🔓 Minhas mortes

Vivemos num país que usa vacina como cabo de guerra político, que tira impostos sobre armas e os coloca em cilindros de oxigênio
21/01/2021

A criança morreu. Foi tudo o que me disseram. Eu devia ter uns 4 ou 5 anos. Meu primeiro contato com a morte foi seco, sem introdução, sem colo, sem aviso prévio. Desde então, tenho essa noção muito clara de que acabamos de uma hora para outra.

Talvez por isso, a balada Der Erlkönig, do emo do Goethe, tenha tido um impacto tão grande sobre mim.

O pai se desespera; ele cavalga velozmente,
Ele segura nos braços a criança aos prantos,
Chega à fazenda com grande dificuldade;
em seus braços a criança estava morta.

A morte mais recente não foi menos traumática: “Estou morrendo, anota aí”.

A consciência da morte não me desespera, apenas me apressa.

Não se enganem com o tema. Mesmo em meus quase 50, com rugas, celulite e cabelos brancos, me sinto tomada de um desejo quase imoral de vida, um desejo que anule a morte. Não viver a inércia aprendida. Não ser vencida pelo cansaço que, sim, existe.

Existem muitas mortes. Eu vivi, até agora, três tipos. A morte real, concreta, física de alguém. A morte metafórica de outro, quando aquela pessoa ou aquela situação finalmente acabou. E, a minha morte metafórica, quando o peso de uma ruptura não me deixa alternativa a não ser matar um pedaço de mim, para que outro possa nascer. No fundo, bem no fundo, eu sou uma otimista.

Desses três tipos, já passaram muitas mortes por mim. Passar me parece um verbo pequeno. Dilaceraram. Rasgaram. Atravessaram. Isso. Desses três tipos, muitas mortes já me atravessaram.

Minhas fases de luto das mortes metafóricas são estranhas. Começam antes da morte. Então, em uma separação difícil, por exemplo, eu me enluto antes do término e levo o prazo, amplio o meu limite até o inimaginável. E só então, rompo. Para o olhar externo, pode parecer que me recupero rápido, o que não é verdade. Sou lenta. Sofro. Sofro lerdamente mas começo antes do mensurável, então esse tempo – qual tempo não é pessoal? – se permite existir plenamente.

Minhas fases de luto das mortes concretas são mancas. Em nenhuma delas cheguei à aceitação. Algumas, inclusive, ainda estou na fase da raiva. E jamais negociei, considero um desrespeito com o falecido.

O primeiro texto que eu publiquei na vida foi sobre a morte. Foi nos Cadernos de psicanálise, da Sociedade de Psicologia Clínica, do Instituto de Psicanálise do Rio de Janeiro, ano 3, número 4, maio de 1984. Pela data, vocês podem ver que é um tema que me acompanha desde muito nova. O texto em si é bobo e tem como único mérito ter sido escrito por uma menina de 12 anos de idade.

Como acontece com aqueles que têm sorte, apanhei muito de lá pra cá e, com a vida, estreitei a minha relação com a morte. Relação que espero manter distante e infrequente.

Estamos vivendo um período em que muitos de nós estão sendo obrigados a conviver com a morte por conta de uma pandemia terrível, agravada pela má administração brasileira.

Vivemos num país que usa vacina como cabo de guerra político, que tira impostos sobre armas e os coloca em cilindros de oxigênio. Um país cujo líder propaga falsos tratamentos e desdém políticas públicas de contenção da doença. Um país que não respeita sua população.

Essa morte pandêmica, fora de controle, pertence aos três tipos. Nos mata por dentro e por fora. Tal qual um soldado norte-americano deixado para trás em um dos incontáveis filmes hollywoodianos com esse tema, se quisermos sobreviver, precisamos parar, respirar, traçar um plano e reagir.

O presidente se engana. Ele é coveiro, sim. E dos mais competentes.

Basta de carregar esse luto nos braços.

Carolina Vigna

É escritora, ilustradora e professora. Mais em http://carolina.vigna.com.br/

Rascunho