🔓 A lua na caixa d’água

A bagatela do cotidiano acende a transcendência que nos acolhe em pequenos gestos inesquecíveis
O escritor e compositor Aldir Blanc
17/11/2020

(18/11/20)

Num de seus livros, Aldir Blanc lembra a noite de verão em que estava sozinho no quarto, às voltas com um pesadelo, quando o avô o chamou. Propôs que fossem ao quintal. Ao lado do tanque, Seu Antônio encostou a escada e escalou os degraus até a caixa d’água. Depois puxou o menino pelas mãos, para então afastar a tampa, apontando para dentro:

— Olha…

Ao flagrar a imagem da lua cheia refletida na água, o pequeno Aldir ergueu os olhos no sentido oposto. Virou-se para o céu.

— É a lua!

— Aquela, não. Aquela é gelada, feita de pedras, uma espécie de vulcão extinto — respondeu o avô — Essa aqui, dentro da caixa d’água, é a lua da Zona Norte. Põe a mão nela…

Tão distante na imensidão, a lua cheia de repente estava ali ao lado, passível de toque, trêmula e morna. Essa efígie ressoaria na obra do futuro escritor e compositor, na qual o sublime e o chinfrim conviveram sem estrondo. Mais que isso: estiveram amalgamados a ponto de não conseguirmos distingui-los.

Na ode ao poluído Rio Maracanã, composta com Paulo Emílio, Aldir pede que se injete em suas veias o soro de “pilha e folha morta”, de “aborto criminoso, de caco de garrafa, de prego enferrujado”. O lixo da cidade, cuja capa foi retirada, se deixa ver sem enfeites. A água turva se converte em sangue. Que circula, dentro do cronista, como o curso de um rio particular.

“Meu quintal é maior do que o mundo”, escreve Manoel de Barros a propósito da enormidade desses universos construídos dentro de nossas histórias miúdas. Como a da amoreira que a mãe plantou nos fundos de casa na época em que eu crescia dentro de sua barriga.

A gravidez lhe despertara o desejo por amoras. Quando nasci, logo notaram que havia um sinal escuro, e alto, na cabeça do bebê. A mãe adorava repetir que ali estava a amora tão ansiada. A mesma fruta de sabor agridoce na qual outro poeta, o português Herberto Helder, experimentou “o entusiasmo do mundo”.

Volto ao Aldir. Agora, em parceria com Moacyr Luz. Os versos de uma separação que, doloridos, transitam pelos botequins mais vagabundos, correm ladeira abaixo até que as coisas se definam “como são”: a ilusão, um vício; as estrelas, pequenos incêndios na solidão. Nada mais.

Talvez porque estejam lá, a trilhões de quilômetros, e esqueçamos de suas dobras. Da bagatela que, por vezes, acende a transcendência.

Um samba do Cartola, mãos dadas no cinema, o primeiro olhar de um bebê. A luz que bate no fim da tarde, cobrindo as pessoas de um dourado sutil. O cheiro do café assim que fica pronto. O primeiro beijo. Os ipês amarelos quando florescem. Massagem nas costas. Pestana depois do almoço. Um lalaiá da Ivone Lara. Aroma de maresia. O primeiro amor, ainda que nem seja amor. Pixinguinha tocando flauta, cafuné da mulher amada. O cheiro do pão que sai do forno, corrida na chuva, goiabada com queijo. Ou a lua cheia projetada no espelho precário de uma caixa d’água sem tampa em Vila Isabel.

Marcelo Moutinho

É autor dos livros  A lua na caixa d’água (Prêmio Jabuti 2022), A palavra ausente (2022), Rua de dentro (2020), Ferrugem (Prêmio da Biblioteca Nacional 2017), Na dobra do dia (2015), e dos infantis Mila, a gata preta (2022) e A menina que perdeu as cores (2013), entre outros.

Rascunho