Duas intervenções

Não convém engolir a fantasia de liberalismo adotada mal e porcamente pelo besteirol autoritário do governo Bolsonaro
01/09/2020

Em julho, movido por um impulso cívico de revolta contra a desfaçatez e a boçalidade triunfante que acometem o país, escrevi dois artigos de intervenção. O primeiro, em coautoria com o poeta e juiz Régis Bonvicino, foi publicado na Folha de S. Paulo, no dia 6, e intitulou-se O STF e as sandálias Havaianas. Resumidamente, defendia, contra a opinião de um editorial da própria Folha, a decisão do STF que vetou a redução temporária de jornada de trabalho e salário. Está bem claro que todos os decretos governamentais que se dizem temporários, invocando a lei de Responsabilidade Fiscal ou explorando cruelmente a desgraça da covid-19, têm o propósito de se tornarem permanentes, liquidando de vez os poucos direitos trabalhistas que restaram.

Nem é preciso dizer o quanto a defesa desses direitos, ainda mais quando referentes a funcionários públicos, é estigmatizada pelos adeptos desse pseudoliberalismo que tomou conta do governo e encontra grande guarida nos jornais e na opinião pública. Chamo de pseudoliberalismo porque usualmente não hesita em contestar investimentos em saúde, educação, ciência e tecnologia, além de todo tipo de despesa com pessoal especializado, para favorecer e reivindicar lucro subvencionado pelo dinheiro público. É um liberalismo de fachada que exclui a concorrência, a iniciativa e, sobretudo, o trabalho duro. Um capitalismo pé de chinelo, com olhos e mãos compridos para o erário público.

O segundo artigo de intervenção que escrevi, desta vez em parceria com o reitor da Unicamp, o físico Marcelo Knobel, foi publicado dia 18, no Estadão, com o título de O valor de um currículo acadêmico. Como diz respeito diretamente à formação e à carreira do professor universitário, reproduzo-o integralmente a seguir:

A constrangedora fraude curricular do ministro da Educação que, embora nomeado recentemente pelo governo federal, pediu demissão antes de tomar posse devia servir ao menos para esclarecer a opinião pública sobre o valor de um título acadêmico legitimamente defendido e obtido numa universidade de prestígio. Nos dias estranhos que correm, isso já não é óbvio. Ao contrário, são frequentes os comentários depreciativos sobre a carreira dos professores, mesmo no âmbito de universidades que exigem pesquisa, docência e extensão.

É preciso saber que para se tornar docente numa universidade de excelência é necessário possuir título de doutor, que leva de três a cinco anos para ser obtido. Mas isso só é possível após uma graduação de quatro a seis anos e de um mestrado de mais dois. Algumas áreas exigem especialização, residência ou exame específico. Várias pedem dois anos de estágio de pós-doutoramento no exterior, período que não se resolve com uma visita rápida a uma instituição estrangeira, como escancarado no caso recente do ex-ministro. São anos complicados, com bolsas de estudos de valor baixo, que só atendem às necessidades básicas de vestuário, alimentação e moradia da pesquisadora ou do pesquisador e de sua família. 

Após a formação, chega a hora dos concursos públicos. São estressantes, raros e disputados, podendo haver 30 ou mais candidatos para uma única vaga. Muitos passam anos até conseguir ser aprovados, mantendo-se ativos na área graças a alguma modalidade de bolsa ou de subemprego. Após vencer esse funil e ser contratado por uma universidade pública, não há dolce vita. Além de aulas obrigatórias na graduação e na pós, aumenta a pressão sobre o docente. A universidade e a comunidade científica exigem demonstrações da qualidade em pesquisa manifesta em artigos, livros, apresentações em congressos no Brasil e no exterior.

Para avançar na carreira, cada passo é submetido a bancas de arguição e à avaliação de mérito. Ao fim de 20 ou 30 anos de serviço, poucos conseguem pleitear o concurso da titularidade, último passo da carreira. Numa universidade de excelência, é preciso ainda orientar estudantes de iniciação científica, mestrado e doutorado, supervisionar pós-doutorados e estabelecer um grupo de pesquisa capaz de pleitear reconhecimento nacional e internacional. 

A demanda por recursos aumenta, pois é necessário comprar equipamentos, pagar bolsas e encontrar meios de financiamento da pesquisa. Os docentes estão obrigados não apenas a fazer ciência, mas a administrá-la — preparando projetos, escrevendo relatórios, prestando contas e gerenciando colaborações.

Professoras e professores também têm forte demanda para colaborar com a administração da universidade. São convocados a compor comissões, chefiar departamentos e outros órgãos, o que significa distribuir seu tempo e sua responsabilidade em tarefas que precisam ser aprendidas durante seu próprio exercício. Em algumas áreas, como nos hospitais universitários, médicos e enfermeiros atuam como única opção de atendimento a milhões de pessoas sem plano de saúde e sem outro acesso a procedimentos caros e sofisticados.

A vida de um educador comprometido com a universidade pública exige formação longa, responsabilidade elevada, participação em pesquisa de ponta e engajamento na formação de recursos qualificados para o País. Os salários não são altos e, dependendo da área, são incompatíveis com a remuneração em funções análogas ou próximas no mercado. Boa parte desses docentes teria condições de assumir postos nas melhores universidades do mundo, com salários e infraestrutura superiores. Isso não significa que seja uma carreira para loucos ou abnegados. O que leva os docentes a escolhê-la é que, assentada a possibilidade de uma vida digna, com liberdade de pensamento, a carreira universitária oferece abertura, como poucas, para a criação autoral, a formação de futuras gerações, o vínculo com a sociedade e o desenvolvimento do País.

Uma democracia está obrigada a investir em infraestrutura, projetos e quadros das universidades públicas, um patrimônio de todos. A despeito do momento incerto que vivemos, a universidade pública oferece motivos de confiança. Enfrentando diversas crises, a incompreensão de governantes e a desfaçatez das fraudes cometidas à margem delas, as universidades evoluíram a ponto de estar entre as melhores da América Latina e divisar as melhores do mundo.

É preciso que a sociedade brasileira defenda a continuidade e a ampliação do investimento na formação das próximas gerações de pesquisadores em todas as áreas do conhecimento, como o País vinha fazendo nos últimos 70 anos por meio de bolsas, apoio a equipamentos e custeio. Não reconhecer o valor das universidades e das carreiras universitárias significará mais que o desplante de falsificar currículos: significará conformar-se, mais uma vez, com um futuro mediocremente perdido.

Alguém poderia objetar, com razão, que tudo isso é óbvio. Entretanto, nessa espécie de retro-história que estamos vivendo, não dá pra contar com implícitos de racionalidade ou sequer com o mais simples bom senso. Também não convém engolir a fantasia de liberalismo adotada mal e porcamente pelo besteirol autoritário do governo.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

Rascunho