas, uma poltrona em busca de estofamento), é compensada pelo calor humano das pessoas que cuidam dos hóspedes — e dos espaços por eles navegados —, atenções que se estendem ao jardim e ao deck debruçado sobre o mar.
Este último é mar aberto, bem típico de Búzios na maioria de suas praias, com ondas de arrebentação distantes da orla, o que as transforma em espuma na parte mais rasa das águas, onde crianças e idosos se banham em segurança.
Fora ocasionais salgadinhos, a pensão não serve nem almoço, nem jantar. A restrição, que contribui para o perfil discreto da cozinha, obriga os visitantes, ao entardecer, a partir em busca de locais onde possam se alimentar — para daí bater pernas pelas lojas e barracas ao ar livre do balneário.
Os clientes da pousada, alguns vindos do Rio, outros da vizinha região dos grandes lagos, são fiéis a Joana. Por seu lado, a hoje octogenária senhora corresponde à lealdade sorrindo de uma poltrona próxima à entrada, de onde imagina comandar domínios desde muito confiados à filha e ao genro.
Nada cheira a dinheiro ou ostentação naquelas paragens, mas tudo funciona a contento. Na parte da manhã, os hóspedes se distribuem pelas mesas próximas à piscina, ou na faixa estreita de areia em frente, onde dividem o espaço com outros turistas abrigados em pensões ou hotéis vizinhos. E os dias transcorrem sem pressa.
Em um fim de tarde, porém, um homem, acompanhado pela filha e a neta, chega à pousada. Os três se dirigem aos aposentos para eles reservados, instalam-se em questão de minutos — e tomam o rumo do deck. Na praia, uma brisa agita a vegetação rasteira perto das dunas.
Naquele horário, o deck se encontra vazio, exceto por um casal sentado a uma mesa de canto. De olho na arrebentação visível ao longe, pai e filha respiram fundo, enquanto a criança hesita entre o mar e a piscina. Próximo à linha do horizonte, o sol começa a se pôr.
De mãos dadas, avô e neta cruzam a portinhola de madeira que separa a praia da pousada. E descem com cuidado a pequena trilha que leva ao mar. Com a ponta do pé, a menina verifica a temperatura da água.
Devido à maré alta, a faixa de areia na qual se encontram estreitou-se ainda mais. O homem passeia um olhar distraído pela paisagem. Registra à direita, a certa distância, meia dúzia de pessoas sentadas em semicírculo. Conversam entre si, enquanto passam cestas ou garrafas de mão em mão.
Um piquenique, pensa o homem. Não parecem turistas, devem ser locais.
Não longe do ponto escolhido pelo grupo, a praia forma uma ligeira enseada. Avô e neta tomam essa direção. Ele tenciona dar um mergulho, ela recolher conchas que enriqueçam sua coleção. A meio caminho, a menina dá adeus à mãe que, do alto do deck, acena de volta. A figura esguia da mãe, cabelos ao vento, acompanha o passeio dos dois por um momento.
Chegados à parte da orla onde o mar está de fato tranquilo, a criança se senta na areia e opta pela construção de um castelo. O avô segue os progressos de perto. Depois, tira a camisa e se aproxima da água. Conhece os perigos do mar, frequentou muitas praias pela vida afora. Chegou, no entanto, a uma idade em que já não confia em suas forças. Em particular os joelhos, que por vezes baqueiam e cedem sob seu peso. A verdade é que, como costuma apregoar aos mais chegados, já não é o mesmo.
Passa, então, a apreciar a dança das ondas. Satisfeito de que nada têm de ameaçadoras, avança com prudência até ter o mar pela cintura — e por ali fica.
Na praia, a neta segue edificando o castelo. A cada instante, o avô ergue a cabeça e a procura com o olhar, um gesto que repetirá mecanicamente ao longo desse fim de tarde. Quanto à filha, desapareceu de seu raio de visão.
Terá deitado em uma das espreguiçadeiras do deck, deduz. Checa de novo a neta. Sabe que, sem permissão, ela jamais entraria na água. Não há, portanto, por que se preocupar. Pode se dar ao luxo de boiar e contemplar as nuvens.
No geral, mantém-se senhor de seus movimentos. E quando uma ou outra onda o envolve, não opõe resistência: deixa-se levar. O mar o ampara e de certa forma o protege. Perder o equilíbrio e rolar de um lado para outro só aumenta o prazer.
Tudo somado, um belo final de tarde em uma viagem perfeita. A filha dirigiu de forma impecável — herdou dele a habilidade e os reflexos rápidos. E ele, cada vez mais xingado por choferes de táxi, ônibus ou caminhões (por falhas que não reconhece como suas), fez bem ao lhe confiar o carro.
Felicita-se diante da perspectiva de passar o fim de semana nesse cantinho de paraíso. Calcula que, hoje, talvez seja o mais velho habitué da pousada. E ri, pois em certa época vivera uma pequena história com Joana, naqueles idos uma aguerrida quarentona. Coisa casual e descomplicada, bem no espírito da pousada.
Agora, o tempo das aventuras passara: além da filha e da neta, viajara apenas com dois livros e várias revistas. É provável até que a dama nem dele se recordasse. Difícil saber e, de qualquer forma, melhor não arriscar.
Vira-se para a neta. Ela acena em sua direção, dando uns saltinhos na areia. Ele retribui agitando os braços. Disparam palavras que se perdem ao vento.
Percebe que, não longe dela, o grupo deu por encerrado o piquenique. Nota que, na realidade, são oito ou nove pessoas, algumas delas à beira d’água. Repara na presença de uma menina. Um casal ampara a criança que se debate nas ondas.
Trazido pela brisa, o riso dos três chega a seus ouvidos. Um pouco acima, sinais de fim de festa, toalhas sendo sacudidas e pertences recolhidos. Gaivotas desenham círculos no céu, a maré se mantém alta. Na linha do horizonte, o sol se pôs.
O homem pensa na filha, às voltas com um divórcio que parece inevitável. A essa altura, o genro já terá saído de casa. Ao regressarem, a rotina da pequena família irá mudar. Chega a se perguntar se teria sido boa a ideia de chamar mãe e filha para passar esses dias em Búzios. Ambas adoram o lugar, é certo. Mas há momentos em que é preferível enfrentar certos desafios a evitá-los.
O que fazer diante desse gênero de encruzilhadas?
Era o tipo de pergunta com que se deparara mais de uma vez ao longo da vida. E que o leva a suspirar enquanto lida com as espumas ao redor. Revisita então antigas mágoas, pois em outros tempos trilhara percurso semelhante. Sabe o que aguarda filha e neta quando retornarem ao lar: uma casa semidesfeita, alguns móveis retirados, paredes despojadas de quadros, estantes meio vazias, livros empilhados a um canto, plantas necessitando de água, o cachorro vagando pelo corredor…
A filha sobreviverá. Saiu a ele, é teimosa e forte. Mas e a neta? Adora o pai e é tão jovem… Saberá lidar com os desafios que a esperam?
Deixa as aflições de lado e se entrega por completo às águas. Paciência, repete para si mesmo, enquanto dá algumas braçadas a esmo, daqui para frente será um dia depois do outro. E, novamente, busca a neta com o olhar.
Ela caminha em círculos em torno do castelo como se o inspecionasse, ou estivesse à procura de conchas. Ao lado, seus companheiros de praia acenderam um fogo na areia. A temperatura deve ter caído, ele pensa. Duas das mulheres regressam de arbustos vizinhos trazendo gravetos. Uma terceira carrega no ombro um fardo de aparência pesada, que leva com dificuldade até a parte mais elevada das dunas, atrás das quais desaparece. Junto à fogueira, alguns deles se mantêm atentos às labaredas que resistem à brisa.
O homem calcula que em uns momentos mais precisará deixar a praia, pois a noite cai. Lamenta-se por ter esquecido a toalha no deck. Decide que correrá com a neta rumo à pousada. Uma corrida que, para a alegria de ambos, ela vencerá com folga desde a largada.
A neta…
Envolta em uma luminosidade difusa, ela gira na areia movendo os braços, como se, embalada por alguma melodia, recitasse versos que mergulhassem no sono os habitantes do castelo. Certas crianças viviam em órbitas enigmáticas de tão pessoais, ele pensa. Em qual delas se perderia a menina?
Decorridos alguns instantes mais, e quase a contragosto, deixa o mar. E esfrega energicamente as mãos pelo corpo, tentando neutralizar os efeitos da brisa sobre a pele. Aproxima-se da criança, que interrompe o movimento circular e, imóvel, ergue um rostinho fechado.
Surpresos — e, sem transição, atônitos —, seus olhos fixam a menina. Sob o impacto do que vê e do que não vê, os joelhos cedem. A criança grita ao vê-lo desabar sobre o castelo. E corre para sua gente. O círculo fecha-se de imediato à volta dela.
De quatro na areia, ergue-se com dificuldade. E, tropeçando a ponto de quase cair novamente, avança em direção ao grupo. Lá chegado, arfante, investe como um bêbado contra as pessoas. Aponta para trás, desesperado. Minha neta! grita sem fôlego, como se o berro, por si só, tudo explicasse.
Olham todos para trás. Mas ali, fora as ruínas do castelo, nada restara.
As mulheres abraçam a menina. Menos uma delas, pensa. A que sumiu colina acima carregando o fardo.
O grupo o cerca, três jovens o seguram com firmeza. Indignados, barram o acesso à menina. Debate-se. Descobre-se mais forte do que supunha. A gritaria é geral. Como cegos brigando no escuro, acusam-se sem saber ao certo de quê.
Por fim, em meio ao tumulto, faz-se um silêncio.
A menina falou. Um fiapo de voz, se tanto, mas algo disse. E moveu a mão. Debruçado sobre ela, o grupo se imobiliza. E, aos poucos, murmúrios tomam forma. Decorrido um momento, fragmentos chegam a ele.
A neta saiu correndo! Nossa filha foi ver o castelo. Só ver. Sem tocar.
A neta. Nossa filha. A neta correu. Nossa filha foi ver o castelo…
Sua neta jamais correria, deixando-o sozinho no mar. Não foi culpa minha, insiste o fiapo de voz. A ansiedade a domina, o terror o corrói. Nada faz sentido.
Nisso, uma senhora abre espaço entre os homens e pousa a mão sobre seu braço. Sem soltá-lo, põe-se a caminhar. E ele se deixa levar. Uns passos atrás, o grupo põe-se em marcha. Dirigem-se à pousada.
Os contornos do deck surgem na penumbra. Ao chegarem à portinhola, o grupo para. A mulher aponta para a trilha. Após um momento de hesitação, ele se arrasta degraus acima.
O tempo passa. A brisa se mantém suspensa sobre a pousada. Do tempo e da brisa, são todos reféns. Até que…
…as luzes do deck se acendem. E, do alto do palco iluminado, uma menina sorri.
Mais tarde, em mesas contíguas, todos bebem, celebram e brindam. Repetem como mantra os gritos da neta:
“Dor de barriga, vovô! Foi dor de barriga!”
Indignada com os risos que só fazem crescer, a menina insiste: “Eu gritei vovô! Eu avisei!” E vai além: “Você me deu adeus…”.
Em contraponto festivo, o coro recita: “Dor de barriga, vovô! Dor de barriga…”.
Do pânico ao susto e, deste, ao alívio. Tingido por um absoluto constrangimento — que o promove de idoso a ancião.
Magnânimo, o grupo o perdoa. Seus integrantes têm outras prioridades. Entre elas, o céu estrelado. Alguém aponta para o alto. Uma lua cheia, baixa e amarelada, quase oval de tão irreal, é saudada com respeito. Na sequência, os visitantes se despedem. É tarde e, para eles também, a vida continua.
Na cama, o homem revê as cenas noturnas. Pouco falara, de tão debilitado. A exemplo das duas meninas, mantivera-se distante, acanhado como elas.
Exausto, fecha os olhos e tenta adormecer.
No lugar do vento rasteiro que sopra por entre as dunas, porém, é uma leve batida que escuta. Muito próxima, quase um afago na madeira. Mas insistente… Pela porta entreaberta, a fresta de luz chega à cama. A voz, baixa, é familiar:
Oi, paizinho…
A filha se aninha na cama. Como fazia em menina. Pergunta como está.
Que confusão você arrumou… — brinca. — E que susto, papai.
Mais baixo ainda, ao pé do ouvido, o sussurro:
Dor de barriga, vovô…
E ri, abraçada a ele.
Ainda seria possível evitar que a casa da filha se desfizesse?
Não era a hora de trazer o assunto. Os castelos se fragilizavam ao menor contato, as pessoas se perdiam nas areias ou eram levadas pelo vento. Não convinha abusar da sorte. Sobretudo quando ela se revelava de tal forma instável.
Já não era o mesmo…
Conformado, despede-se da filha — que se retira em silêncio. A fresta de luz desaparece e, sem ruído, a porta é fechada.