Se tudo começa na infância, não seria diferente com a nossa trajetória como leitores. A minha começou ainda antes de aprender a ler, escutando histórias que meus pais e avós contavam na hora de dormir. Foi ouvindo que aprendi a imaginar mundos que não podia ver com os olhos, mas nem por isso deixavam de existir em detalhes vívidos. Acredito que essa foi a abertura sensível que, mais tarde, permitiu que eu me tornasse uma leitora entusiasmada. Passei a infância na companhia de Mauricio de Sousa, experiência que compartilhava com a minha irmã, Camila. Toda semana, infalivelmente, íamos juntas à banca que ficava na praça da cidade onde nasci, no Sul de Minas Gerais, ávidas pelos novos gibis da Turma da Mônica que chegavam. Já o primeiro livro-objeto pelo qual me lembro de ter me apaixonado infelizmente não existe mais: foi se desfazendo de tanto folhear, mexer, carregar, amar.
Como Clarice Lispector escreve no conto Felicidade clandestina, foi uma história de amor, o amor de uma menina por um livro. Ainda não sabia ler quando ganhei de presente da minha avó paterna uma coleção de capa dura, vermelha, com pequenas histórias ilustradas. Foi pelos bichos, em especial pelos gatos, que primeiro me encantei. Hoje, quando estou na companhia dos meus — são três em casa — me lembro das imagens irresistíveis naquelas páginas, talvez as primeiras versões do amor que hoje sinto por eles. Mais tarde, na escola, vieram as leituras obrigatórias, que me fizeram passar por Dom Casmurro com displicência. A ironia de Machado de Assis, naquela altura, era muito sofisticada para a minha pouca idade. Anos depois, quando cheguei a São Bernardo, algo havia mudado. Tinha entre 16 e 17 anos quando o livro entrou na lista de leituras do vestibular da Universidade de São Paulo. Li com a diligência de uma aluna aplicada guiada por um sonho. Mas mais importante: li, pela primeira vez, como uma leitora apaixonada pelas palavras de um livro.
Muitos anos depois, em outro processo seletivo — dessa vez para o mestrado —, voltei a encontrá-lo. Guardava o mesmo exemplar da adolescência (guardo, ainda) e reli não apenas o mesmo texto, mas exatamente as mesmas páginas, percorrendo o mesmo caminho com os mesmos olhos, mas também com um novo olhar. O prefixo re no verbo reler tem o sentido de repetição: ler novamente. Porém, assim como ninguém entra duas vezes num mesmo rio, também não é possível ler duas vezes o mesmo livro. Se as palavras até permanecem as mesmas, nós, ao contrário, estamos sempre em transformação, prontos para ressignificá-las.
Mas antes de Paulo Honório e Madalena, antes de Graciliano Ramos, havia Carlos Drummond de Andrade. Escrevi, num texto antigo em homenagem ao autor, que geografia é destino: por um desses caprichos da vida, eu, bisneta de italianos, neta e filha de paulistas, fui nascer em uma cidadezinha de Minas Gerais — a única mineira da família. Na pré-adolescência, um livro da estante dos meus pais ganhou minha atenção: Amar se aprende amando é um título que nem precisa pedir para ser lido, ainda mais quando se está aprendendo a amar pela primeira vez. Perdi a conta de quantas vezes o li. Eu, que na época não era exatamente uma pessoa de poesia, me tornei definitivamente uma pessoa de Drummond.
Cresci na minha própria Itabira, onde devagar as janelas olham. Foi cedo também que percebi que tinha apenas duas mãos e todo sentimento do mundo. Quando Drummond chegou de surpresa num dos vestibulares que prestei, sorri como ao encontrar um velho amigo — seu poema Infância, tão entrelaçado à minha, foi tema de uma das redações que fiz. Entrei na faculdade e me mudei para São Paulo, deixando para trás a minha própria infância e a nossa Minas Gerais.
A vida adulta me transformou numa leitora mais entusiasmada. A essa altura, Drummond disputa espaço em mim com novos livros e autores. Mas tenho por ele um afeto único. Somos muito mais do que um par de escritor e leitora. Somos conterrâneos, e não apenas de Minas Gerais. É ele quem me conforta quando preciso parar o mundo e experimentar por algum tempo a sensação de inexistência: “A vida necessita de pausas”. É com ele que divido a minha indignação: “Difícil compreender como no vasto mundo falta espaço precisamente para os pequenos”. É ele quem me empresta as palavras quando penso nesse meu lugar entre mundos: “No elevador penso na roça,/ na roça penso no elevador”.
Já outros livros chegam com atraso. Até a vida adulta, minhas leituras haviam sido pautadas pelo cânone e pelo mercado editorial contemporâneo, atravessados pela mesma assimetria que encontramos em outros campos da vida. Foi só então que a reflexão sobre a importância de fazer outras leituras me alcançou. Ler mais obras escritas por mulheres, por pessoas negras, indígenas e outras literaturas marginalizadas pela nossa cultura.
Há seis anos, já guiada por esse propósito, passeava por uma livraria de São Paulo quando encontrei um livro, quase ao acaso, na mesa de lançamentos. Esse livro, um romance, era assinado por uma autora italiana, Elena Ferrante, que na verdade se tratava de um pseudônimo. Embora hoje seja um fenômeno editorial, na época ainda era um nome desconhecido. Mas, logo no início, me senti instigada pela epígrafe escolhida por ela — um trecho de Fausto, de Goethe.
Na passagem, Mefistófeles conversa com Deus e é autorizado por ele a descer à Terra para testar Fausto, pois “o agir humano esmorece muito facilmente, em pouco tempo aspira ao repouso absoluto. Por isso lhe dou de boa vontade um colega que sempre o espicace e desempenhe o papel do diabo”. Um colega que sempre espicace e, assim, estimule movimento. Ferrante foi ela mesma minha Mefistófeles: a leitura desse primeiro romance, A amiga genial, abriu uma porta que me levou a toda a sua obra.
Li, reli, escrevi resenhas e trabalhos e, por fim, um projeto de mestrado, que se transformou numa dissertação e, mais tarde, inspirou também a escrita do meu primeiro livro: Elena Ferrante, uma longa experiência de ausência, pela Claraboia, publicado no ano passado. A relação da protagonista de sua tetralogia napolitana com os estudos e com a literatura acabou me inspirando a retomar os meus. Foi assim que, anos depois de me formar numa outra área, acabei me reaproximando da universidade, dessa vez para estudar literatura. Vim de mala e cuia, sinto que cheguei para ficar. Talvez por isso tenha me animado em emendar um doutorado, agora pesquisando a obra de outra autora, a polonesa Olga Tokarczuk.
A relação mais óbvia entre a minha pesquisa de mestrado e a minha pesquisa de doutorado é que ambas se ocupam de obras contemporâneas. Em 2018, uma colega de pós-graduação e eu criamos um grupo de estudos que passou a se reunir para analisar e debater alguns romances recentes, publicados por autores que compartilham o nosso tempo conosco. A partir da literatura, estabelecemos pontes com outros campos, que nos ajudam a pensar sobre questões que as obras suscitam.
Mas também passei a me interessar profundamente pelo aspecto propriamente literário do texto, pela sua tessitura, e pelo modo como forma e conteúdo podem ser conjugados. O mestrado e o doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada têm me dado ferramentas para ser uma leitora melhor sob esse aspecto. Sinto que estou apenas começando.
Quanto à busca de descentralizar as minhas leituras, percebo que o caminho também será longo. Embora seja uma mulher adulta, continuo em pleno processo de formação. Leio Ailton Krenak, Davi Kopenawa, Toni Morrison e Itamar Vieira Junior e me sinto profundamente convocada a fazer parte de um outro mundo, que talvez ainda tenhamos que construir. Mas se tem algo que aprendi com a leitura é que imaginar outros mundos é perfeitamente possível. Então vamos lá.