Pirandello às avessas

No premiado "O legado de nossa miséria", de Felipe Holloway, as fronteiras entre vida e literatura se diluem
Felipe Holloway, autor de O legado de nossa miséria
01/07/2020

Certa vez, assisti a uma entrevista com Luiz Ruffato na qual ele, ao explicar sua fascinação pelo livro Pedro Páramo, de Juan Rulfo, obra-prima da literatura hispano-americana, alega que não se poderia dizer que este romance seja sobre isso ou aquilo. O livro, em sua opinião, afirmaria sua grandeza exatamente por ser sobre tudo e sobre nada. Fiquei pensando nessa frase e cheguei à conclusão de que o que ele queria dizer era o seguinte: nesta obra de Rulfo, que explora várias questões maiores e menores sobre estados fundamentais do humano, não são tanto os temas que importam, mas a maneira como são contados e a relação estabelecida entre eles, assim como a rede individual de ressignificações destas mesmas relações, tecida por cada leitor.

Também o livro O legado de nossa miséria, de Felipe Holloway, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2019 na categoria Romance, pareceu-me uma dessas grandes cômodas com inúmeras gavetas dentro das quais se encontram outras gavetas menores, fundos falsos e assim por diante. Contudo, sobressaem duas vertentes temáticas: por um lado, o embate entre ética e estética na arte e, por outro, a literatura em si, ou melhor, o fazer literário e sua recepção. Não é à toa que os dois protagonistas do livro são um crítico e um escritor.

Convidado a mediar uma mesa de um simpósio de jornalismo cultural, o crítico dirige-se à cidade fictícia de Amará, no interior de Minas Gerais. Entre um evento e outro, roda pela cidade à procura de rápida satisfação sexual com prostitutas e, sobretudo, passa a maior parte do tempo fazendo reflexões sobre a vida e a literatura, que desde o começo se entrelaçam uma na outra em longos monólogos interiores. Sem poder assistir à última mesa do simpósio, justamente a que mais lhe interessava, ele segue para o bar do hotel, onde encontra um escritor que muito admira. Os dois se envolvem numa conversa e o crítico vai sendo enredado num emaranhado narrativo ao cabo do qual realidade e ficção se misturam definitivamente e ele percebe, de súbito, ter-se tornado uma marionete nas mãos do escritor.

Numa espécie de Pirandello às avessas, aqui é o escritor que saiu em busca de seu personagem, mas, como na obra do dramaturgo italiano, a narrativa desdobra-se cada vez mais em aspectos paratextuais e a história se faz pano de fundo para uma investigação metalinguística da própria literatura. Segundo o lema: no princípio (e no meio e no fim) era o verbo.

Ou um endurecimento involuntário de todo o corpo. Explico: na primeira cena, o crítico está sentado num bar quando vê na televisão do local o anúncio da morte de um grande escritor e é acometido de um travamento físico generalizado, uma espécie de catalepsia por osmose, como se a morte do outro fosse assimilada inconscientemente por projeção. Nisso, em vez de tentar dissolver a paralisia com movimentos paulatinos, ele busca redenção na literatura. Cita para si mesmo livros e autores à procura de passagens de obras que possam explicar o seu estado e, com isso, libertá-lo.

Já ali, neste prólogo — que acaba revelando-se um epílogo anteposto —, fica claro o redimensionamento das relações através da literatura, tanto por meio da reflexão sobre ela como por intermédio da memória de leituras: em suas elucubrações literário-filosóficas, o crítico descobre que a causa do enrijecimento físico é a recordação de um amor que já se foi, mas que permanece ligado a ele através da descoberta de um livro, por coincidência exatamente desse escritor cuja morte acaba de ser anunciada. Tendo partido o autor, ele teme perder o laço definitivo com essa lembrança afetiva importante do passado.

Morrendo o homem, anulava-se sua contraparte criativa, a possibilidade platônica do reencontro na duração de novas leituras que remeteriam, que os fariam coabitar, mesmo desencontradamente no espaço e no tempo…

Temas como ética no jornalismo literário ou a discussão já um pouco batida em torno da dobradinha “experimentalismo versus domínio técnico” na pós-modernidade radical são esquadrinhados com grande firmeza de estilo, em frases por vezes longas e empoladas demais, mas, ainda assim, de uma precisão conceitual impressionante. Porém, o que incomoda subliminar e exponencialmente é que, entre uma tomada de fôlego e outra, são citados Capote, Schopenhauer, Nietzsche, Poe, Machado de Assis, Perec, entre tantos outros, além de, claro, Borges, Borges, Borges, o que é levado a um tal extremo, que a gente se pergunta se esse permanente name-dropping quase obsessivo-compulsivo seria uma tentativa de reforçar o aspecto intertextual do romance, sublinhar o pedantismo do personagem ou somente endossar o eruditismo do autor.

Verdadeiras intenções
A primeira das três partes em que é dividido o romance transcorre quase que por completo nessas reflexões sobre as diferentes vertentes literárias, sobre o narcisismo sem escrúpulos dos escritores e o papel da ética na literatura. O que, aliás, é feito com, repito, impressionante conhecimento de causa e domínio técnico. Há passagens de enorme eloquência, carregadas de um humor cortante, mas também do rancor típico da figura clichê do crítico de arte, sobretudo em relação às obras de seu tempo:

Escrever um romance inteiro sem empregar a vogal A (que engenhoso!), narrar toda a Guerra do Peloponeso utilizando apenas onomatopeias (que portento!), tudo se restringia, para ele, a umbiguismo estético, fetichismo disfuncional, o equivalente, em subliteratura, do pianista que toca com os pés.

A história em si demora um pouco a engatar. Só começará de fato na segunda parte, depois de os protagonistas puxarem conversa no bar do hotel. De início, os dois ainda enveredam por análises tortuosas dos movimentos literários da modernidade, mas, lá pelas tantas, o personagem do escritor inicia o longo relato-confissão no qual revelará a verdade literalmente fantasmagórica sobre a fonte de sua escrita, o que o crítico, como não podia deixar de ser, interpreta como parte da grande ficção em que se tornam as vidas dos escritores:

 A história do escritor começava a fazer sentido, se confrontada com a proposição inicial da conversa, mas o mais espantoso era sua disposição de sustentar aquilo sem dar mostras de que não se tratava de um experimento, de uma dessas excentricidades artísticas talhadas para povoar os capítulos mais anedóticos de biografiase que tinham por função ampliar o mito em torno de quem os protagonizava.

Mas é somente na terceira parte, na qual também nos é revelado mais detalhes sobre os percalços da vida do crítico, é só ali que há uma surpreendente virada e se desvendam as verdadeiras intenções do outro em relação àquele encontro e àquela conversa. Então, todas as certezas do crítico — assim como as nossas — são deitadas borda afora.

Apesar das já citadas passagens um tanto repetitivas e pernósticas, o livro é um grande achado e a escrita de Felipe Holloway, um expoente de domínio técnico e superioridade retórica. Nele, a literatura se faz o não lugar ideal — no sentido empregado pelo sociólogo Marc Augé —, um descampado semântico onde se amalgamam realidade e ficção, memória e manipulação, fala e interpretação. Ela é o território neutro onde tanto escritor como leitor podem evocar toda espécie de fantasmas e cometer todos os crimes porque nos encontramos na suspensão redentora de um universo em trânsito parecido com o cenário final em que o crítico passa a última cena, o aeroporto: “um espaço que, estando quase fora da realidade, parecia um degrau acima na escada que conduzia a Deus ou ao nada”.

 

O legado de nossa miséria
Felipe Holloway
Record
240 págs.
Felipe Holloway
Nasceu em 1989, em Canindé (CE), mas é radicado em Cuiabá (MT), onde se formou em Letras pela Universidade Federal de Mato Grosso e atualmente faz mestrado em Estudos Literários pela mesma instituição. Atua como professor de Língua Portuguesa da rede pública de ensino desde 2018. O legado de nossa miséria é seu primeiro romance.
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho