Virtudes críticas

Quem ainda quer saber de crítica literária, quando a justificativa mais corrente da produção delas é a expressão da subjetividade, de sua identidade pessoal ou comunitária?
Ilustração: Eduardo Souza
02/01/2021

Anita Deak, do podcast Litterae (anchor.fm/Litterae), me pediu “um depoimento” sobre crítica literária “para os ouvintes que gostariam de se enveredar na área”. Acrescentou também que perguntas sobre crítica chegam bastante para o seu programa, tais como: “O que faz um bom crítico literário? Quais cuidados é preciso ter na hora de analisar uma obra?”.

Ao ouvi-la falar assim, genuinamente interessada, não deixei de me surpreender, pois muitas vezes penso na crítica literária como uma área em extinção. Quem ainda quer saber de crítica literária, isto é, de avaliação estética das obras, quando a justificativa mais corrente da produção e da circulação delas tem sido a expressão da subjetividade, de sua identidade pessoal ou comunitária?

Quando as coisas estão nesse pé, geralmente o crítico é considerado apenas como um intruso a imiscuir-se na legítima manifestação alheia. E uma intrusão basicamente injusta, já que foge da pauta de defesa e promoção de identidades reprimidas, individualmente ou coletivamente — o que, no quadro de um país radicalmente desigual, como o Brasil, tem sempre um caráter importante e urgente.

Por outro lado, acredito que essa contradição entre valor estético e identidades oprimidas tem de admitir alguma dialética, isto é, algum passo em frente para que seja enfrentada de maneira inteligente, ainda que nunca de maneira definitiva. A manifestação de Anita e de Paulo Salvetti, seu parceiro de programa, bem como a dos seus jovens ouvintes curiosos, solicitava justamente esse passo em meio à perplexidade que parece acometer o campo da literatura e, dentro dele, especialmente o da crítica.

Assim, pensando na pergunta sobre as principais qualidades de um crítico literário, lembrei-me de um livrinho do André Bazin cujo título é Le cinéma de l´occupation et de la resistance [O cinema da ocupação e da resistência], editado postumamente em 1975. No capítulo em que ele reivindica uma “crítica cinematográfica”, como nós poderíamos reivindicar novamente uma “crítica literária”, ele resume assim as virtudes que esperaria de um praticante dela:

[…] au fonde nous ne demandons rien de plus que ce qu´on attend naturellement à trouver dans toute autre critique: un minimum d´intelligence, de culture e d´honnêteté”.

[no fundo, nós não pedimos nada mais do que esperamos encontrar em qualquer outra crítica: um mínimo de inteligência, de cultura e de honestidade]

Para mim, ainda hoje, o concurso dessas três qualidades mencionadas por Bazin continua decisivo para a existência de uma crítica de qualidade.

A primeira delas, inteligência, não tem a ver apenas com um dote natural, mas sim com a exigência de uma disposição para o pensamento, para a reflexão de fôlego. Isso significa basicamente que qualquer atividade crítica implica num esforço concentrado de produção de uma interpretação, isto é, de um ato de juízo intelectual sobre o objeto artístico que se apresenta diante dele.

O ato intelectual não é uma opção para o crítico, mas uma definição ostensiva do caráter de sua atividade. Ele não pode se confundir, porém, com uma opinião dada sem estudo e investigação, apenas ao sabor de humores ou cumplicidades. Isso é típico de colunistas literários, que têm o seu papel na indústria cultural como operadores de editoras, agentes, jornais, etc., mas não de críticos dignos do nome. Nestes, a aplicação da inteligência é a contrapartida que podem oferecer para a existência da obra de arte. Está longe de ser uma tarefa fácil, já que a obra, ao menos aquela que tem valor, é sempre uma espécie de fábrica extraordinária, estranha ou surpreendente em meio à vida maquinal que a cerca.

Desse modo, ter trato com a obra de arte requer um exercício puxado dos neurônios, e isso não é espontâneo ou natural, pois geralmente quem primeiro se oferece para falar sem ter nada para falar é a preguiça mental, que carrega consigo uma multidão de lugares-comuns — que podem ser bem intencionados, e até mesmo prestigiosos em certas áreas, mas que, bem resumido, não passam de estereótipos e clichês estranhos à novidade da obra. Essa preguiça é a verdadeira intrusa a ser acusada, não o empenho crítico.

A segunda virtude que Bazin relaciona como necessária para o crítico tem a ver com a sua cultura. Isso obviamente remete a um repertório, e o repertório, por sua vez, implica que o crítico tenha uma inserção na vida das obras de arte. Outro crítico que admiro, Boris Groys, fala mais provocativamente na necessidade de “submissão à cultura” para o exercício crítico. Isso significa, antes de mais, que a crítica não é um ato isolado, mas está ancorada num hábito amplo e continuado de leitura, numa longa frequentação de obras de arte, com as quais, demoradamente, o crítico vai estabelecendo um modo particular de vida e de companhia.

Se não há adesão às obras, se não há familiaridade com o legado de muitas delas, se não há uma cuidadosa e constante criação de repertório cultural, a crítica é ligeira e inepta, vale dizer, um simples enunciado de neófito num jogo ainda extensamente desconhecido para ele. Assim, a crítica de qualidade supõe um imperativo que atira o crítico de uma obra a outra, e o atrai ou obriga a ir a escolas, universidades, museus, a entabular conversas, debates, a sustentar polêmicas que, afinal, por essa mesma frequentação cultural, passam a ser o que há de mais importante para ele. Claro, trata-se de um “imperativo imaginário”, como diz Groys, mas isso se instala no crítico como uma forma de vida, ainda que seja apenas uma forma alternativa, entre tantas outras, de viver a vida.

Por fim, a terceira virtude requerida por Bazin é a da pura e simples honestidade. Talvez hoje soe como um termo arcaico ou moralista, mas a honestidade é uma exigência tão importante também porque retira da imediatez dos lugares-comuns mais ou menos recompensados nas práticas contemporâneas. Ela também é chave para o crítico ganhar distância em relação aos operadores do mercado ou das simpatias consolidadas fora do exame acurado da obra.

Ou seja, para mim, crítica honesta é sobretudo a que considera seriamente a lógica proposta por um livro ou um objeto de arte. Não creio que se possa ajuizá-lo adequadamente, operando apenas do lado de fora do jogo que a obra propõe. É preciso entrar no jogo, conhecer as cartas que o artista dispõe, e então, sim, propor um ato de juízo sobre a obra considerando o seu alcance no horizonte de lances propostos ou legados por obras de natureza semelhante.

Enfim, essas três virtudes concorrem para levar a sério literatura e arte. Em parte, a crise que vivem hoje se dá porque são instrumentalizadas como ilustração de lugares-comuns que simplificam a obra até a irrelevância. Conceitualmente, o paradoxo não é novo: quer-se domesticar o que não admite ser instrumentalizado e sequer conceptualizado, pois nada descreve melhor a arte do que a sua indeterminação radical de criação. O que a crítica faz é justamente lidar com a forma que essa indeterminação finalmente logrou para si.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho