🔓 Centenária e encantada

Tia Maria do Jongo completaria 100 anos nesta quarta. É uma heroína legítima num país de tantos falsos heróis
Tia Maria do Jongo. Foto: Mateus Professor / Império Serrano Museu Virtual
30/12/2020

A história de Maria de Lourdes Mendes, nascida em 30 de dezembro de 1920, é um reflexo da diáspora africana. Sua avó fora escravizada na casa grande de uma fazenda em Minas Gerais e a mãe, Etelvina de Oliveira, acabou migrando para o Rio de Janeiro. Naquele ano de 1910, Madureira era uma área rural, remontava às lavouras mineiras. Foi ali, mais especificamente no Morro da Serrinha, que Etelvina se estabeleceu e deu à luz 14 filhos. Entre eles, Maria.

Quando pequena, ela costumava dormir sob o acalanto da voz da mãe. Etelvina ninava a filha com cantigas trazidas de Minas. “Minha mãe dizia que os escravos dançavam aquelas músicas na senzala”, lembraria muitos anos depois, quando a menina já se transformara em Tia e a herança, em alcunha.

Símbolo da cultura jongueira e, como se não bastasse, fundadora do GRES Império Serrano, escola na qual desfilou até seus últimos dias, Tia Maria do Jongo completaria 100 anos nesta quarta. É uma heroína legítima num país de tantos falsos heróis. Foi graças a mulheres como ela que o saber vindo da África resistiu às tentativas — reiteradas — de apagamento.

Gênero anterior ao samba, o jongo chegou ao Brasil dentro dos navios negreiros. Fincou suas bases sobretudo pelas mãos de pretos oriundos do Congo-Angola, que vieram trabalhar, sob a tira do chicote, na região do Vale do Paraíba, entre o Rio, Minas Gerais e São Paulo. Desde 2005, é considerado patrimônio imaterial do Brasil.

Seus pontos são cantados no ritmo dos atabaques, a partir de formação em roda, ao centro da qual se desenrola a dança. A umbigada é uma das principais marcas coreográficas: os dançarinos se aproximam, com os braços para o alto, como se fossem encostar suas barrigas. Ao menos nos pontos firmados em território brasileiro, os versos evocam os padecimentos do povo preto sob a escravidão, além de temas da natureza e da religiosidade. “Quando você bate um jongo, o espírito dos escravos está ali”, afirmou Tia Maria em entrevista ao jornalista Aydano André Motta.

Por várias décadas, as rodas de jongo foram vedadas às crianças. A própria Tia Maria, quando garota, só podia assistir aos encontros graças a uma pequena artimanha. Havia um buraco na parede de taipa de sua casa. Por ali, ela e as amigas vislumbravam o terreiro que ficava defronte, no quintal de Vovó Maria Joana Rezadeira. O fascínio pela dança proibida reiterava o gene festeiro da família. Se a mãe lhe transmitira o gosto pelo jongo, o pai não ficou atrás. Francisco de Oliveira, que ganhava a vida como gari, comandava um bloco carnavalesco no bairro.

Em 1970, Vovó Maria Joana e seu filho Darcy criaram o grupo Jongo da Serrinha. Pelas peculiares características — certo isolamento das áreas mais urbanas, o clima de roça —, o morro conseguira até aquele momento manter o último núcleo jongueiro carioca. “Mas como será depois que os mais velhos morrerem?”, questionava-se Vovó Maria Joana. Ela então propôs o fim da regra não escrita que restringia o acesso dos jovens às rodas.

A preocupação com a preservação dos códigos procedentes da África e transmitidos por pelo menos três gerações redundou, em 2000, na criação da ONG Grupo Cultural Jongo da Serrinha. Tia Maria assumiu a missão iniciada por Vovó Maria Joana e Mestre Darcy, trabalhando dia após dia para assegurar o vigor da histórica expressão artística e sua imersão na comunidade. A Escola do Jongo, fundada um ano depois, oferece atualmente oficinas voltadas aos moradores da Serrinha e das localidades próximas. Em outras frentes, promove aulas de capoeira, violão, percussão, literatura e dança popular. Essas atividades, momentaneamente online em razão da pandemia, possibilitam o contato direto de crianças e adolescentes com a cultura daqueles que os precederam, reforçam o senso de pertencimento e, em paralelo, abrem portas para a educação formal e a profissionalização.

Desde 2016, escola funciona dentro na Casa do Jongo, bem estruturado imóvel de 1700 m² que abriga ainda a memorabilia da dança. Estão lá, por exemplo, o chapéu panamá de Mestre Darcy e vestidos de Vovó Maria Joana. A conquista do espaço — localizado na Rua Compositor Silas de Oliveira, uma das vias de acesso à Serrinha — teve participação decisiva de Tia Maria. Vizinha do terreno onde havia até então um galpão abandonado, foi ela quem teve a ideia de transformá-lo em centro cultural.

Na Casa do Jongo, em 30 de dezembro de 2018, celebramos seus 98 anos. A comemoração reuniu parentes, amigos, o pessoal do Império, a meninada da Escola, jongueiros de outras cidades. Naquela tarde tão feliz, a memória foi tratada como matéria viva. A cada passo do “tabiado”, a cada refrão cantado em coro, a ancestralidade se assentava no presente e apontava o futuro. Em dado momento — toda vestida de verde, os pés descalços —, Tia Maria entrou na roda. “Nasci com o jongo e vou com ele até o final, só paro de jongar quando Deus quiser”, ela gostava de repetir. As palavras logo se tornavam dança.

Não imaginávamos que seria seu último aniversário. No ano seguinte, emblematicamente na própria Casa do Jongo, Tia Maria se sentiu mal. Como dizem os do santo, foi oló. Mas continua a dançar. Na saia florida da menina que gira ao centro do terreiro, no toque dos dedos sobre o tambor, no remoinho da baiana que atravessa a Avenida com o Império Serrano. Tem gente que não morre, se encanta.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho