O que não queremos saber sobre nós mesmos

"Despertar os leões", de Ayelet Gundar-Goshen, põe em discussão profundas questões morais em meio a um suspense bem construído
A israelense Ayelet Gundar-Goshen, autora de “Despertar os leões”
02/11/2020

Na maior parte dos nossos dias, nada de extraordinário acontece. Temos fé na rotina: cumprimos obrigações com naturalidade e tomamos decisões aparentemente certas. Mas o inesperado é sempre uma possibilidade de enxergar tudo de outro jeito. Despertar os leões, da israelense Ayelet Gundar-Goshen, começa assim: o médico Eitan Green encerra o plantão num hospital na cidade de Beer Sheva e, dirigindo para casa tarde da noite, atropela e mata uma pessoa — um refugiado eritreu que mais tarde descobrimos chamar-se Assum. É preciso tomar uma decisão. Ele se aproxima para verificar os sinais vitais do homem ferido na estrada, conclui que não pode ajudar, vai embora e não conta nada a ninguém.

Eitan passa algumas horas acreditando ser a única pessoa a saber daquilo. No entanto, a companheira do eritreu, Sirkit, bate à sua porta no dia seguinte com a carteira que ele deixou cair no local do acidente. O protagonista pensa em “recompensá-la” com dinheiro, mas a mulher quer outra coisa. A partir desse encontro, os dois compartilham o segredo sobre aquela noite e uma rotina enlouquecedora.

A polícia logo fica sabendo sobre o acidente e a investigadora responsável por encontrar o culpado é Liat — esposa de Eitan. Contando assim, pode até parecer que Despertar os leões se resume a mais uma história sobre um homem de classe média se sentindo culpado, mas não é isso. Ali encontramos geopolítica, discriminação, vida familiar, formação moral. O êxito do enredo está no fato de Sirkit ter o controle da situação. A eritreia pratica um tipo diferente de extorsão, obrigando o médico a se aproximar de uma comunidade de refugiados que, embora Eitan soubesse existir, mal enxergava.

A situação do atropelamento é inspirada em um caso real relatado à escritora por um viajante na Índia. Um dos principais nomes da literatura israelense contemporânea, Ayelet Gundar-Goshen também é psicóloga e mostra muita habilidade na construção desse suspense, principalmente ao apresentar os pontos de vista de cada personagem. Para ler Despertar os Leões é preciso saber que se está diante do texto de alguém influenciado, de um lado, por Amós Oz — escritor com uma trajetória bastante ligada ao ativismo — e, de outro, por Patricia Highsmith — norte-americana autora de trhillers criminais psicológicos. O texto na orelha do livro o identifica como “suspense humanitário”, uma perspectiva no mínimo interessante para entendê-lo.

Despertar os leões foi escrito em 2014 e chegou ao Brasil em 2020. No ano passado, Ayelet participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) para lançar seu primeiro livro, o elogiado Uma noite, Markovitch, história de um casamento que tem como pano de fundo a formação do estado de Israel.

Um homem bom?
A recusa inicial do protagonista para entender que foi capaz de abandonar uma pessoa ferida na estrada tem a ver com a ideia que ele faz de si mesmo. Eitan se julga um homem bom. Um médico honesto, apaixonado pela esposa, pai exemplar, que precisou mudar de Tel Aviv para Beer Sheva com a família porque não concordava com um esquema de corrupção no hospital onde trabalhava. Então, como seria capaz de fazer uma coisa dessas? E como pôde esconder o segredo da própria companheira? Parece que Eitan não quer deixar de ser visto como “boa pessoa” pelos outros, destruir a admiração e a amabilidade da família com relação a ele.

Quando digo que o livro não é sobre um homem se sentindo culpado, quero dizer que também é — ao menos quanto aos dilemas pessoais de Eitan — sobre viver com peso na consciência por muito tempo. O médico reconhece os erros cometidos, mas o esforço diário de escondê-los parece atordoá-lo cada vez menos. As atitudes de Liat também deixam dúvidas: a investigadora, neste caso, procura uma resolução?

A própria escritora diz, em uma entrevista, que colocar a esposa do médico como a detetive do caso não é apenas um recurso para impulsionar o suspense, mas para propor uma pergunta: desejamos mesmo saber toda a verdade sobre quem amamos?

Mentiras confortáveis
Eritreia é um país de aproximadamente 117 km² que faz fronteira com a Etiópia, no Norte da África, litoral do Mar Vermelho, independente desde 1993. Um lugar onde as violações de direitos humanos levam um grande número de pessoas a buscar abrigo em outros continentes. Essa é a origem do homem atropelado por Eitan e da mulher que o chantageou. Mas o médico só se interessa por essa origem e contexto muito tempo depois. Ele pesquisa sobre os eritreus, busca informações e observa como pode, mas entende que é preciso muito mais para conhecer realmente essa sociedade.

Por fim se levantou, desligou o computador. Poderia contemplar durante horas fotografias e mapas. Comparar a Wikipedia em hebraico com o verbete em inglês. Com os diabos, ele poderia recitar de cor o PIB nos últimos dez anos — e ainda assim não avançar um centímetro.

E se Eitan não tivesse atropelado um refugiado eritreu, mas um cidadão israelense? Essa pergunta surge inevitavelmente entre as páginas de Despertar os leões. A rotina forçada em meio aos refugiados faz o médico ver seu próprio país de outra maneira, e mudar a imagem que tinha de si. Em uma resenha do livro para o jornal Financial Times, a escritora Ann Morgan é certeira ao dizer: “Por meio dessas interações, a autora revela as mentiras confortáveis que contamos a nós mesmos diante da diferença e a maneira como frequentemente abafamos a humanidade daqueles que não entendemos”.

As reviravoltas inseridas por Ayelet Gundar-Goshen no enredo poderiam até parecer forçadas se não tivessem um significado tão profundo. O contato de Eitan com Sirkit vira uma bola neve sem controle, passa a envolver outras pessoas, outros crimes, fica cada vez mais violento — um roteiro digno de cinema. Mas essas reviravoltas são responsáveis por conduzir nossa leitura justamente para a dimensão política e social da história. Nesse aspecto, Ayelet nos leva a pensar sobre a responsabilidade moral de um país com seus imigrantes, com a diversidade como um todo. Em que medida temos sido responsáveis nesse sentido? Talvez a resposta tenha a ver com uma frase da escritora israelense em uma palestra no ano passado: “A literatura é sobre o que não queremos saber sobre nós mesmos”.

>>> Leia entrevista com Ayelet Gundar-Goshen

Despertar os leões
Ayelet Gundar-Goshen
Trad.: Paulo Geiger
Todavia
368 págs.
Ayelet Gundar-Goshen
Nasceu em Israel, em 1982. É mestre em Psicologia Clínica pela Universidade de Tel Aviv e autora dos livros Uma noite, Markovitch (2018) e The liar (2017), ainda não publicado no Brasil. Seus roteiros ganharam prêmios em diversos festivais e foram adaptados para filmes e séries de TV.
Gisele Barão

É jornalista

Rascunho