Catástrofes subterrâneas

Em "Morra, amor" e "A débil mental", Ariana Harwicz aborda questões familiares, perversões e tabus com uma linguagem vertiginosa
Ariana Harwicz, autora de “Morra, amor”
27/01/2021

Não leia esta resenha. O acesso a comentários sobre a obra de Ariana Harwicz deveria ser permitido só após a leitura dos seus livros. Não porque não sejam bons, justamente pelo contrário: porque grande parte do prazer da leitura virá da surpresa aterradora de ser devorado por sua narrativa frenética. Da primeira à última linha de cada um de seus romances, o leitor navega no fluxo de consciência da protagonista, sem saber para onde vai, mas com a certeza de que algo terrível está por acontecer, e mesmo assim, fechar o livro, nem pensar. Não sairá ileso, mas a travessia vale o preço.

Seu romance de estreia, Morra, amor, foi considerado o melhor de 2012 pelo jornal La Nación, e a versão em inglês, indicada ao prêmio literário britânico de maior prestígio, o Booker Prize — o que a colocou, ainda aos 40 anos, entre nomes como Margaret Atwood, Salman Rushdie e Valeria Luiselli, para citar apenas alguns.

Em 2014, lançou A débil mental (publicado no Brasil em 2020), e em 2015, Precoz, ainda sem tradução em português. Essas três obras foram consideradas uma trilogia da maternidade, devido à abordagem de questões familiares, perversões e tabus, narrados em linguagem vertiginosa. O romance seguinte, Degenerado (2019), também ainda sem tradução aqui, não desviou-se muito dessa rota de alto impacto, já que trata de um pedófilo assassino de mulheres. Ainda neste ano de pandemia lançou Desertar, livro de ensaios, em coautoria com Mikaël Gómez Guthart, sobre traduções, viagens, fugas e estrangeirice — um de seus temas favoritos. Sua energia e qualidade literária atestam o excelente momento da literatura argentina de jovens autores, e particularmente de autoras com estilos e abordagens de grande impacto, muito diversas entre si, como Selva Almada, Mariana Enriquez e Samanta Schweblin. O que é peculiar em Harwicz é que ela nunca escreveu uma linha enquanto vivia na Argentina, foi somente após passar a viver no exterior que se abriram essas comportas.

Insurreição
Chamar a sequência que se iniciou com Morra, amor de Trilogia da maternidade tem também um sentido simbólico, considerando-se o que diz a autora: “Nasci quando escrevi esse livro”, pouco depois do nascimento de seu primeiro filho. “Escrevi Morra, amor imersa naquele desespero entre morte e desejo.” O eixo da família perfeita que se transforma em uma rotina insuportável gira ao centro de três conflitos irreconciliáveis: o ideal da maternidade feliz detonado pelo choro insistente do bebê; o matrimônio ‘para sempre’ agredido pelo marido despreparado para lidar com essa esposa à beira da loucura; o exemplo do amor entre os sogros minado pelo luto permanente da sogra viúva.

O cenário do romance é parecido com aquele onde Harwicz vive: um povoado no meio do mato, cercado por animais e bosques. O silêncio esconde a turbulência existente dentro das casas. A mãe narradora é estrangeira, fala o idioma local com sotaque, o que contribui ainda mais à sua alienação. Harwicz resume:

Uma mulher que é aparentemente estrangeira, que não fala o idioma local, que é corrigida quando fala, casada com um homem nascido no país e um bebê recém-nascido, mais um amante que mora perto, com sua esposa, é um cocktail molotov.

Em um longo monólogo interior ela trava uma insurreição contra si mesma. De um lado, reconhece os elementos da suposta felicidade que não consegue sentir, e por outro, se vê prisioneira da maternidade — “uma forma de prisão, uma armadilha, um destino ordinário” —, de onde só a morte pode libertá-la — a do marido, não a sua. O título do romance em português, Morra, amor, sugere uma morte passiva, diferentemente do original, em espanhol, que não deixa dúvidas: Matáte, amor.

A narrativa não segue um padrão cronológico nem espacial. Em nenhum momento o leitor tem exata certeza de onde está a narradora, e nem se o que narra de fato aconteceu ou se são apenas fantasias dignas de um pesadelo. O trabalho ao redor da voz da narradora é essencial, ela mostra o que pensa, esconde o que faz. Harwicz conduz, leitor e personagens, em uma estrada de fumaça opaca sem sinalização.

O que impede essa mãe infeliz de tomar uma iniciativa? Se tudo é tão ruim, por que ela simplesmente não vai embora? Porque apesar de não seguir uma bússola moral, ama seu bebê. Em uma entrevista, Harwicz disse: “Não vejo que a personagem, ou outra pessoa a quem o bebê satura e enlouquece, deixe de amá-lo por isso”. E prova isso através de vários gestos de amor pelo bebê: recusa o antidepressivo para não prejudicá-lo; entrega-o ao pai quando entende que estará melhor com ele do que consigo; leva-o para brincar no seu espaço secreto no bosque.

O vínculo com a natureza é fator de afastamento e, ao mesmo tempo, de salvação da personagem. Os momentos mais poéticos do romance são imagens fugidias de animais que ora miram a protagonista, ora são brevemente capturados em seu olhar. O livro todo é essa confusão de momentos poéticos, momentos depressivos, ou a lírica entre feras e homens. O mais presente é um cervo de enorme galhada “feito um candelabro judaico”. Não é um candelabro qualquer, é o mesmo símbolo que foi um dos objetos mais cobiçados pelos romanos ao saquear o Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C. Por ordem do imperador, sua imagem foi esculpida sobre o Arco de Tito, em Roma, carregado pelos escravos capturados. Seu enorme poder simbólico já era reconhecido.

A certa altura aparece um cervo que fica me olhando de forma selvagem, como ninguém nunca me olhou. Gostaria de abraçá-lo, se fosse possível. […] O que me salva nesta noite e no resto não é de jeito nenhum o amor de meu homem ou o do meu filho. O que me salva é o olho dourado do cervo, ainda me olhando.

Segundo ato
Com A débil mental, lançado dois anos após sua estreia, Ariana Harwicz aumentou a voltagem de seu estilo. A fragmentação é mais intensa, há o passado de gravíssimos traumas, os tabus são expostos à faca. A partir do presente da narrativa uma jovem rememora a infância de abuso e de cenas de sexo da avó e da mãe com estranhos, imagens enevoadas, mas de alta carga emocional, que parecem explicar a presente espiral descendente de violência e furor sexual em meio à turbulência psíquica da narradora e de sua mãe.

É uma relação de extremos, da cumplicidade criminosa ao desprezo mútuo, da pena ao ódio mortal. Tudo se passa enquanto a narradora, adulta, trabalha para sustentar a mãe, de quem quer se libertar. O mesmo conflito e saída que se vê em Morra, amor se apresentam: a morte, não da narradora, nem de sua mãe, e sim de seu amante. Dele, sabe-se que é casado, que sua esposa está grávida e que por isso quer terminar a relação com a narradora, o que ela se recusa a aceitar. O leitor pressente o perigo que o amante corre ao contrariar mãe e filha, essa dupla explosiva. Onde em Morra, amor a narradora fantasia usar uma faca, aqui ela o faz com uma machadinha. Igualmente, o que começa como obsessão caminha inexoravelmente para a loucura.

Novamente o cenário rural e isolado contribui para o aparente marasmo que esconde a catástrofe subterrânea. Ao explicar de onde vieram as ideias, Harwicz disse que o romance a esperava no bosque próximo à sua casa, onde ia com frequência:

Um dia entrei pelo caminho de sempre e o romance estava aí. O romance me esperava. Escrever, para mim, é deparar-se com um perímetro, uma luz. O romance todo abarca três casas e um galinheiro, nem um centímetro a mais.

Nesse espaço exíguo, a autora mistura tempos e em alguns momentos até narradores. É preciso um certo traquejo para conseguir diferenciar a voz da mãe daquela da filha — técnica brilhante, aliás, já que as próprias personagens têm essa dificuldade. O incesto entre as duas é insinuado muitas vezes, mas também há cenas de ternura inocente. Compartilham tudo. Nunca fica claro com quem se relacionam o pai ou os homens que passam por suas vidas.

Um turbilhão de rancor cresce em mim à medida que amanhece. E então vejo a aura de papai. O que é papai. Nunca disse isso assim. Vejo que é um rapaz altíssimo e loiro que vive procurando onde enfiar o pau.

Zonas escuras
Ambos romances são narrados em primeira pessoa e ambos destroem a ideia de família feliz a partir do núcleo mãe-filho: no primeiro é a mãe que se vê aprisionada, enquanto que em A débil mental é a filha. Nos dois, a ideia da morte de um parceiro masculino surge como libertação. Mas há algumas diferenças estruturais: se em Morra, amor o marido faz diversas tentativas para ajudar a mulher (ainda que ela o odeie por isso), em A débil mental o par mãe-filha é mutuamente destrutivo desde o início. Nada de bom pode vir dali:

A mãe tira o alento da filha, a filha o da mãe. Porque ambas reprimem a vida da outra. Ambas se espiam, se desequilibram, se limitam. O que gostariam é de viver em paz. Mas o que é viver em paz quando se vive rodeado pela família?

As referências a animais também estão presentes em A débil mental, mas não servem de consolo nem de refúgio. Ao contrário, são elementos de realismo mágico que causam intenso desconforto. Somadas ao ambiente sinistro do bosque as imagens fugazes por entre as árvores conferem uma escuridão ao romance — reflexo do interior dos personagens. Essa é precisamente a intenção da autora:

Escrever é ir na direção das zonas escuras, o que não se vê, o que não se diz, é este impulso de sulcar no subsolo o que está vedado, reprimido.

O que está aí escondido pode vir à tona nas pessoas ditas normais porque a linha que divide o lícito do ilícito para qualquer um de nós pode ser muito estreita.

O humor negro, a incômoda proximidade do horror ao riso, intensifica a tensão nos dois romances. A mãe, em Morra, amor, coloca um bebê de plástico no carro fechado em um dia de calor extremo só para divertir-se com o desespero dos vizinhos, que chamam os bombeiros e uma ambulância. Para Harwicz, a precisão estilística está acima da linearidade cronológica. Os conflitos dessas personagens não se enquadram nas leis de causalidade dos eventos. O que era considerado tabu não está necessariamente nos temas, e sim nas formas. Ela afirma que:

Muitos teóricos da arte dizem que já não se pode escandalizar. Já houve de tudo nos museus: defecou-se, copulou-se, mostrou-se um cão morrendo de fome. O tabu agora está no como. Na maneira de contar algo ainda se pode gerar uma estética ou uma sintaxe que comova ou escandalize.

Tampouco ela se rende ao lucro fácil, aos rótulos bandeirosos do momento. “Não quero ser rotulada porque não quero ficar presa em um compartimento”, afirma a autora ao recusar blurbs que usem as palavras “literatura feminista” nas capas de seus livros. “Não condeno a luta por visibilidade, só sua exploração”, explica.

Suas personagens não representam todas as mulheres, mas a si próprias. Quando escreveu esses livros, transformou sua pulsão em literatura: “Longe de coibir-me ou reprimir-me, a gestação me impulsionou a ser mais selvagem, violenta, subversiva”.

Influências e linguagem
Grandes autores são mencionados pela mídia e por ela mesma como possíveis influências: Nathalie Sarraute, Virginia Woolf, Sylvia Plath e Etty Hillesum com seus personagens perturbados; o cenário rural ambíguo de Anton Tchekhov e John Cheever. Mas suas fontes vão além da literatura: o visual trágico de Francesco del Cairo, Caravaggio, Egon Schiele, Lucian Freud, das artes plásticas. Do cinema, cenas incômodas de Lars Von Trier e John Cassavetes. Da música, Glenn Gould. E seu conhecimento de teatro: “Penso dramaturgicamente. A dramaturgia me dá o impulso para escrever”.

A língua é a pátria do escritor. A definição de língua-mãe está longe de um consenso, como demonstra enorme galeria de autores importantes que escreviam em idiomas “adquiridos”, incluindo Beckett, Nabokov e Pessoa. O mais seguro é dizer que o autor encontra-se em casa no idioma que escolhe, porque deve haver certa afinidade entre ambos. Ariana Harwicz escolheu o espanhol, mas o espanhol só a escolheu após ela mudar-se para a França. Algo nessa mudança, além das influências múltiplas, provocou o jorro criativo. Conforme ela mesma afirma:

Minha escrita é produto do meu estrangeirismo. Nunca escrevi aqui [na Argentina] uma linha sequer. A influência vem pelo estranhamento linguístico, geográfico, cultural. O que me acontece é que mesmo que um dia venha a ter documentos franceses, não sou francesa, mas também não sou turista, tenho essa dupla identidade.

Essa dupla nacionalidade contaminou suas histórias e enriqueceu seu estilo. Sem mencionar a herança judaica, que levou consigo à França. Na cultura judaica a dupla identidade, a alteridade, se manifesta em quase toda a literatura. Deus e a religião são prescindíveis para Harwicz, mas a experiência de ser judeu na Argentina deixa cicatrizes definitivas. A busca por outro idioma passa muito perto da busca por outra identidade, ainda que literária:

A mudança também enriquece o arsenal do escritor. Não fui embora da Argentina por motivos econômicos ou sentimentais e sim porque queria aprender o francês, mudar de idioma, não ter somente o espanhol. Esse já era um motivo literário.

Aprender novos idiomas enriquece o conhecimento da sua língua-mãe, amplia as possibilidades. Ao mudar-se de Paris para o campo Harwicz encontrou outros neologismos que contribuíram para sua linguagem literária. A necessidade de falar um idioma diferente criou uma nova persona, que deu a linguagem a seus narradores. É com essa linguagem que Ariana Harwicz tira o fôlego do leitor. É impossível saber se Harwicz teria começado a escrever se nunca tivesse emigrado, mas sorte nossa que ela o fez.

Morra, amor
Ariana Harwicz
Trad.: Francesca Angiolillo
Instante
144 págs.
A débil mental
Ariana Harwicz
Trad.: Francesca Angiolillo
Instante
96 págs.
Ariana Harwicz
Nasceu em Buenos Aires, na Argentina, em 1977. Graduou-se em Roteiro e Teatro. Em Paris, fez mestrado em Artes Performáticas e Literatura Comparada. Saiu da capital francesa para morar no campo, onde escreveu seu primeiro romance, Morra, amor — lançado em 2012 e indicado ao Booker Prize. Desde então publicou mais três narrativas longas e um livro de ensaios.
Vivian Schlesinger

Escritora, tradutora e mediadora de debates literários. Autora do livro de poemas Papaya na madrugada.

Rascunho