Guia mínimo de clássicos (2)

Cinco obras para afastar o perigo da letargia intelectual em tempos de quarentena
Ilustração: Tereza Yamashita
01/07/2020

1. O cortesão [Baldassare Castiglione]
O livro teve três redações a partir de 1506 até 1528, quando foi publicado por Aldo Manuccio. É o modelo inconteste de todos os tratados de racionalidade de corte do período humanista.
Contemporâneo do Príncipe (1513), de Maquiavel, guarda semelhanças com ele, como a atenção focada no mundo das práticas e a grande importância dada à ação individual movida por emulação. Outros elementos são bem distintos dos maquiavélicos, a começar pelo fato de que configura um modelo exemplar de homem social em oposição ao modelo de exceção de um homem extraordinário, porém solitário, estabelecido no Príncipe. Também supõe uma espécie de solidariedade natural entre os homens excelentes ou “melhores”, diferentemente da ideia de crueza da prática política, em Maquiavel.
O diálogo se passa durante quatro noites (entre o terceiro e o sexto dia de março de 1506), após a passagem do papa Júlio II por Urbino, na região das Marche, no centro da península itálica. As personagens conversam no interior do belíssimo studiollo do Duque Guidubaldo di Montefeltro, sob o comando de Elisabetta Gonzaga, sua mulher.
O sentido geral do diálogo é a formulação de uma ideia de “uomo universale”, tão destro nas letras como nas armas. A elegância do texto, na qual a réplica entre os participantes é sempre galante e inteligente, torna essa ideia tão deliciosa quanto, a rigor, inalcançável. Esse aspecto um pouco etéreo, somado ao fato de que o livro é composto como memória de diálogos travados entre pessoas que estavam quase todas mortas, faz com que o quadro todo acabe recebendo uma luz suavemente melancólica.

2. Galateo [Giovanni Della Casa]
A publicação é póstuma, de 1558, mas o livro foi escrito nos primeiros anos da década de 50, logo após Della Casa ter sido afastado da nunciatura que ocupava em Veneza.
Segundo se diz, o Bispo de Sessa, Galeazzo Florimonte, lhe teria pedido um livro sobre os tratos convenientes entre os gentis-homens. Annibale Rucellai, seu sobrinho, é identificado pela tradição como o rapaz a quem se dirige o tratado.
Algumas vezes é mal lido como simples redução ao trivial empírico das lições de mais alto ideal de O cortesão. Trata-se de um engano que ocorre, em parte, por conta do artifício usado por Della Casa que inventa um narrador “rústico” para o livro, em oposição ao cortesão excelente de Castiglione. Tal artifício do narrador “rústico” deve ser entendido, entretanto, não em chave realista, mas como aplicação culta da tópica da modéstia afetada, recurso eficaz para a conquista da atenção e boa vontade do interlocutor.
Esse movimento diplomático na direção do ouvinte ou interlocutor é também um argumento decisivo para a ideia de Della Casa de que o prazer e a razão que se encontram na companhia social são a única base segura dos costumes urbanos.
Enquanto livro que pretende pensar a educação da elite, o Galateo traz consigo exigências de uma experiência cosmopolita, de adaptação à variedade dos costumes, das conveniências, dos cálculos da vida civil e política, que não podem ser completas sem as exigências de estudo e de doutrina. A noção de “experiência” implícita aqui, portanto, deve ser entendida sempre como prática submetida à ampla formação de hábitos educados.

3. Os lusíadas [Camões]
O poema, em oitava rima, com versos sáficos e heroicos, é composto com base na combinação de quatro linhas argumentativas, a saber:
1) a história de Portugal, desde a fundação mítica até o presente de Camões, centrada em ações de reis e heróis, nas quais, de maneira singular, a grandeza épica sofre dura competição da intensidade lírica dos episódios;
2) a viagem de Vasco da Gama, que, no poema, funciona como crônica dos principais descobrimentos portugueses, e não apenas daqueles historicamente ocorridos com a frota do Vasco (cuja saída de Lisboa se dá em julho de 1497, com chegada em Calecut em maio de 98, e retorno a Lisboa um ano depois);
3) as desavenças entre os deuses olímpicos, e, em particular, as disputas entre Vênus e Baco, sendo o desejo o móvel das artes da primeira, e os zelos da fama a razão principal das artimanhas do segundo, cujas batalhas alcançam alta intensidade erótica;
4) os excertos metalinguísticos do próprio poeta, os quais, de maneira dramática, produzem uma oposição entre os heróis dos feitos celebrados pelas epopeias e os poetas épicos que os celebraram.
Do conjunto dessas linhas de força é possível concluir que, para Camões, o poeta, e não o herói sozinho, completa ou acaba a proeza heroica. Vale dizer: antes da intervenção do espírito, a obra ainda não alcança a verdadeira excelência do feito.

4. Agudeza y arte de ingenio [Baltasar Gracián]
Publicada em 1642, é a mais importante preceptiva do siglo de oro espanhol. Trata da faculdade do Engenho, cujos objetos privilegiados são o “conceito” e a “agudeza”, que visam à beleza. Nessa perspectiva, considera-a em oposição à Retórica e à Eloquência, cujas doutrinas cuidam de tropos e figuras, isto é, dos ornatos da elocução que visam ao possível, e também à Dialética, que trata do silogismo, da conexão dos termos, visando à verdade.
Os “conceitos” não são fruto de imitação espontânea, mas, ao contrário, são “artifícios”, efeitos de técnica. Enquanto tal, admitem magistério e aprendizado, e é isso que garante a sua infinita variedade.
Sendo a principal potência do intelecto, o “conceito” permite uma percepção superior das coisas, acrescentando beleza à verdade desabrida ou à avaliação seca do juízo. A “agudeza”, por sua vez, admite dois tipos principais: a de “perspicácia”, relativa à descoberta de verdades recônditas, e a de “artifício”, relativa à formosura sutil. Desta agudeza de artifício justamente depende o “conceito”, que é uma sutileza do pensar, ou, para dizê-lo de melhor forma, um ato intelectual que descobre as correspondências ocultas entre os objetos.
Além disso, é preciso acrescentar que ninguém foi mais longe do que o jesuíta Gracián na tentativa de explicar as operações discursivas que presidiram as criações de Góngora e, ainda, de Camões.

5. Sermões [Antonio Vieira]
São mais de 200 exemplares do mais extraordinário domínio da língua portuguesa, exercício estilístico, variedade gramatical e, ainda, com um temário do tamanho do século 17. Enquanto artista da língua, Vieira a submetia, dócil, à demonstração que quisesse ou sonhasse, e ele quis e sonhou vastamente.
Contrariamente à ideia corrente de um Vieira contraditório, penso que a sua pregação se orienta sistematicamente por uma matriz “sacramental”, entendida como uma técnica de produção discursiva da “presença” divina, latente nas palavras do pregador.
O propósito desta verdadeira consagração da palavra é “mover” o auditório, o que significa basicamente, em termos de indivíduos, reorientá-los na direção das finalidades cristãs inscritas na natureza divinamente criada; e, em termos coletivos e institucionais, formular políticas legítimas e pragmáticas para os Estados católicos, os quais, deste modo, atuariam como verdadeiros co-autores da Providência na história.

Alcir Pécora

Crítico literário, é autor de Teatro do Sacramento (1994); Máquina de gêneros (2001) e Rudimentos da vida coletiva (2002). É organizador de A arte de morrer (1994), Escritos históricos e políticos do Padre Vieira (1995), Sermões I e II (2000-2001); As excelências do governador (2002); Lembranças do presente (2006); Índice das coisas mais notáveis (2010); Por que ler Hilda Hilst (2010). Editou as obras completas de Hilda Hilst (2001-2008), Roberto Piva (2005-2008) e Plínio Marcos (2017).

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