“Uma pessoa é a soma de suas escolhas”

A israelense Ayelet Gundar-Goshen fala sobre o processo de escrita de seus elogiados romances, que misturam boas tramas a dilemas morais
A israelense Ayelet Gundar-Goshen, autora de “Despertar os leões”
12/11/2020

Tradução: Vivian Schlesinger

Ayelet Gundar-Goshen é hoje um dos principais nomes da literatura israelense. Com uma escrita marcante e inteligente, ela sustenta seu trabalho em temas como drama humanitário, política e crises pessoais.

Dois de seus livros já foram publicados no Brasil pela Todavia. Um deles é Uma noite, Markovitch (2018), romance em que a história de Israel é o pano de fundo, ganhador do Prêmio Sapir para melhor estreia, e traduzido para 14 idiomas. Já Despertar os leões, lançado neste ano — também premiado e que integra a lista 100 Notable Books of 2017, do jornal The New York Times — parte de um dilema moral do protagonista e, por meio dele, instiga o debate sobre cultura e imigração.

O trabalho de Ayelet ainda se destaca no cinema: seus roteiros foram reverenciados em festivais como o Berlin Today Award. Nesta entrevista ao Rascunho, a escritora fala sobre literatura, o conflito árabe-israelense e a complexidade das virtudes humanas.

• Suas histórias apresentam um pano de fundo social e político, embora os dramas internos dos personagens sejam marcantes. Quais impactos os conflitos políticos têm sobre os indivíduos, por exemplo, no aspecto psicológico ou familiar?
Ninguém existe como uma ilha, sozinho no oceano, estamos todos ligados uns aos outros, então conflitos políticos nos afetam de maneiras profundas mesmo se individualmente não parecermos ser parte ativa deles.

• A partir da leitura de Despertar os leões e de suas entrevistas, nota-se uma crítica à visão de mundo maniqueísta, que divide as pessoas entre “boas” e “más”. Quais são os riscos dessa narrativa simplista? Você identifica essa narrativa na política de Israel?
Narrativas simplistas nos impedem de captar a abundância da natureza e psicologia humanas. “Bom” versus “ruim” é uma versão Disney do mundo, adequada para crianças, não para adultos. Acredito que cada um de nós tem dentro de si o lobo e o cordeiro — podemos ser predadores em relação aos outros, assim como podemos ser o lado fraco em uma relação. A maioria prefere pensar em si como “a parte boa” em suas relações, e focar na dor causada a eles pelos outros. Países tendem a fazer o mesmo. Israel gosta de pensar em si como uma vítima — e por muitos anos os judeus foram de fato as vítimas da História —, mas não reconhecemos o fato que nem sempre somos a vítima. Às vezes, somos o predador.

• A questão dos refugiados é muito complexa e afeta milhões de pessoas em todo o mundo. O protagonista de Despertar os leões, Eitan Green, representa metaforicamente a postura da sociedade israelense em relação aos refugiados?
Eitan Green pensa em si como um homem bom, liberal. É assim que a sociedade israelense gosta de pensar em si também. E creio que é a maneira que a maioria dos países ocidentais se imagina. Como ele comete o (crime de) atropelamento e fuga, é forçado a encarar o racista dentro de si, de perceber que talvez não seja tão bom e liberal quanto pensou que fosse.

• Grupos de extrema direita têm conquistado cada vez mais espaço no mundo político, com um discurso de ódio, supremacia, preconceito e violência. Qual é a melhor maneira de se combater este posicionamento tão nocivo à convivência?
Existem modos diferentes de resistir, todos eles importantes. Acredito em ativismo político, vou a manifestações em Israel contra nosso governo atual, porque creio que, se você ama seu país, tem a obrigação moral de se posicionar quando acha que ele está fazendo algo errado. Ao mesmo tempo, temos que reconhecer que o fascismo não nasce do nada, e que devemos tentar identificar o racista dentro de todos nós e encará-lo.

“A habilidade de imaginar algo diferente do cenário político atual — imaginar a paz, por exemplo — é o que nos dá esperança.”

• Amós Oz, em especial por meio de artigos e ensaios, sempre se posicionou sobre a questão dos conflitos entre judeus e árabes. De que maneira a literatura feita hoje em Israel tem contribuído para compreender e apontar uma solução para os conflitos?
A literatura lida com o “e se”, explora rotas desconhecidas e pergunta o que poderia ter acontecido se as seguíssemos. A habilidade de imaginar algo diferente do cenário político atual — imaginar a paz, por exemplo — é o que nos dá esperança. A literatura também é um exercício de empatia, quando lemos sobre um personagem palestino que nos toca o coração, nos damos conta que a diferença pode não ser tão grande quanto os políticos dizem.

• Você considera possível a convivência plenamente pacífica entre judeus e árabes?
Sim. Eles fizeram isso por muitos anos em países árabes antes da fundação de Israel, e podemos fazê-lo de novo, se apenas abandonarmos essa história de que o outro lado é o pior mal.

• O deserto representa muito na história judaica, como travessia, local de purificação, espaço de milagres. E, na história do Estado de Israel, é parte importante da identidade do país por mostrar que o deserto também é generoso. Por que você escolheu o deserto como cenário onde os dois mundos (de Eitan e de Sirkit) se encontram? Você acredita que a literatura pode fazer o papel dos 40 anos da travessia?
Como você afirma, o deserto é uma parte importante da mitologia judaica. É no deserto que Moisés encontra Deus, e que os dez mandamentos nos são dados. Então, quando se está na solidão, nesse lugar vazio, você pode ouvir a si próprio, ouvir Deus, ou ouvir os padrões morais dentro de você. Mas o deserto também é um local de abandono; hoje, em Israel, é habitado por vilarejos beduínos a quem o estado recusa-se a fornecer água e eletricidade. Mais do que isso: enquanto os israelenses bíblicos atravessaram o deserto para chegar à terra prometida, os refugiados africanos agora atravessam o mesmo caminho para chegar a Israel, e ainda assim fechamos nossos portões e os deixamos fora.

• Despertar os leões tem como base a estrutura de um mito bíblico sobre moral, culpa e penitência. Mas o heroísmo dos personagens é repetidamente derrubado por sua ambiguidade. Qual é o papel da Bíblia na literatura contemporânea?
A Bíblia é um dos melhores livros didáticos de literatura e psicologia humana. As questões básicas humanas de culpa e responsabilidade estão ali, no jardim do Éden ou no primeiro assassinato bíblico, e estão presentes na literatura moderna israelense também.

“Se você ama seu país, tem a obrigação moral de se posicionar quando acha que ele está fazendo algo errado.”

• Uma noite, Markovitch tem uma atmosfera mágica, situa-se entre a realidade e a fantasia, enquanto que Despertar os leões é bastante realista, a ponto de o leitor se perguntar o que faria no lugar de Eitan. O que a levou a fazer essa opção?
Quando o segundo romance ficou pronto, dei a alguns amigos, e eles me avisaram que os leitores que esperavam um tom leve — como no primeiro livro — ficariam chocados com o segundo. Mas a razão por que adoro escrever é que é o único playground aberto aos adultos. O único lugar onde você não tem que manter-se lógico, claro, previsível. Você pode fazer o que quiser, ser quem quiser, um conto de 60 anos atrás como Markovitch ou algo muito mais rígido e realista como Despertar os leões. Sempre começo a partir de uma ideia específica, uma pergunta que tenho em mente. Em Despertar os leões era a questão do atropelamento e fuga. Não era uma pergunta literária, mas um acontecimento verdadeiro que me chocou: eu tinha 20 anos quando conheci o protagonista desse romance. Estava viajando na Índia e conheci um jovem israelense que apenas se sentava na pousada e olhava para o nada por noites seguidas. Tinha um rosto sonhador e cabelo longo, claro. Tinha acabado o serviço militar e saiu para a aventura de sua vida. Mas havia algo errado com ele. Ele parecia congelado. Não falava, não fumava, não fazia nada. Só ficava deitado na rede da pousada e olhava para o céu. Algo o estava consumindo por dentro, isso estava claro. Eventualmente me aproximei e perguntei-lhe se ele estava bem. Ele me contou que alguns dias antes havia atropelado um homem indiano com sua moto, e fugido. Fui assombrada por esta história durante dez anos até sentar e escrevê-la, e uma das razões era que eu não conseguia encontrar a trilha certa para o protagonista. Eu não queria escrever um romance de 300 páginas sobre um cara branco sentindo-se culpado e contemplando sua culpa em sua sala de visitas bem decorada. Só quando percebi que essa pessoa é chantageada pela viúva do refugiado que ele matou é que sentei-me para escrever.

• Em A mulher foge, de David Grossman, uma mulher foge para evitar receber a notícia da morte de seu filho em combate, acreditando que assim ele ficará seguro. Escrever sobre a culpa também é uma forma de evitar que ela nos atinja?
Essa é uma pergunta brilhante, porque identifica a armadilha: você começa a escrever porque quer explorar a culpa, mas então escrever te purifica, e você poderia pensar que isso é igual à ação no mundo real. Não é.

• A polarização política em muitos países tem repelido o humor das conversas. Mas nos seus romances, mesmo nos piores momentos, o humor aflora. Você considera que o humor conhecido como “judaico”, ou seja, fazer piada às custas de si próprio, tem lugar hoje? Ele pode contribuir com a empatia?
Acho que sempre deve-se tentar rir de si próprio antes de rir dos outros. É um desafio muito maior.

“A Bíblia é um dos melhores livros didáticos de literatura e psicologia humana.”

• Ao inaugurar sua pequena livraria, As verdadeiras riquezas, em 1936, em Argel, o icônico editor Edmond Charlot escreveu na vitrine: “Um homem que lê vale por dois”. De que maneira a literatura reforça a nossa capacidade de resistir?
Essa é uma linda citação, obrigada por apresentá-la a mim. No entanto, se mergulhamos em um livro da maneira que as pessoas hoje preferem ver TV e não sair à rua, então o livro é “férias da realidade”, não uma chamada à ação. Mas se terminarmos o livro sentindo-nos mais despertos, mais responsáveis — isso é combustível.

• Em Despertar os leões, embora o personagem principal seja Eitan, quem está no controle da situação é Sirkit, uma mulher. No Brasil, há anos crescem os debates a respeito da representação das mulheres na literatura. Como é esse debate em Israel e qual a sua opinião sobre ele?
A vida de Sirkit muda porque ela é a única testemunha do atropelamento e fuga. O papel tradicional atribuído às mulheres — observe, e fique quieta — é ironicamente dotado de peso. Porque o que ela vê quando observa o acidente confere-lhe poder sobre esse homem. Os papéis são invertidos. Era muito importante para mim que Sirkit não fosse esse “anjo negro”, uma santa, uma Maria africana. Eu queria que ela fosse um ser humano verdadeiro, com sonhos e desejos e aspiração ao poder. Acho que apresentá-la como santa é tão desumanizador quanto apresentá-la como o maior mal. Um refugiado não é mais santo do que um homem de classe média. Ambos são rótulos, e por trás dos rótulos há pessoas de verdade — que amam, traem, odeiam e confiam.

• A esposa de Eitan, investigadora do caso, aproxima-se algumas vezes da verdade sobre o atropelamento, mas parece não querer saber, pois a verdade poderia desfazer a imagem de “homem bom” que ela tem do marido. Como você pensa a relação deles nesse sentido?
Concordo muito com sua afirmação. Essa é uma das coisas que me incomodou enquanto estava escrevendo o romance. A aritmética de “quanto bem é igual a um grande mal”. Não tenho certeza se já achei a resposta. Gosto do ponto de vista existencial em que uma pessoa é a soma de suas escolhas — nada mais, nada menos. O que define Eitan melhor: uma vida cheia de direção cuidadosa, de estudos médicos, de carregar as compras de supermercado de uma idosa, ou aquele momento único de atropelamento e fuga? Quarenta e um anos de vida versus um momento único e, no entanto, talvez aquele momento contenha muito mais do que seus sessenta segundos, assim como um pedacinho de DNA define toda a espécie humana. Será que Liat, sua esposa, está disposta a encarar essa complexidade? Acho que não, ela está casada com um homem bom e recusa-se a olhar mais fundo do que isso.

• Escritores israelenses como Amós Oz, David Grossman e A. B. Yehoshua são bastante conhecidos no Brasil. Que outros autores e autoras israelenses deveríamos conhecer?
Eshkol Nevo, Dror Mishani, Maya Arad são alguns dos meus favoritos.

• Você já disse que admira representantes da literatura brasileira como Jorge Amado e Clarice Lispector. De que maneira eles te inspiram?
A compaixão de Amado com seus personagens, o humor e compromisso de explorar as diferenças de poder e de classe.

• Como é o seu processo e rotina de escrita? Como nasce a sua ficção?
Quando escrevo o enredo, vejo-me como o primeiro leitor do romance: não quero ficar entediada. Então tento me perguntar: o que iria me surpreender na próxima página? É um pouco como brincar de esconde-esconde consigo mesma. Em ambos os meus romances eu não tinha ideia de como a história terminaria até chegar bem ao final da escrita. É como caminhar em uma trilha — você não quer saber como é a vista do ponto mais alto até que chegue lá.

* Colaboraram Rogério Pereira e Vivian Schlesinger.

>>> Leia resenha de Despertar os leões.

Despertar os leões
Ayelet Gundar-Goshen
Trad.: Paulo Geiger
Todavia
368 págs.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho