🔓 Para gostar de ler

O ideal nas escolas é a junção de autores clássicos ao lado de contemporâneos, num diálogo que estabeleça pontes e permeie formas, temáticas, ambiências
27/01/2021

Parafraseando a canção do Titãs, a maior polêmica de todos os tempos da última semana foi a declaração de Felipe Neto sobre os escritores adotados nas aulas de literatura pelas escolas brasileiras. O youtuber declarou que impor aos jovens a leitura de autores como Machado de Assis e Álvares de Azevedo é um desserviço, já que suas obras não seriam para adolescentes.

Como é costume nos debates travados nas redes sociais, a treta teve muita estridência e pouquíssima análise. De um lado da trincheira, ficaram aqueles que advogam ferrenhamente a escolha dos clássicos. Do outro, os defensores de um programa mais contemporâneo. Ambos têm razão.

O principal impasse, a meu ver, é justamente a falta de um lugar do meio. Em curto texto sobre o assunto, a dramaturga Daniela Pereira de Carvalho foi feliz ao tocar num ponto que nublou a discussão: a confusão entre ensino disciplinar da literatura e prática literária. “O ensino disciplinar da literatura é como o ensino disciplinar da física – um panorama sobre as leis gerais, os parâmetros de cada estilo. Se milhares de pessoas passam pela escola sem desenvolver nenhum interesse especial pela física, é de se prever que o mesmo fenômeno aconteça com a literatura. Cada aluno é um mundo psíquico inteiro que seguirá de acordo com seus próprios interesses”, escreveu ela.

Diante disso, por que não optar pela soma, em vez da cisão? Autores clássicos ao lado de autores contemporâneos, num diálogo que estabeleça pontes e permeie formas, temáticas, ambiências. Lembro que, quando eu estava no ensino médio, a professora de literatura se valeu da canção Queixa, do Caetano Veloso, para falar sobre trovadorismo. “Princesa, surpresa, você me arrasou/ Serpente, nem sente que me envenenou/ Senhora, e agora, me diga aonde eu vou”, dizem os versos da música, que tocava sem parar em todas as rádios. A instigante analogia despertou o interesse da turma para a matéria em pauta: as Cantigas de Amor.

Esse exercício de estabelecer conexões foi fundamental para que jovens ainda imberbes, como eu e meus colegas, prestássemos atenção nos textos daqueles autores tão distantes no tempo e no espaço. Trouxe-os para mais perto de nós. Assim como as crônicas que, ao iluminar o cotidiano à volta numa linguagem sem fraque e cartola, nos soavam íntimas, provocando encantamento. O contato se deu sobretudo por intermédio da coleção Para gostar de ler.

Lançada em 1977, a série da editora Ática serviu para mais de uma geração como porta de entrada no universo literário. Sua história é curiosa. Certo dia, o escritor Affonso Romano de Sant’Anna telefonou para o editor Jiro Takahashi. Em meio à conversa, surgiu o nome de Rubem Braga. Os dois tentavam entender por quê, embora seus textos fossem tão bem recebidos nas escolas, isso não se refletia na venda de livros.

Estimulado por Affonso, Takahashi decidiu então criar uma coleção especialmente voltada para o gênero. Reuniu um grupo de professores e, depois de muita conversa, saiu a escalação da primeira antologia: Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Carlos Drummond de Andrade. O intuito era sugerido já no título Para gostar de ler, quase um convite ao estudante para que se aventurasse pelos labirintos da literatura.

A tiragem-teste, de três mil exemplares, logo se esgotaria. E a procura foi tamanha que a editora imprimiu 100 mil livros na edição de estreia. Depois, mais 150 mil. Outros três volumes reuniriam o quarteto, também com expressivo sucesso comercial. Aos poucos, novos escribas se somaram ao time. Nas 47 coletâneas que fizeram a história da coleção, já abarcando contos e poemas, aparecem autores como Luis Fernando Verissimo, Mário Quintana, Lygia Fagundes Telles, José Carlos Oliveira, Clarice Lispector, Carlos Eduardo Novaes e Lourenço Diaféria.

Os livros da série desmentiram a tese furada de que crônica não vende e eram lidos nas escolas sem prejuízo para os romances de Machado, José de Alencar ou Joaquim Manuel de Macedo. Centrados no gênero que, como afirmou Antonio Candido, trata da “vida ao rés-do-chão”, propiciavam aos alunos uma primeira experiência literária fora das narrativas infantojuvenis. Aliás, a célebre expressão do crítico e professor apareceu pela primeira vez no texto introdutório de um dos volumes da coleção, assinado por ele.

É igualmente possível que as referências do cânone convivam, sem colisão, com obras contemporâneas. A fruição estética correndo em paralelo ao exame da linha histórica da literatura, de modo não excludente. Se o tweet de Felipe Neto nos possibilitar uma reflexão menos lacradora sobre essa questão, transcendendo a dicotomia, a autocongratulação (“li Machado aos treze e adorei”) e a interdição mediante crachá (“só professor pode opinar”), já terá sido de grande valia. Uma coisa me parece clara: o modelo vigente fracassou.

 

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

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