Nos rodapés de Calasso

À frente da Adelphi Edizioni desde 1962, o italiano Roberto Calasso disseca bastidores do processo editorial e faz análises sobre a sociedade do “inominável atual”
Ilustração: Conde Baltazar
26/01/2021

Nascido em Florença, em 1941, Roberto Calasso se tornou um dos intelectuais italianos mais proeminentes, reconhecido pelo seu trabalho como editor e ensaísta e pela amplidão dos seus interesses. Ele já se debruçou sobre diversas mitologias, como nos livros Ka (1999), As núpcias de Cadmo e Harmonia (1990) e A literatura e os deuses (2004). Também examinou as narrativas de Kafka no livro K. (2006) e, em A folie Baudelaire (2012), dissecou a obra e influência do poeta boêmio francês, figura central na poesia moderna.

Além das publicações, Calasso é editor da Adelphi Edizioni desde 1962, integrante da equipe inicial a convite dos fundadores Luciano Foà e Roberto Olivetti. Foi partindo dessas experiências e reflexões que a editora Âyiné trouxe, em novembro de 2020, A marca do editor. O livro reúne diversos escritos, tanto inéditos como conferências editadas, sobre o mercado editorial e o ofício desse intelectual.

Logo no começo, somos apresentados aos livros únicos, obras de classificação imprecisa, mas pensadas para compor a clássica coleção Biblioteca Adelphi. Procurando uma forma de descrevê-los, Calasso destaca alguns elementos, como um certo tipo de inovação: “O livro único é aquele em que imediatamente se reconhece que aconteceu alguma coisa ao autor e essa coisa terminou por se depositar em um escrito” — o que, portanto, o leva a afirmar que também eram livros “que haviam corrido um grande risco de não chegarem a se tornar livros”.

Além disso, o livro único não se atrela ao prestígio ou carreira de um escritor. Ao citar autores que publicaram apenas um livro e estiveram na coleção, Calasso pondera que, talvez, o autor “não pretendesse ser escritor de uma obra, mas porque uma obra (esse livro único) havia se servido dele para existir”.

No entanto, o que vemos durante a tentativa de classificar os livros únicos é a dissecação dos critérios editoriais, o funcionamento da curadoria no processo de seleção dos títulos. Essa reflexão não só mostra como um editor escolhe as obras ideais e a visão que tem do conjunto, mas também apresenta as etapas da produção do livro. Nelas, vemos os pontos necessários e, também, uma das discussões mais interessantes sobre a escolha das capas.

“Nome, papel, projeto gráfico: os elementos essenciais da coleção. Faltava, todavia, aquilo pelo qual um livro se deixa reconhecer: a imagem.” Nesse momento, surge o conceito da écfrase — termo grego que remete ao exercício retórico de traduzir uma imagem em palavras. Para Calasso, a escolha da capa é o processo inverso da écfrase: procurar uma imagem que possa descrever o livro. Em sua exposição, o editor destaca capas que são fotografias ou pinturas existentes e que, de alguma forma, pareciam retratar o que havia de essencial naquelas obras escritas. Nenhuma capa feita sob encomenda.

No entanto, um aviso: “É necessário acrescentar um detalhe decisivo: trata-se de uma arte marcada por uma dura servidão. A imagem que deve ser o analagon do livro é escolhida não por si mesma, mas também e sobretudo por causa de uma entidade indefinida e ameaçadora que atuará como juiz: o público”. A influência surge não só enquanto cliente que compra um livro, mas na própria percepção de que o volume e sua capa pertencem a um conjunto maior, como uma coleção e, em outro nível, à editora.

Edição como gênero literário
Essa percepção da editora enquanto conjunto é parte importante da exposição de Calasso. De maneira simplificada, ele explica que uma editora é um empreendimento que tenta ganhar dinheiro publicando livros — uma boa editora seria, portanto, uma editora que só publica bons livros. Uma tarefa menos simples do que parece, já que esse tipo de organização é conhecida por desaparecer com a fortuna de diversos herdeiros.

É a partir daqui que conhecemos Aldo Manúcio (1449-1515), figura importante na formação de Roberto Calasso. Manúcio foi um tipógrafo italiano da Renascença, responsável por diversas inovações no mercado editorial. Como nos diz Calasso, “Manúcio foi o primeiro a imaginar uma editora em termos de forma. (…) Em primeiro lugar, a forma é decisiva na escolha e na sequência dos títulos a serem publicados. Mas a forma diz respeito também aos textos que acompanham os livros, além da maneira pela qual o livro se apresenta como objeto. Por isso inclui a capa, o projeto gráfico, a diagramação, os tipos, o papel”.

Quase não há mudanças entre o que Aldo Manúcio criou há cerca de 500 anos e o que fazemos agora. Entre as inovações propostas pelo renascentista estão as primeiras edições baratas, impressas para grande circulação — como os livros paperback e os de bolso. Ele também imprimiu Hypnerotomachia Poliphili, o primeiro livro único conforme os termos descritos acima. Além disso, ao escrever uma carta nas aberturas dos livros, se tornou o precursor dos textos introdutórios, que hoje vemos nas orelhas, prefácios, posfácios, escritos por vendedores, etc. Para Calasso, Aldo foi o primeiro a visualizar que os livros publicados por uma editora são como elos em uma mesma corrente:

Essa arte [da edição] pode ser julgada em ambos os casos com os mesmos critérios, o primeiro e o último dos quais é a forma: a capacidade de dar forma a uma pluralidade de livros como se eles fossem os capítulos de um único livro. E tudo isso tendo cuidado — um cuidado apaixonado e obsessivo — com a aparência de cada volume, com a maneira como são apresentados. E por fim, também — e não é certamente o ponto de menor importância —, com o modo como esse livro pode ser vendido ao maior número de leitores.

Por essa constituição enquanto forma, Calasso entende a edição enquanto gênero literário. Somando todos os livros, orelhas, capas, textos e publicidades em um livro único, a forma da editora surge como uma obra única em um gênero específico. Da mesma forma, pode se recusar a publicação de um livro como se rejeita um personagem inadequado em um romance. Do lado oposto, publicações que não combinam com a editora podem ser lançadas, já que público e vendagem são questões importantes. A edição, portanto, é um gênero híbrido e multimídia.

Como possível solução na equação entre forma da editora e necessidades mercadológicas, a existência de selos ou de coleções podem ser escopos menores para se avaliar a forma de uma editora: pensá-la não como uma obra única, mas como uma coletânea com capítulos autossuficientes.

Nessa trajetória, a figura de Kurt Wolff (1887-1963), editor de Kafka, Wefel, Kraus e Walser, também aparece como inspiração e exemplo para a trajetória de Calasso (o livro Memórias de um editor também foi traduzido e publicado pela Âyiné na mesma coleção). Além disso, uma série de conferências feitas em homenagens a diversos editores foi editada e publicada na terceira parte do livro. São eles: (1) Giulio Einaudi; (2) Luciano Foà; (3) Roger Straus; (4) Peter Suhrkamp; (5) Vladimir Dimitrijević.

À sombra dos novos tempos
Ao refletir sobre o papel do editor e sua função enquanto curador, Calasso não ignora as mudanças trazidas pela rede e os sistemas digitais. Logo no primeiro capítulo, a função da capa é contraposta ao projeto de digitalização e criação da biblioteca universal do Google. Enquanto a capa é responsável por construir uma finitude da obra e estruturar a sua unidade, os textos digitais trabalhariam de acordo com as necessidades de seu ambiente: da leitura compartilhada e infinita, conectada por links e hashtags.

Essa mudança não é só a mudança da leitura analógica para a digital, mas a imposição de uma nova forma de pensar, sempre conectada à Rede, dependente de uma inteligência coletiva e distante do mundo real, da experiência. O incômodo de Calasso fica mais claro quando ele passa a aprofundar a irrelevância do intelectual nos dias atuais.

Em um ambiente de muitas autopublicações, do menosprezo com a arte de selecionar uma capa (focando no seu potencial de venda e não no processo de écfrase reversa) e da obliteração da editora enquanto forma, já que os perfis editoriais são desmontados pela necessidade de títulos mais comerciais, o editor passa a ser um empecilho na publicação, já que o seu juízo e seu critério são secundários nesse processo. Esse “crítico” se torna um peso do qual as pessoas passam a abrir mão.

As críticas feitas por Calasso são comuns aos intelectuais que precisam se posicionar nos dias de hoje. Como descreve Bauman em Legisladores e intérpretes (2010), desde que o mercado passou a atuar como instância reguladora, os intelectuais desceram do pedestal, que os permitia legislar sobre um determinado gosto, e os colocou numa linha horizontal, onde passaram a ser intérpretes. Nesse esquema, eles tentam manter seu ponto de destaque ao organizar comunidades ao redor de sua figura.

A leitura do editor italiano não foge muito do diagnóstico do sociólogo. No fim da quarta parte, ele afirma: “Que tarefa resta ao editor? Subsiste ainda hoje uma tribo dispersa de pessoas em busca de algo que seja literatura, sem qualificativos, que seja pensamento”.

Infelizmente, a leitura de Calasso também recai no copyright e na remuneração dos escritores em uma sociedade que não valoriza as obras do intelecto. De acordo com sua leitura, atualmente a produção intelectual é vista “como publicidade do autor para si mesmo, em que o pagamento da publicidade ocorreria in natura — e seria o trabalho executado pelo autor ao dar forma à sua obra. Nessa perspectiva, o autor não viveria das receitas provenientes das vendas de suas obras, mas do fato de que sua obra provocaria convites para manifestações públicas, comissões, consultorias, residências em campus criativos — esses sim retribuídos de maneira adequada”. Um problema, até o momento, sem solução.

Inominável atual
Essas reflexões sobre a sociedade atual são o foco de seu outro livro publicado em 2020, O inominável atual. No entanto, Calasso não fala sobre o processo editorial, mas problemas como a dissociação entre poder e política (organizações políticas/força da economia), instabilidade das antigas certezas modernas, a violência e o terrorismo, as questões digitais, o esvaziamento espiritual e o ceticismo.

Em primeiro lugar, de onde surge o inominável atual? Calasso nos diz que, “entre 1933 e 1945, o mundo realizou uma tentativa de autoaniquilação, em parte bem-sucedida. O que veio depois era amorfo, grosseiro e poderoso. No novo milênio, é amorfo, grosseiro e cada vez mais poderoso. Mesmo para os cientistas, é um mundo fragmentado. Não tem estilo próprio e lança mão de todos. Este é o mundo normal”.

A dualidade construída no ensaio parece ser fruto de um europeu assustado, que visualiza no fluxo migratório de refugiados para a Europa a ascensão de um fundamentalismo religioso intrinsecamente ligado ao terrorismo, que faz de vítima qualquer cidadão ocidental: “O homem de negócios que vai ao trabalho de táxi, os adolescentes que se exercitam no parque, o velho na fila para comprar um lanche. Não só: derramar o sangue do vendedor ambulante que vende flores aos passantes também é louvável”.

Essa característica surgiria da natureza sacrificial em uma “forma perfeita”, uma forma em que a vítima pratica o atentado contra seus infiéis. A partir daí, fala-se de sexo e morte, da união da teologia com a política, da força do acaso no ato de escolher uma vítima aleatória. Como grande inimigo dessa força de terror, estaria um ocidente decadente e secular.

Da mesma forma que personagens desprezíveis ou impotentes de Dostoiévski, Melville ou Musil, e “ao contrário do ‘homem védico’, que nasceu com quatro fardos — os deuses, os reis, os ancestrais e a humanidade em geral —, o ‘homo secularis’ não deve nada a ninguém. Ele está sozinho, e não existe nada além do que ele faz”.

Assim como no processo de edição, Calasso também critica a lógica das redes. Para além da apatia, do ceticismo e da falta de vínculos na sociedade moderna, os algoritmos e as redes sociais são elementos que podem se desdobrar em problemas no futuro. A própria noção de Inteligência Artificial aparece na perspectiva de que, um dia, talvez as próprias IAs nos considerem descartáveis.

Soma-se a isso o que ele chama de Dataísmo — proveniente do termo data, que significa informação em inglês. Nesse cenário, como a medida mais importante é a da informação, todos se tornam emissores de mensagem desvinculadas das nossas crenças ou das experiências de mundo. Tal circulação é feita para um público ilimitado, favorecendo a mitomania, a pós-verdade, as fake news — já que tudo se encontra na mesma hierarquia informacional.

A segunda parte do livro lembra uma construção de Walter Benjamin, nas ruínas da história. Calasso constrói uma colcha de retalhos a partir de trechos de outras narrativas, anotações de outros acontecimentos. Como diz na introdução do capítulo, “não são lembranças. São palavras escritas, publicadas, proferidas, mencionadas, registradas entre o início de janeiro de 1933 e maio de 1945”.

A narrativa amplia a noção daquele momento de autoaniquilação, mas a partir das narrativas subterrâneas. Uma curadoria bastante apurada feita de diários e cartas de figuras que se destacaram na época, como Beckett, Benjamin, Jünger e Goebbels.

Essa construção nos leva à terceira parte, que une o tom das duas narrativas anteriores em uma anotação de Charles Baudelaire a respeito de uma visão ou sonho. O poeta francês afirma que viu a queda de uma torre, um enorme edifício ignorado pelas “nações”. Ao fazer o paralelo dessa torre com o 11 de setembro e as Torres Gêmeas, Calasso encerra o livro.

A marca do editor
Roberto Calasso
Trad.: Pedro Fonseca
Âyiné
176 págs.
O inominável atual
Roberto Calasso
Trad.: Federico Carotti
Companhia das Letras
180 págs.
Roberto Calasso
Nasceu em Florença, na Itália, em 1941. É reconhecido pelo seu trabalho de editor, realizado há décadas na Adelphi Edizioni. Além disso, é um dos ensaístas italianos de maior destaque. Sua obra é amplamente divulgada no Brasil, que conta com títulos como Ka (1999), O ardor (2016) e A literatura e os deuses (2004) — todos lançados pela Companhia das Letras. O inominável atual (2020) e A marca do editor (2020) são seus livros mais recentes.
Arthur Marchetto

É doutorando em Comunicação Social, com pesquisa sobre crítica literária na Universidade Metodista.

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