🔓 A Clarice essencial de todos nós

Marina Colasanti, Nélida Piñon, Heloisa Jahn, Alvaro Costa e Silva, Edney Silvestre e Ana Elisa Ribeiro revelam as obras de Clarice Lispector que mais os marcaram
Clarice Lispector, autora de livros essenciais da literatura brasileira
10/12/2020

(10//12/20)

Clarice Lispector foi craque no conto, na novela e no romance. Deixou sua marca também na crônica brasileira, quando esta viveu talvez seu momento mais glorioso — período em que teve de “concorrer” com a mineirada, Nelson Rodrigues e o papa Rubem Braga.

Clarice estreou aos 24 anos com o surpreendente romance Perto do coração selvagem. Vinte e um anos depois, em 1964, lançou seu livro mais comentado e impactante: A paixão segundo G. H. Romance estudado e destrinchado por gente da literatura, psicologia e até psiquiatria. Um enigma que quanto mais lido, mais espanto desperta.

Mas os contos de Clarice e seus livros “menos” comentados também pairam no imaginário dos leitores. O Rascunho perguntou a escritores, editores e poetas “qual é sua Clarice essencial?”. Na lista, leitores de longuíssima data, autores influenciados por Clarice e até amigos da autora, como Marina Colasanti, que leu os textos de Felicidade clandestina em primeira mão quando era editora do Caderno B, do Jornal do Brasil.

As “indicações” de leitura, bem ao estilo de Clarice, trazem de tudo um pouco: contos esparsos, depoimentos íntimos, memórias afetivas e até uma receita “clariceana”.

 

>> Marina Colasanti, poeta e prosadora, autora de Mais longa vida.

Eu deveria dizer que meu livro favorito de Clarice é Felicidade clandestina. Isso porque reúne as crônicas dela no Caderno B do Jornal do Brasil, pelas quais eu era responsável. E porque fiz o posfácio da edição comemorativa. Mas não corresponderia à verdade. Meu livro favorito é Laços de família. Os contos publicados por Clarice na revista Senhor, me revelaram em juventude esta escritora tão densa, tão única, e fui tomada por paixão literária que nunca mais se extinguiu.

 

>>> Nélida Piñon, da Academia Brasileira de Letras e autora do romance Um dia chegarei a Sagres.

A obra clariciana é extensa, grave, profunda. Sua leitura transfigura a alma do leitor. Julgo que suas diversas vertentes estéticas, dramaticamente criativas, derivam fundacionalmente da sua contística. Os contos deflagram a descoberta do outro, a revelação enfática da própria autora. Sugiro, pois, o ingresso em sua obra pelo livro Laços de família e A legião estrangeira. Só assim, sob o estímulo deste deslumbrante frontispício narrativo, adentrar n’A paixão segundo G. H. e demais cápsulas filosóficas de perfil altamente ontológico. Aptos, então, em dominar um epicentro afinado com a sensibilidade contemporânea, do qual se irradiam as epifanias de Clarice Lispector.

 

>> Ana Elisa Ribeiro, cronista e poeta, autora da coletânea de poemas Álbum.

Laços de família é, para mim, uma obra essencial de Clarice Lispector. Além dos contos famosos (na minha juventude eles eram longamente discutidos em sala de aula), talvez tenha sido aquele que me introduziu no texto da autora, que me causou os primeiros estranhamentos, inclusive quando eu, na interação íntima com o conto dela, pensava: mas isso pode? É pensamento de quem quer escrever, claro. Quem quer escrever lê fazendo-se várias perguntas e pensando em escolhas. Depois li romances da Clarice e me apaixonei por suas cartas, trocadas com amigos e amigas, mas Laços de família me arrebatou.

 

>> Edney Silvestre, jornalista e escritor, autor do romance Se eu fechar os olhos agora.

Quando fui morar no primeiro apartamento que pude chamar de “meu”, alugado em Copacabana, fiz minha primeira estante com tábuas, apoiadas em tijolos vazados. Não me lembro de todos os — poucos — livros ali, mas me recordo bem que os militares derrubaram a estante, rasgaram e destruíram a maioria (longa história, em parte contada em Vidas provisórias), mas um deles sobrou. Era uma edição de 1946, comprada em um sebo do centro do Rio, de O lustre. Guardo até hoje. Abre com uma frase memorável desde sete décadas atrás: “Ela seria fluida, durante toda a vida”.

 

>> Heloisa Jahn, editora e tradutora.

Receita para encontrar Clarice:

Tome-se um livro qualquer, um conto qualquer escrito por Clarice Lispector. Abra-se ao acaso, e leia-se: “E no escuro ele estava inquieto. A rosa que inadvertidamente ele tocara no jardim deixara-o escoiceante como um cavalo que retém o galope. A essa altura as coisas tinham de algum modo perdido o tamanho material. Ninguém jamais teria por um segundo se defrontado com o oco de onde saem as coisas sem ficar para sempre com a indocilidade do desejo”. Ou: “E sabia que era uma feroz entre os ferozes seres humanos, nós, os macacos de nós mesmos. Nunca atingiríamos em nós o ser humano”. Sempre palavras surpreendentes compondo frases que nos atingem como golpes. Frases que desnudam verdades íntimas, as mais íntimas, as mais recônditas, que ecoam em nossa sensibilidade como o desvendamento de sentimentos tão ocultos, tão desconhecidos, que talvez ainda não os tivéssemos encontrado em nós.

(os trechos citados são de A maçã no escuro, Nova Fronteira, 1961, p. 170; e Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, José Olympio, 1969, p. 144)

 

>> Alvaro Costa e Silva, cronista da Folha de S. Paulo, autor de Dicionário amoroso do Rio de Janeiro.

Chamo a atenção para os contos de Clarice Lispector. Neles — alguns inesquecíveis para quem os leu pela primeira vez e sempre retorna: Devaneio e embriaguez duma rapariga, Uma galinha, Feliz aniversário, A menor mulher do mundo, O búfalo, A legião estrangeira — fica evidente o perfeito domínio da narrativa curta. Alguém discorda que, para inventar, há de que se conhecer o básico? No conto tradicional, uma história secreta se revela no clímax ou mesmo no truque da reviravolta da última linha. Em Clarice, repare em seus finais: muitas vezes a alma da personagem, a qual foi se desnudando no processo da escrita, resume-se (ou implode-se) numa única frase. Amor é um conto típico na produção da autora. Ana, casada, com filhos, tem um troço dentro do bonde, grita, deixa cair o embrulho de ovos, ao ver um cego. Mas não um cego como outros: aquele mascava chicletes parado perto do ponto. É o início de uma jornada interior de terror gótico. A personagem pula do bonde e entra pela alameda central do Jardim Botânico do Rio de Janeiro: “A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada… Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado… O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno”.

>>> LEIA “A (genial) estranheza de Clarice”

>>> LEIA “Dos velhos e oprimidos”, de Claudia Nina

Rascunho

Rascunho foi fundado em 8 de abril de 2000. Nacionalmente reconhecido pela qualidade de seu conteúdo, é distribuído em edições mensais para todo o Brasil e exterior. Publica ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção (contos, poemas, crônicas e trechos de romances), ilustrações e HQs.

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