🔓 Sem tréguas

Sempre foram os loucos, os desviantes, os fora da norma que nos salvaram; a única possibilidade de futuro é a periferia
Dom Quixote em ilustração de Salvador Dalí
18/03/2021

Vou confessar aqui para vocês que às vezes eu procrastino de propósito, como uma metodologia consciente para estimular a produção. Nada me faz trabalhar tão bem e tão rápido quanto um prazo mordendo meu calcanhar.

Especialmente quando o trabalho — como o que acabei de entregar, faltando 10 horas para o prazo final e que eu tive um tempo generoso para concluir — pertence à esfera bancária. A outra esfera, a do afeto, é normalmente feita com ampla antecedência.

Antigamente eu usava aquele método de fazer as piores tarefas primeiro. Funciona, mas com o avançar da idade essa classificação do que é pior ou melhor se tornou menos clara. Os limites entre a necessidade e o desejo nem sempre são muito agudos. Além disso, as variáveis são muitas e complexas. Posso, por exemplo, ter uma tarefa desagradável com um prazo médio e precisar decidir essa fila fordista de produção por critérios aleatórios. Então, adotei o caos e o pânico como critério.

Essas metodologias conhecidas, como Pomodoro, GTD, Smart, Milk run, Teoria de Pareto, Matriz de Eisenhower e outras invenções do capitalismo funcionam mais ou menos como roupa. Tem gente que se sente melhor de calça jeans, outros de bermuda, outros nus. Você escolhe um e vai. Nunca consegui fazer isso, o que talvez explique a minha moda pandêmica de camisa social, calça de moletom e chinelo. Agora, gravando vídeos para um projeto pessoal, implementei mais uma bizarrice: batom, camiseta e pijamas. Te cuida, Vogue!

Tenho visto as pessoas cada vez se importando menos com aparência, vestuário ou modos. Só podemos oferecer polidez quando a temos. Não dá para mostrar algo que não existe, que nos foi tomado, privado, roubado. A educação, no nosso caso, virá dentro de uma seringa. Se vier.

A sanidade mental do brasileiro, que nunca foi lá essas coisas, anda de mal a pior. Cada vez que abro o jornal, escuto neurônios agonizando.

Outro dia fui acordada às cinco da manhã por um morador de rua cantando Andança. Foi uma cena tão bonita que nem consegui ficar zangada pelo horário.

Já me fiz a guerra por não saber (me leva, amor)
Que esta terra encerra meu bem-querer (amor)
E jamais termina meu caminhar (me leva, amor)
Só o amor me ensina onde vou chegar
(Por onde for, quero ser seu par)

Sempre foram os loucos, os desviantes, os fora da norma que nos salvaram. A única possibilidade de futuro é a periferia.

O lado bom disso tudo é que, no momento, estamos todos um pouco dementes.

Sairemos dessa pandemia um pouco mais loucos. Não acho ruim. Preferia chegar na loucura sem uma pandemia mundial e incontáveis mortes, mas ainda assim é um resultado a se considerar positivo. Falta loucura no mundo. Falta loucura e raiva. Não é hora de calma, não. É hora de uma revolução.

Vamos, sem tréguas, somos mesmo assim.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho