Fenômeno colombiano

Pilar Quintana, autora do elogiado "A cachorra", venceu prêmios em seu país e no exterior com uma escrita simples, mas cheia de significados
Pilar Quintana, autora de “A cachorra”
20/03/2021

*Colaborou Rogério Pereira

A colombiana Pilar Quintana vive uma espécie de conto de fadas literário. Seu livro A cachorra, publicado em 2018, ganhou e foi finalista de dois dos maiores prêmios literários da Colômbia. Também foi finalista do National Book Award, dos Estados Unidos, na categoria literatura traduzida.

No começo deste ano, o romance inédito Los abismos lhe valeu o Prêmio Alfaguara, um dos mais prestigiosos em língua espanhola. Esses prêmios chancelaram sua obra, que ganhou tradução em diversos países. Mas Pilar não é uma estreante. É autora de outros três romances e um livro de contos.

Suas histórias curtas, permeadas de violência, lhe valeram comparações com Rubem Fonseca, de quem ela é leitora. Em A cachorra, primeiro e único título de Pilar publicado no Brasil, a violência se manifesta introspectivamente no âmago dos personagens — dilacerados pelos mais diversos problemas. Ambientada em uma região litorânea e pobre da Colômbia, a narrativa discorre sobre as frustrações de Damaris, que impossibilitada de ter filhos, adota uma cadela, batizada com o mesmo nome da filha que nunca chegou a ter.

Com uma linguagem econômica, o romance abarca uma quantidade enorme de temas, que vão desde o papel da mulher na sociedade, a pobreza em contraste com a exuberante natureza e a passagem do tempo na vida dos personagens.

Para Pilar, está difícil a literatura “competir” com a vida real, então a “realidade nunca é pura na minha ficção”, diz em entrevista via e-mail. “A origem das minhas ficções é sempre a experiência: uma emoção, um trauma, um medo, uma dor, algo que não me aconteceu, mas que poderia ter acontecido, algo que quero reviver. Construo a partir daí.”

Ela também fala sobre o legado de Gabriel García Márquez, uma espécie de “avô literário” para ela, mas que em certo momento representou uma sombra para novos escritores colombianos, que tiveram de conviver com a grandiosidade do autor de Cem anos de solidão. Mas, para Pilar, Gabo, para além de sua qualidade literária, mostrou que “os colombianos podíamos ser escritores e nos destacarmos”.

É o que Pilar tem feito, escrevendo e se destacando. “Estou muito satisfeita com o desenvolvimento da minha carreira. É uma grande satisfação que A cachorra possa ser lido em tantos países do mundo.”

• A primeira coisa que chama a atenção em A cachorra é a linguagem enxuta, com frases curtas, mas que ainda assim mantém a narrativa com excelente ritmo, sem que torne a leitura “picotada” e chata. Como pensou a escrita do livro? O estilo é algo que se escolhe ou é uma força natural?
Gosto de dizer que o estilo na escrita é como o modo de andar: algo que vem naturalmente. Somente quando alguém nos faz notar nossa forma de caminhar é que prestamos atenção e nos aprumamos ou até fingimos parecer elegantes. Creio que o escritor já vem com um estilo, uma tendência a escrever de certa maneira. A escrita, no entanto, sempre é elaboração e então o estilo também é algo deliberado em que trabalhamos até conseguir o efeito desejado. Acredito que o estilo, a marca do escritor, é sempre um pulso entre o escritor que se é e o escritor que se quer ser.

“Acredito que o estilo, a marca do escritor, é sempre um pulso entre o escritor que se é e o escritor que se quer ser.”

• Por falar em concisão, o release de divulgação do livro no Brasil informa que você o escreveu em um celular, enquanto amamentava. Como foi esta experiência?
A história de A cachorra me veio quando eu estava grávida. Comecei a trabalhá-la em uma caderneta: a definir as ações narrativas e pensar os personagens e o universo. Quando meu filho nasceu, tive que largar essa caderneta e dedicar-me plenamente a criá-lo. Meu bebê já tinha nove meses e o mapa da história continuava na caderneta. Cada vez que entrava em meu estúdio, eu a via sobre minha escrivaninha e era como uma queixa. A história queria ser escrita, me chamava, me pedia que a escrevesse. Mas a criança me absorvia e o único momento livre era quando meu filho dormia à tarde, que fazia enquanto mamava; se eu me distanciasse dele, acordava. Então não me sobrou alternativa exceto escrever o romance no celular. Foram quatro meses intensos que me permitiram escrever o primeiro rascunho. Logo seguiu-se o trabalho de reescrever e corrigir, que foi muito mais longo.

• Questões femininas estão no centro da sua literatura. Em A cachorra, por exemplo, a impossibilidade de engravidar atormenta a protagonista. Apesar dos avanços e conquistas, quais são os desafios mais urgentes para as mulheres?
As mulheres fazem parte da força de trabalho tanto quanto os homens, ainda que ganhem menos, e trazem dinheiro para o sustento da casa. No entanto, a maior parte das responsabilidades domésticas e de cuidado continuam recaindo sobre as mulheres. Os homens de hoje “ajudam” com as tarefas domésticas e participam da educação dos filhos, mas ainda não assumem essas responsabilidades. Precisamos que o façam, que trabalhem em casa de igual para igual conosco.

• A chilena Lina Meruane discute em Contra os filhos o direito de não ser mãe, de não engravidar. Você tem um filho de cinco anos. Como lida com a maternidade, para além da idealização da plena realização como mulher? Você ainda considera que as mulheres sofrem muita pressão para que tenham filhos?
A maioria das minhas amigas teve filhos quando tinham entre 30 e 40 anos. Nessa idade eu não queria ter filhos. Muitas vezes, várias pessoas, conhecidas ou não, me perguntavam por que eu não tinha e até tentavam me fazer mudar de opinião. Entendo que para muita gente isso pode configurar uma pressão. Eu, devido à minha personalidade, não sentia assim. Sempre fui independente e segura nas minhas decisões. Deu-me vontade de ter um filho depois dos 40. Era mulher feita e consciente, e meu filho foi esperado e querido. Mesmo assim, creio que nunca me pintaram um retrato realista da maternidade. Nossas avós, tias e mães só nos contaram as partes luminosas. O conceito de mãe, na nossa cultura, é idealizado: a mãe é uma santa entregue a seus filhos e não tem permissão de articular seus objetivos nem de falar negativamente de sua experiência. Acredito que cada vez mais mulheres possam escolher livremente ser mães ou não. Isso é muito bom. O que ainda falta é desmistificar a maternidade a apresentá-la como é, de uma maneira realista, com sua luz e sua escuridão, para que as mulheres que escolham ser mães o façam com conhecimento de causa.

• Quais conquistas considera mais importantes em relação às mulheres ao comparar, por exemplo, a sua geração à de sua mãe?
Na geração de minha avó muito poucas mulheres tinham profissão. Minha avó e suas amigas, todas, eram donas de casa. Na geração de minha mãe havia mais profissionais, mas ainda eram uma minoria e seu objetivo definitivo era ter uma família. Elas tiveram muita dificuldade. As que trabalhavam fora de casa ainda tinham que assumir completamente os trabalhos domésticos e de cuidado, porque seus cônjuges não participavam disso. Eram atendidos e tratados como reis. Muitas das que não estudaram e foram donas de casa ficaram à deriva quando seus filhos cresceram e se tornaram independentes. Haviam cumprido seu papel como mães e não tinham mais interesses nem funções na vida. Uma tragédia. Das mulheres de minha geração se espera que estudemos e trabalhemos e mais tarde formemos uma família. Mas se estudamos e trabalhamos, se conseguimos a independência econômica, podemos burlar a ordem social de formar uma família e nos dedicarmos a nossas profissões ou ao que quisermos.

• O aborto acaba de ser legalizado na Argentina – o que causou grandes discussões também nos países vizinhos. Para além das questões religiosas, qual é sua opinião sobre este tema que sempre mobiliza a opinião pública?
O aborto não é bonito. Ninguém quer abortar nem o faz como método anticoncepcional. As mulheres abortam porque precisam, porque engravidaram sem estar preparadas para ser mães, porque não querem ou porque não podem ser mães. As mulheres abortam desde o princípio da história e vão continuar a fazê-lo independentemente das leis o proibirem. Por isso, o aborto deve ser legalizado. Porque não é questão de moral e sim de saúde pública. O aborto legal é necessário para que as mulheres que necessitam abortar o façam de forma segura. Agora, legalizar o aborto não o torna obrigatório. Ninguém é obrigado a abortar se não quer e se isso vai contra seus princípios.

• Durante anos, a Colômbia esteve no centro do noticiário internacional devido à violência do tráfico de drogas e dos embates entre as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo – o que criou um estereótipo dos mais equivocados. Como você define seu país atualmente? O que é a Colômbia?
Na Colômbia, neste momento, há um governo de ultradireita que prometeu romper com os acordos de paz e está se aplicando a fundo para conseguir isso. Há massacres toda semana. Assassinam líderes sociais toda semana. E nada acontece. Não há medidas do governo para impedir que isso continue. É um governo que beneficia as grandes empresas e corta as necessidades básicas dos salários dos pobres e da classe trabalhadora. Acho muito difícil que haja uma mudança na Colômbia se não houver uma mudança de governo e de políticas de Estado.

Pilar Quintana, autora de “A cachorra”

“Sempre fui independente e segura nas minhas decisões. Deu-me vontade de ter um filho depois dos 40. Era mulher feita e consciente, e meu filho foi esperado e querido.”

• Você acaba de ganhar o Prêmio Alfaguara pelo romance Los abismos. Qual é a importância de receber um dos mais importantes prêmios em língua espanhola?
Já se passaram semanas desde o anúncio do prêmio e ainda estou um pouco perplexa, porque ainda não acredito que fui eu que o ganhei. Los abismos foi um romance que me custou grande trabalho para escrever: mais de cinco rascunhos e mais de quatro anos. Gosto de ver o prêmio como um reconhecimento a esse trabalho.

• Seus livros circulam em diversos países em traduções. Sente-se bem no circuito literário, em estar em eventos, conversar com outros autores, etc.?
Estou muito satisfeita com o desenvolvimento da minha carreira. É uma grande satisfação que A cachorra possa ser lido em tantos países do mundo. Por outro lado, o trabalho da escrita é solitário e isolado. Os eventos e as entrevistas tiram o escritor do isolamento e o colocam em contato com os leitores e com outros autores. Isso é bonito. Creio que às vezes, se os convites são muitos, pode se tornar excessivo. Então é necessário encontrar o equilíbrio e aprender a ajustar o tempo de solidão e isolamento com o tempo de sair e falar com outras pessoas.

• Algumas das marcas de A cachorra são a concisão, a economia narrativa, a busca da palavra certeira. Como leitora, é também este tipo de literatura que a encanta?
Sou uma leitora muito eclética. Me encantam os autores econômicos, como Alessandro Baricco e Agota Kristof, mas também os excessivos e enfeitados. Gosto dos romances longos e curtos, o realismo e a ficção científica. Leio tudo. Até o rótulo do shampoo.

• A realidade se infiltra pela sua literatura para dar potência à ficção. Como é o seu trabalho de equilibrar a “invasão” da realidade em sua obra?
Acredito que a realidade nunca é pura na minha ficção. A origem das minhas ficções é sempre a experiência: uma emoção, um trauma, um medo, uma dor, algo que não me aconteceu, mas que poderia ter acontecido, algo que quero reviver. Construo a partir daí. A base é real, mas pelo caminho, distorço, misturo, imagino, transformo, e então o resultado é sempre um Frankenstein.

• No Brasil atual, há certo consenso de que a realidade anda tão absurda, que é cada vez mais difícil para os ficcionistas surpreenderem os leitores. Como vê essa questão? Qual o lugar da literatura no mundo hoje?
Estou de acordo. Acredito que a realidade supera de longe a ficção e que nunca podemos competir com ela.

• De que maneira a quarentena causada pela pandemia de covid-19 afetou sua rotina como escritora? Acredita que terá algum impacto sobre seus próximos livros?
Meu filho começou a frequentar o jardim de infância com três anos. Com quatro entrou na escola. Isso me permitiu voltar a ter um quarto só meu, como o que se referia Virginia Woolf, para dedicar-me à escrita e a outras coisas que gosto de fazer, como ler ou correr. Com a pandemia, meu filho voltou a estar em casa 24 horas por dia e foi como voltar a ter um bebê. Ele já tinha cinco anos e alguma independência, mas ainda precisa de atenção constante. Foi difícil escrever assim. Por sorte, o manuscrito de Los abismos já estava avançado e, mesmo demorando mais tempo do que o esperado, consegui terminar para enviá-lo antes que encerrassem as inscrições para o prêmio.

• Quais os principais desafios que você se coloca no momento de escrever, quando está produzindo ficção?
Fazer com que a história seja verossímil: que o leitor acredite nela e sinta que é real.

“O aborto legal é necessário para que as mulheres que necessitam abortar o façam de forma segura. Agora, legalizar o aborto não o torna obrigatório. Ninguém é obrigado a abortar se não quer e se isso vai contra seus princípios.”

• O que a levou a ser escritora? Houve um momento-chave em sua vida ou foi um processo contínuo de construção?
Não sei a resposta certa. Talvez eu fosse mal em matemática e me desse bem nas letras. Talvez eu estivesse insatisfeita com o mundo e gostaria de inventar outros.

• Você realiza oficinas de criação literária. Quais são as maiores dificuldades e inquietações dos seus alunos, daqueles que começam a dar os primeiros passos na ficção?
Acho que alguns escritores aspirantes pensam na literatura como algo elevado e então tentam ser inteligentes, poéticos, estranhos ou complicados, e não se dão conta de que a melhor história talvez seja simples e esteja diante deles.

• Como os jovens autores colombianos se relacionam com o legado de Gabriel García Márquez? Ele em algum momento representou uma sombra para novos escritores?
Sim, houve uma geração que sentiu a sombra de García Márquez sobre si. Autores como Ramón Illán Bacca, falecido recentemente, que também era da costa caribenha, tiveram que escrever nesse lugar ingrato. Para minha geração não foi assim. Eu li grande parte de sua obra muito jovem, na escola, e sempre o tive como um avô literário, que me ensinou muitas coisas, entre as quais, que os colombianos podíamos ser escritores e nos destacarmos.

• Aliás, por falar em grandes autores, você já foi comparada a Rubem Fonseca, por conta da violência presente em algumas de suas histórias. A comparação é pertinente? O escritor brasileiro é parte de seu cânone?
Sim, é. Gosto muito de seu modo preciso de narrar e de seu olhar sempre agudo sobre a sociedade e as situações.

• Como é a recepção da literatura brasileira na Colômbia? Quais autores/obras brasileiros você conhece e considera importantes?
Tenho que confessar que não sou uma grande conhecedora da literatura brasileira e que tenho muito por ler. No meu templo estão Rubem Fonseca, Nélida Piñon e a grande Clarice Lispector. Tenho muita vontade de ler Ana Paula Maia. Um de seus livros está na minha pilha de prioridades de leitura.

• Nabokov afirmou que certos escritores não existiam para ele. Um deles era William Faulkner. Que autores importantes não te interessam?
Vou fazer uma confissão fácil: James Joyce.

• O que mais te causa medo no mundo atual?
Certas teorias da conspiração como as dos terraplanistas, os antivacina e as de QAnon. Me apavora a falta de confiança na ciência e na informação verificada.

Tradução: Vivian Schlesinger

A cachorra
Pilar Quintana
Trad.: Livia Deorsola
Intrínseca
160 págs.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

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