A imaginação e o desejo de contar histórias fizeram o autor carioca Edney Silvestre enveredar para o caminho das letras antes mesmo de saber escrever. Para significar o mundo que o rodeava, pegou o lápis e começou a fabular — um dos poucos prazeres na infância. Além de se dedicar à ficção, Silvestre é dramaturgo e jornalista. Como correspondente da Globo nos Estados Unidos, cobriu os atentados de 11 de setembro de 2001. Na ficção, sempre preocupado em representar o Brasil e questionando-se sobre a relevância de seus textos, venceu os prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura com o romance Se eu fechar os olhos agora (2009) — adaptado para uma minissérie homônima em 2018, escolhida como uma das três melhores do mundo no International Emmy Awards do ano passado. Entre outros livros, publicou O último dia da inocência (2019), Welcome to Copacabana e outras histórias (2016) e Boa noite a todos (2014). Em julho, suas peças Sarah em São Paulo e O brilho por trás das nuvens foram publicadas em audiolivro pela plataforma de streaming Storytel. Sua obra está publicada em diversos países como Inglaterra, França, Alemanha, Itália, Holanda e Portugal.
Quando se deu conta de que queria ser escritor?
Desde que me lembro, antes mesmo de saber escrever, porque gostava de imaginar histórias e queria contá-las. Mas eu tinha problemas de fala. Fui um garoto quieto, que só entendia os acontecimentos à volta quando os colocava em papel e lápis. Talvez isso explique meu apego a escrever com lápis. Lembra um conforto numa idade em que havia tão poucos.
Quais são suas manias e obsessões literárias?
Sou impactado pelo que leio e no meio da leitura de um livro percebo que ainda me sinto ligado ao que lera anteriormente. Com Memórias de Adriano foi assim. Dali, do romance da Yourcenar, surgiu a mania de, após uma obra abaladora, passar pelo menos uma semana, ou mais (após Yourcenar foram uns 3 meses), até pegar outro livro. Nunca leio deitado. Nunca leio de pé. Nunca leio ouvindo música. Nunca leio nenhum autor de grande impacto (para mim, por exemplo: Conrad, Saramago, Camus, Graciliano) quando estou escrevendo ficção. Sempre leio Drummond, qualquer obra dele, sempre. É mais que obsessão. É rumo, é norte.
Que leitura é imprescindível no seu dia a dia?
Notícias e Drummond. Jornais, sites e algumas redes sociais da hora do café da manhã em diante, Drummond aleatoriamente: passo pela estante no meu quarto onde tenho as obras dele, completas, algumas em várias edições, pego, abro, leio. Como alguns místicos fazem com a Bíblia.
Se pudesse recomendar um livro ao presidente Jair Bolsonaro, qual seria?
É isto um homem?, de Primo Levi. Todo político, particularmente um presidente da república do maior e mais populoso país da América do Sul, eleito por 57 milhões de cidadãos, precisa conhecer as consequências da política de ódio gerada por um outro político, eleito na Alemanha por 90% dos votos, em 1934, chamado Adolf Hitler.
Quais são as circunstâncias ideais para escrever?
Desde que me tornei repórter de televisão, fazendo matérias em circunstâncias extremas para aquele mesmo dia ou noite, como os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, ou em meio à devastação no Iraque de Saddam Hussein, desenvolvi uma maior capacidade de concentração, e isso vem sendo fundamental quando escrevo meus romances, peças, contos. Eu estava pela metade de A felicidade é fácil quando interrompi para cobrir os deslizamentos e mortes em cidades da Serra Fluminense. Fiquei naquela área por alguns dias. Na volta ao Rio, quando me sentei diante do teclado, retomei o romance exatamente onde havia parado. Hoje, nem eu saberia dizer em que ponto interrompi. Aprendi: as circunstâncias ideais são internas, envolvimento a tal ponto e profundidade com o que estou escrevendo que o texto brota, quando for “chamado de volta”.
Quais são as circunstâncias ideais de leitura?
Externas? Nenhuma. Internas? Qualquer uma, todas.
O que considera um dia de trabalho produtivo?
Aquele em que consigo atravessar minhas limitações e criar texto de ficção a ponto de não me reconhecer nele. Em jornalismo, constatar que pude ser fiel e justo ao transmitir o que vi e ouvi.
O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?
A geração de palavras, frases e parágrafos além do meu domínio, os mundos e criaturas brotadas sem que eu as comande, as vidas surgidas pela digitação em um teclado, na pressão de dedos em lápis ou caneta sobre um pedaço de papel.
Qual o maior inimigo de um escritor?
Os meus: a dispersão, a tristeza paralisante, o medo de ser dominado por personagens que não compreendo inteiramente.
O que mais lhe incomoda no meio literário?
A falta de reconhecimento e apoio a outros escritores brasileiros, à maneira que autores e músicos baianos fazem entre si, tal como os mineiros e gaúchos, dando sempre prioridade, inclusive em seus festivais, a autores de seus estados. Pergunte a um mineiro, um gaúcho ou um baiano qual o melhor escritor do país e verá: o citado será um conterrâneo.
Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.
Dois. Victor Heringer e Elvira Vigna.
Um livro imprescindível e um descartável.
Imprescindível: Vidas secas. Descartável: nenhum. Todo livro carrega o esforço de criá-los, e nenhuma criação é descartável.
Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um livro?
A viagem em torno do próprio umbigo. Se precisa fazer uma catarse, procure um psicólogo.
Que assunto nunca entraria em sua literatura?
Futebol, porque nunca entendi a tal mágica de 22 humanos correndo atrás de uma bola até fazer ela entrar num retângulo, depois correr de novo, e enfiá-la de novo, e assim sucessivamente, até um dos grupos ser declarado o maior entrador de bola em retângulo.
Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?
O assassinato de um filho, encomendado pela mãe, que desaguou em O último dia da inocência. A história, real, acabou transformada em um crime passional que se revelou um atentado tramado nos porões da ditadura de Vargas.
Quando a inspiração não vem…
Finjo que desisti. Ela volta. Tem voltado. Espero que continue voltando.
Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar para um café?
José Saramago.
O que é um bom leitor?
Aquele capaz de acrescentar a própria imaginação ao texto que lê.
O que te dá medo?
Cegueira. Demência. Paralisia. Uma nova ditadura no Brasil.
O que te faz feliz?
Acordar.
Qual dúvida ou certeza guiam seu trabalho?
O que eu escrevo faz diferença. O que eu escrevo faz diferença?
Qual a sua maior preocupação ao escrever?
Falar do meu país e não me repetir.
A literatura tem alguma obrigação?
No Brasil, antes de tudo, a de preservar nossa língua.
Qual o limite da ficção?
Ué, existe?
Se um ET aparecesse na sua frente e pedisse “leve-me ao seu líder”, a quem você o levaria?
José Saramago.
O que você espera da eternidade?
Ué, existe?