Pessimismo ou otimismo, tragédia ou comédia? O que vosmecês preferem?
No longa-metragem Mais estranho que a ficção, dirigido por Marc Forster, um auditor da Receita Federal ianque chamado Harold Crick (interpretado por Will Ferrell) entra em pânico ao descobrir que é o personagem principal do romance que uma excêntrica e temperamental ficcionista (interpretada por Emma Thompson) está escrevendo. Harold consulta um professor de literatura (Dustin Hoffman), a fim de descobrir qual será seu destino nesse romance. O professor lhe explica que o tipo de romance que Harold está protagonizando oferece somente dois finais possíveis: casamento ou morte. Eros ou tânatos. Desse modo, dependendo do desenlace, o romance poderá ser uma comédia ou uma tragédia.
Se você é o protagonista de um romance, é claro que precisa se preocupar com a índole do seu romancista, com o que ele aprecia mais: escrever comédias ou tragédias. Tua felicidade dependerá disso. Mas se você é o escritor, então é importante ter consciência de que o dilema entre comédia ou tragédia é um falso dilema. O que importa ao escritor é saber que “a única lei da arte é o critério do êxito” (Luigi Pareyson). Quando bem planejadas e bem escritas, comédias e tragédias carregam em si o mesmo potencial estético. É o talento do ficcionista — sua maior ou menor habilidade — que determina o sucesso ou o fracasso de uma obra narrativa, seja ela pessimista ou otimista.
Essa questão apareceu nesta década no campo da ficção científica, quando alguns cientistas desafiaram os escritores mais catastrofistas a dar um tempinho nas distopias deprimentes e nos apocalipses tecnológicos e a voltar a pensar a ficção científica numa perspectiva mais otimista. “Constrangedora questão, proposta pela ala mais naturalista-realista dos apreciadores, que raramente, muito raramente, consegue valorizar numa narrativa qualquer detalhe — as sutilezas subjetivas da linguagem, por exemplo — que esteja além dos limites objetivos do enredo.” Esse foi meu primeiro pensamento. Mais tarde, refletindo um pouco melhor, percebi que a questão não era tão constrangedora assim. Na verdade, ela é um desafio muito sedutor.
Lembrei-me do comentário do escritor Victor Giudice, que numa palestra disse que as pessoas preferem histórias pessimistas, em que tudo, ou quase tudo, dá errado. Victor argumentou que se Dom Quixote fosse uma cara mentalmente saudável, se Romeu e Julieta se casassem e tivessem filhos e se Bentinho não fosse tão paranoico essas obras seriam mais curtas e dificilmente seriam consideradas obras-primas da literatura mundial. Tudo bem, fomos programados biologicamente pra sentir prazer com a infelicidade alheia (schadenfreude). E o senso comum confirma essa tendência: apreciamos mais as tragédias — e as tragicomédias — do que as comédias. Vejam só, criativas & criativos, pensar a ficção científica numa perspectiva mais otimista surge então como um excelente desafio. Um excepcional desafio que propõe a desestabilização do senso comum. Como escrever contos, novelas e romances futuristas otimistas, sim, mas com inegável qualidade literária, que não pareçam ingênuos e simplistas? Que ultrapassem os limites triviais do naturalismo-realismo? Quem se habilita?
É certo que os cientistas que gostariam de ler mais ficção-científica-com-uma-perspectiva-mais-otimista, ao pensarem apenas em enredos naturalistas-realistas revelam constantemente — e não se envergonham disso — um grosseiro repertório literário. Apuro estético zero. Mas desconfio que o desafio proposto por eles visa equilibrar a balança, e não desequilibrá-la no extremo oposto. Numa sociedade que propaga mais pessimismo que otimismo quando o assunto é ciência e tecnologia, também acredito que seria saudável que surgissem tantas obras otimistas quanto pessimistas. Afinal, precisamos de ambas.
Desespero e esperança são igualmente pedagógicos. Enquanto distopias e apocalipses são um alerta — cuidado, cretinos, nossa civilização em breve poderá se tornar o berço da suprema opressão, ou uma terra devastada — utopias são sempre um convite animador: camaradas, trabalhemos pra criar uma sociedade melhor, mais justa, mais livre.
Mas também acredito que seria saudável se houvesse, na ficção científica, um pouco mais de preocupação com a linguagem, com os aspectos subjetivos do texto literário… Preocupação apenas com o enredo, com a trama, com os aspectos naturalistas-realistas da literatura-artesanato (Asimov, Clarke, Ted Chiang) são uma constante infernal, uma verdadeira distopia estética, nesse gênero tão rico de possibilidades ainda não exploradas pelos grandes escritores. Estamos no século 21, porra! Escritores de ficção futurista precisam urgentemente descobrir um fabuloso planeta — meio secreto apenas pra vosmecês — chamado Prosa Moderna, habitado por criaturas espantosas chamadas discurso indireto livre, monólogo interior, fluxo de consciência, polifonia, teoria do iceberg, técnica narrativa cut-up… Outro planeta interessante, que todo prosador deveria visitar de vez em quando, se chama Poesia Moderna, habitado por criaturas não menos espantosas chamadas Murilo Mendes, Leminski, Hilda Hilst, Piva, Inês Lourenço, Ademir Assunção…
(Utopia ou distopia? Há ainda o caminho do meio proposto pelo futurista Kevin Kelly, a protopia, ou seja, um cenário intermediário no qual acontecem coisas positivas e negativas em igual medida, como acontece na vida cotidiana. Apesar de ser uma ótima postura na prática do futurismo empresarial, eu não a recomendo na arte e na literatura.)
Inteligência & autoconsciência
Num ranking que levasse em consideração apenas o nível de inteligência & autoconsciência dos personagens, quem receberia o título de personagem mais inteligente & autoconsciente de toda a arte & literatura mundiais?
Rick Sanchez.
Após muito meditar, uma confraria de sábios & sabichões do Oriente e do Ocidente chegou à conclusão incontestável de que Rick Sanchez está muitos graus acima de Gilgamesh, Prometeu e Édipo, muitos graus acima de Hamlet, Fausto e Zaratustra, muitos graus acima até mesmo de todos os grandes hiper-heróis dos quadrinhos e do cinema (Doutor Estranho ou Doutor Manhattan, por exemplo).
A consciência sem qualquer verniz ou idealização que Rick Sanchez tem da Realidade — ou seja, de si mesmo, de todos nós, da natureza, do cosmos inteiro — ainda não foi alcançada por nenhum personagem da grande arte & literatura. Ou da grande arte & literatura de massas.
“Chupa essa manga, galera!”, foram as presunçosas & desafiadoras palavras do jovem Morty Smith, bestamente envaidecido das proezas do avô extraordinário, de quem ironicamente não herdou sequer um único gene de genialidade.
Um mito
Um detalhe importante sobre a Torre de Babel, que os historiadores, os teólogos e até os poetas jamais mencionam: essa mítica construção não era feita de tijolos, mas de livros.
Uma torre altíssima, feita de livros impressos, pois escavações arqueológicas recentes confirmam que a tecnologia (re)inventada por Gutenberg 33 séculos depois já existia na época de Hamurabi. Também já existiam o telégrafo e o Ford modelo T, dizem. E a literatura erótica da Hilda Hilst.
Em suas inúmeras camadas, da terra ao céu a Torre revelava as etapas da evolução do pensamento livresco em todos os idiomas existentes. A inevitável queda da Torre foi a inevitável interrupção dessa evolução, que recomeçou mais de cinco séculos atrás, com a (re)invenção da moderna máquina de impressão com tipos móveis, por Gutenberg, marcando o início do Renascimento.
A humanidade já passou longos períodos de tempo sem a presença dos livros. Foram períodos mais felizes? Foram períodos mais infelizes? Os livros ajudaram a promover a justiça ou a injustiça geral? A lua, o sol, a Terra e a galáxia giraram mais rápido com — ou sem — os livros?