O intérprete de borboletas

Trecho do romance de Sérgio Abranches
Ilustração: Denny Chang
01/02/2021

São Paulo, Morumbi
É um túnel escuro. Ele termina em um abismo que é pura escuridão. Sente as pernas bambas. Vertigem. Cai desesperada e desamparada. Despenca. Olhos brilhantes, muitos, espreitam sua queda. Sabe que morrerá ao bater no fundo. Está cada vez mais difícil respirar. Seu corpo treme, os dentes batem descontrolados. Depois do medo, uma tristeza densa. Sente uma saudade imensa do que seria. Uma falta enorme dos que ama. Será assim a morte? Perda e perda? Perda de si e dos outros? Nunca saberá. O baque que interrompe a queda não dói. A morte, enfim, é indolor?

Maria acordou com o baque da queda. O pesadelo a deixou ainda mais deprimida. A tristura do sonho não a deixou. Suava por todo o corpo. Buscou o sono como promessa de esquecimento, mas ele a pôs diante da morte. Não ousava voltar a dormir, se fechasse os olhos agora, retornaria àquela queda para o nada, à estranha saudade do futuro perdido. Pior que a lembrança do que se foi é a nostalgia do que não se viveu. Uma aflição de pura impotência correu por sua espinha até os pés. Insone, bordejava a desesperança.

Não posso ficar tão desesperada assim. É por isso que gente da minha idade se suicida. Eu não quero morrer. Também não quero viver desse jeito. Não vou deixar o ódio me envenenar. Tenho que reagir. Mas dói tanto ver a raiva contra mim de minhas melhores amigas! É injusto. Eu não fiz nada, não mudei, não ataquei ninguém. Elas me conhecem desde que entramos na escola, são mais de oito anos. Sempre souberam o que penso de tudo. Conhecem minha história e de meus avós. Um dia, sem aviso, a amiga em quem eu tinha mais confiança vira uma inimiga feroz? Pensei que tivéssemos um pacto de cumplicidade. Que fôssemos amigas fiéis. Que doença é essa, meu Deus, que espalha como piolho?
(…)

São Paulo, Jardins
Eduardo recostou-se desconfortável no sofá de couro. Olhou para Dalva brevemente. Fechou os olhos, respirou fundo e começou a falar. Não conseguia falar olhando-a olhos nos olhos.

— Nunca pensei que pudesse ser tão odiado por alguém que amava tanto. Não é uma ruptura afetiva que nasceu do desgaste de um relacionamento amoroso desandado. Não. É o fim do amor eletivo entre irmãos. A gente não escolhe os irmãos. Mas, escolhe com que intensidade amamos os irmãos que nos são dados. Claro, sempre tivemos brigas e desentendimentos. Mas nunca nos odiamos. Houve afeto entre nós. Agora, meu irmão me odeia. E eu acho que já o odeio também. Nem sei o que era esse afeto, se era uma escolha mesmo, algo consciente, elaborado, ou uma afinidade construída na convivência diária, nas pequenas cumplicidades. Um afeto que se encerra em uma parte diferente de nós. Não sei bem quando nós que nos gostávamos antes nos desencontramos tão radicalmente. Mas vi em seus olhos que o ódio era real e muito mais assustador do que as palavras ofensivas que lançava em minha direção, como balas traçantes de um fuzil inimigo. Não éramos parecidos… tínhamos ideias e preferências diferentes… Mas não éramos inimigos.

Fez uma pausa longa. Parecia tentar se lembrar. Mexeu-se. Buscou uma impossível posição mais confortável e continuou.

— Até que ficamos totalmente diferentes. Ele sempre soube o que eu pensava sobre nossa biografia familiar. Nossos pais. Sabia como eu lidava com a sombra do passado sobre nós. Onde começamos a mudar tanto? Acho que foi na faculdade… fomos por caminhos opostos. Nunca pensei que meu próprio irmão se tornaria uma pessoa tão intolerante, fanatizada, incapaz de raciocinar. Via-o raivoso, descontrolado e não o reconhecia. Há quanto tempo vivíamos mundos tão apartados? Ainda no Natal passado estávamos bem… ou quase… ou não… Agora, isso… Ele me odeia e agride sem medida. Eu sinto que perdi toda a afeição por ele… sofro por ser odiado por ele.

Dalva perguntou sobre a infância deles. Do que ele se lembrava, quando é chamado a pensar na infância. Provocou um profundo silêncio. A pergunta alcançou Eduardo em um flanco desprotegido. A surpresa o deixou sem palavras.

Como penso minha infância? Que pergunta é essa? Eu estou falando de uma coisa profunda, atual, aqui e agora, me abrindo… e ela pergunta como lembro de minha infância? Que corte! Como foi a minha infância? Nossa infância? A minha infância? Como foi? Confesso minhas dores a Dalva. Conto todas minhas aflições a ela há quanto tempo? Anos. Mas… infância, agora? Por que agora?

Após a longa pausa construída pela comoção interna que a pergunta lhe causou, Dalva disse-lhe que o tempo havia acabado.
(…) 

São Paulo, interior
Depois da aula, Afonso fez nova visita ao Velho. Mantinha o hábito de ir até seu refúgio sempre que podia. Quando estava com ele sentia-se mais ligado a seus pais. No caminho até lá, pensava no que vinha acontecendo em sua vida. Quem sabe ele o ajudaria a entender as distâncias entre gerações? Quando chegou, ele estava só, encostado em um jatobá. Dormitava ou meditava, não saberia dizer, envolto pelas borboletas que eram mais numerosas que na visita anterior. Era como se seguissem um plano preestabelecido. Como se multiplicassem a um certo tempo, num movimento ascendente. Percebeu sua chegada, cumprimentaram-se efusivos. Um relacionamento de muitos anos, o Velho também o conhecia desde que nasceu. Conversaram sobre a natureza. Contou que Eduardo o havia visitado recentemente. Ficou feliz com o retorno dele ao sítio. Afonso respondeu que ele lhe contou da visita e também estava muito feliz com o reencontro. O Velho lhe falou das borboletas. Sempre falava delas. Sempre algo diferente. Gostava particularmente da Morpho laertes, uma borboleta branca. Ela superou as cores, disse, todas as divisões. Quando falou o nome da sua predileta, foi como se todas se transformassem em Morpho laertes, todas brancas, com delicada bordadura em sépia. Há tanto ensinamento na metamorfose das borboletas. Elas têm uma capacidade de adaptação esplêndida. São seres extraordinários. São a própria expressão da renovação, da transformação integral. Perguntou-lhe se sabia que a migração delas para o Norte da Inglaterra e para a Escócia tem a precisão dos termômetros. Um marcador da mudança climática. Elas vão ampliando seu território à medida que essas regiões vão aquecendo. Ao mesmo tempo, continuou, o aquecimento do planeta, que lhes permite migrar, pode levá-las à extinção. Vivemos uma era de paradoxos, ameaçados por tempos de extremos. Em tudo há contradição. Elas já não nos levam a sínteses, só a mais contrariedades. A prevalência do pequeno dará rumo à grande mudança.

— O ódio anda a dividir famílias inteiras em dois times raivosos, a envenenar a vida das pessoas. Acontece com a minha família e com a de Eduardo também. É o que me enche de angústia no momento.

— O ressentimento é um vírus poderoso. Muito contagioso. Não há vacina para ele.

— Mas, alguma solução há de ter…

— Boas e más.

— Precisamos das boas, das más já experimentamos demais… caminhos errados de séculos.

— Só com tempo e abrindo outro caminho.

— Outro caminho?

— Sim, é preciso libertar-se do fardo do possível. Deixar de pensar só com o sabido, sondar o não sabido. O resto, é passado.

Dudu está certo, o Velho está ficando oracular. O que diz sempre tem mais de um sentido. É um sábio. Está cada vez mais ensimesmado. Talvez espere que falando por enigmas, as pessoas, ao tentarem compreender o que diz, se entendam. Deixei o sítio intrigado com a conversa. Continuo perdido e atônito com este presente enovelado. Não sei se estamos entrando em uma nova idade das trevas, tempos de chumbo, ou nos preparando para uma nova era, que complete o sonho inacabado de tantas gerações. Não quero ser contaminado pela doença social que degenera a política e aparta a sociedade. Tenho meu lado. Convicções. Aprendi com o Velho e com meus pais que o bom caminho tem sempre que estar no rumo da solidariedade. Ele sempre teve lado. Como nossos pais, que aprenderam com ele. Não acredito em mudanças feitas pelos donos de sempre do poder. Maria busca ter sua própria identidade, suas opiniões, seus gostos, e a mãe reage raivosamente, com repressão. Por quê? Nossa filha está certa. É preciso buscar-se livremente, construir sua própria identidade, sua história pessoal, encontrar seu caminho e seu lado. Ela não pode ser feliz na vida, ser plenamente realizada se não puder definir-se no mundo. Não é fácil, nesta sociedade de machos dominantes. Viver é fazer escolhas e escolhas sempre têm lado e consequências. Isto só se aprende vivendo com liberdade.

São Paulo, Centro
O garoto de moletom camuflado conhece o centro profundo de São Paulo. O Centro dele é diferente. As pessoas se misturam sem se confundir. Gente de toda parte. Ele gostava do Centro. Mas vivia atento. Mesmo na sua área, o perigo estava presente. Sua vida, seu risco. Tinha que se virar. Sobreviver. Luta diária, sem trégua, sem esperança de paz. “Querer a paz é uma utopia.” Quem vê a Sé, não vê o que está por trás da Sé. Quando lia as notícias dos conflitos na elite, se perguntava “por que eles estão brigando, se para eles tudo parece bom? Aqui, na rua, é que está o real”. A vida que pulsa nas ruas é desamparada. Cada coração tem um limite para a dor. A sua vida podia ser muito pior. Ele sabia, porque conhecia as outras. Vivia ao lado delas

A tarde seguia agitada e poluída. Ninguém sequer notava. Era parte da rotina já entranhada na alma e nos pulmões. Eduardo saiu do metrô e andou pela rua lateral, rumo à avenida no lado oposto à praça que atravessou pelo extremo norte. Paulo deixou o carro no estacionamento próximo à avenida e se dirigiu para a praça, pelo sul. Isaura estava com amigas do trabalho no café, no lado leste, não muito distante do metrô. Afonso desembarcou do Uber, cruzou pelo leste, virou para o norte, buscando a agência do banco próxima à estação. Quando chegou à mesma rua pela qual o amigo seguia, ficaram a dois quarteirões de distância. Mas não se encontraram. Os irmãos andavam por ruas paralelas. Um seguia do norte para o sul, o outro, do sul para o norte. Estiveram lado a lado, separados por uma muralha de prédios. Ambos andavam rápido. Eduardo pensava em um artigo para a edição de sexta que devia entregar até o final da tarde do dia seguinte. As crônicas do final de semana, entregaria na sexta. Paulo estava preocupado com a defesa de um cliente. Eduardo reparava nas pessoas com as quais cruzava na praça. Paulo nem percebia a existência delas. Afonso passou pelo café sem olhar para dentro. Isaura não o viu passar. Ele imaginava como era bom ter esse momento só dele com Maria. Ao mesmo tempo, preocupava-se com o afastamento entre filha e mãe. Não era bom aquele estado de tensão permanente. Isaura lamentava com as amigas seu desentendimento com a filha, mas dizia que era melhor ela ficar com o pai nesta fase de relações difíceis. Todos tensos, olhavam para a vida sem ver suas múltiplas possibilidades. Uns estavam mobilizados para a guerra que se aproximava. Outros atordoavam-se com a impossibilidade da paz. Nenhum deles cruzou com os outros. Nenhum deles viu o outro. O desencontro é fácil.

Sérgio Abranches

Nasceu em Curvelo (MG), em 1949. É sociólogo, cientista político e escritor. Publicou, entre outros, O pelo negro do medo (2012), Que mistério tem Clarice? (2015), A era do imprevisto: A grande transição do século XXI (2017), vencedor do Prêmio Literário Nacional PEN Clube do Brasil em 2018, e Presidencialismo de coalizão: Raízes e evolução do modelo político brasileiro (2018), finalista do prêmio Jabuti, categoria Ensaio/Humanidades. O romance O intérprete de borboletas será lançado em breve.

Rascunho