A literatura, como a própria vida, tem suas ironias. O surgimento, em 1890, de O cortiço, do maranhense Aluísio Azevedo, analisado agora, transcorridos 121 anos, confirma exclusivamente o talento de Machado de Assis, pois enquanto Memórias póstumas de Brás Cubas — ruptura com o romantismo e com o tipo de romance escrito até então no Brasil —, publicado em 1881, representou um salto mortal, Azevedo, quase dez anos depois, ainda engatinhava.
Exagero e fisiologia
Eugênio Gomes conta, em Aspectos do romance brasileiro, que um crítico daquela época, o positivista Tito Lívio de Castro, árduo defensor do naturalismo — segundo ele, “solução ideal e definitiva (grifo nosso) para o problema da arte” —, sustentava que a estética não pode existir sem a fisiologia, pois esta explica o porquê das leis que regem a primeira, “o modo pelo qual as impressões se transmitem e as causas que produzem as emoções”. À parte o absurdo de tal proposta, ela apresenta bem o que norteou o naturalismo, não só brasileiro: a tentativa de mostrar os homens como escravos dos caracteres hereditários e do meio, da natureza. Essas idéias descambaram, entretanto, para uma concepção pretensamente científica, datada, e, pior, um certo monismo vulgar, que via apenas os defeitos (mentais, físicos e morais), os aspectos patológicos dos indivíduos e da realidade. Como afirma Eugênio Gomes, os naturalistas “transformaram o mundo num vasto nosocômio, onde só havia de interessante o lado mórbido ou supostamente enfermo dos seres e até das coisas inanimadas. Tudo isso era visto como um organismo trabalhado por agentes insidiosos de uma decomposição infalível”.
A literatura deu vida, assim, a uma pseudofisiologia, na qual a saúde tornou-se exceção, desvio, enquanto a doença, a depravação — física e moral — assume o papel de regra absoluta. É o que encontramos na obra de Aluísio Azevedo, incluindo seu melhor romance, O cortiço: a inaptidão para alcançar “o âmago da alma humana”, como bem sintetizou Lúcia Miguel-Pereira.
Para o narrador de O cortiço, a degradação e a promiscuidade são próprias de todas as classes sociais, de todas as pessoas, sem quaisquer distinções. A humanidade chafurda na lama moral. Não há honestidade ou comportamento digno nos seres humanos; e o mundo, do qual o cortiço é o espelho, não passa de um “viveiro de larvas sensuais”, para usar uma das imagens recorrentes do livro.
Assim, também o amor é um sentimento impossível. Ou há paixão desenfreada ou apenas desejo carnal, quase sempre animalesco. E estes se sobrepõem à racionalidade, condição, aliás, inatingível. O caso do comerciante português Miranda — de início rival do protagonista João Romão — e de sua esposa, Estela, adúltera contumaz, serve como exemplo: a libido de ambos só encontra motivação na mútua repugnância moral. A mulher se excita porque o sexo com seu marido “a ambos acanalhava aos olhos uns dos outros”; quanto a Miranda, este descobre, ao possuir a mulher que o traía, “o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs amestradas na ciência do gozo venéreo”. E, mais tarde, confessará a um amigo: “Eu me sirvo dela como quem se serve de uma escarradeira”.
A morbidez perpassa tudo, num exagero inconvincente. A realidade é o poço no qual os personagens — uns mais, outros menos — enlouquecem, prostituem-se, entregam-se a vícios, desmoralizam-se. Ninguém se salva. Não há um único ser íntegro, bom, ou que pretenda atingir alguma virtude. A jovem Pombinha, no princípio inocente, logo começa a acumular “no seu coração de donzela toda súmula daquelas paixões e daqueles ressentimentos, às vezes mais fétidos do que a evaporação de um lameiro em dias de grande calor”. Até mesmo o ato de se alimentar é grotesco; e quase sempre vem acompanhado da embriaguez. O velho Libório, que “chorava misérias eternamente”, enquanto escondia o dinheiro em garrafas sob a cama, convidado a jantar no cômodo de Rita Baiana, “engolia sem mastigar, empurrando os bocados com os dedos, agarrando-se ao prato e escondendo nas algibeiras o que não podia de uma só vez meter para dentro do corpo”. A cena, aliás, revela uma das principais características do texto de Aluísio Azevedo: o uso da hipérbole. Vejam como se completa o trecho:
Causava terror aquela sua implacável mandíbula, assanhada e devoradora; aquele enorme queixo, ávido, ossudo e sem um dente, que parecia engolir tudo, tudo, principiando pela própria cara, desde a imensa batata vermelha e grelada que ameaçava já entrar-lhe na boca, até as duas bochechinhas engelhadas, os olhos, as orelhas, a cabeça inteira, inclusive a sua grande calva, lisa como um queijo e guarnecida em redor por uns pêlos puídos e ralos como farripas de coco.
O excesso contamina a narrativa, dos sonhos de riqueza de João Romão — passando pelas dimensões fantásticas da pedreira — ao crescimento desmesurado do cortiço. O mero toque da guitarra do português Jerônimo pode se transformar num fenômeno extraordinário:
E o canto daquela guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolorido, eram vozes magoadas, mais tristes do que uma oração em alto-mar, quando a tempestade agita as negras asas homicidas, e as gaivotas doidejam assanhadas, cortando a treva como os seus gemidos pressagos, tontas como se estivessem fechadas dentro de uma abóbada de chumbo.
Qualquer atitude ou sentimento alcança paroxismos em O cortiço. Quando Jerônimo abandona seu instrumento, a fim de ouvir as canções brasileiras, o narrador delira:
E à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas do além-mar. Assim, à refulgente luz dos trópicos, amortece a fresca e doce claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano, vermelho e esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima medrosa da decaída rainha dos mares velhos.
Não satisfeito com as imagens pretensiosas, o narrador entrega-se ao determinismo primitivo e vulgar, igualmente hiperbólico:
Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgulhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra, e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça que junto dele sacudiu as saias e os cabelos.
Figuras de retórica que talvez impressionem o leitor pueril, mas que não passam de repetitivos balões de gás. Poucas linhas à frente, Jerônimo está enfeitiçado pela mulata Rita Baiana. E o narrador, no afã de caracterizar a sedução, perde-se em qualificativos extremados, de cunho nacionalista, por meio dos quais deseja provar que a natureza subjuga os comportamentos:
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e das baunilhas, que o atordoava nas matas brasileiras; era a palmeira virginal e esquiva que se não torce a nenhuma planta; era o veneno e era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo ar numa fosforescência afrodisíaca.
Se você, leitor, teve vontade de rir, não se sinta constrangido. Esse descontrole da escrita — anafórico e recheado de larvas que procriam em meio ao lodo, fedores de todos os tipos e “luxúrias de bode” — é freqüente em Aluísio Azevedo, cuja imaginação, quando se trata de sexo, não conhece refinamentos. A cena em que Jerônimo e Rita Baiana copulam é paradigmática:
Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus braços; ao sentir na sua pele a carne quente daquela brasileira; ao sentir inundar-lhe o rosto e as espáduas, num eflúvio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira da mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e pelado colo de cavouqueiro os dois globos túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma derreteu-se, fervendo e borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe pela boca, pelos olhos, por todos os poros do corpo, escandescente, em brasa, queimando-lhe as próprias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, numa agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos, entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno.
E se queremos deixar de lado a lubricidade do narrador, nem assim a hipérbole nos abandona. Sempre de mãos dadas com as teorias deterministas, ela pode dar vida, mais uma vez, a trechos de ridículo patriotismo:
E o curioso é que quanto mais ele (Jerônimo) ia caindo nos usos e costumes brasileiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento das suas forças físicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música, compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola os seus amores infelizes; seus olhos, dantes só voltados para a esperança de voltar à terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos largos horizontes de céu e mar, já não se revoltavam com a turbulenta luz, selvagem e alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos maravilhosos despenhadeiros ilimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de espaço a espaço, surge um monarca gigante, que o sol veste de ouro e ricas pedrarias refulgentes e as nuvens tocam de alvos turbantes de cambraia, num luxo oriental de arábicos príncipes voluptuosos.
No entanto, acreditem, o narrador ainda tem muito a oferecer. Ele desconhece limites, pois seu objetivo não é escrever uma história, mas, sim, provar teses. Leiam no Capítulo 10 as longas páginas dedicadas à inveja que João Romão sente de Miranda. Dois parágrafos sintetizariam o que se pretende dizer, mas o narrador destrambelha. Repetirá fórmula semelhante no Capítulo 11, ao relatar, na forma de um ritual iniciático, o primeiro e ansiado mênstruo de Pombinha. A jovem passa por verdadeira entronização. E, inserida na natureza, que substitui Deus, à piegas bênção do sol sucedem-se abruptas modificações de personalidade: ela se torna madura, capaz de intuir verdades impressionantes e avaliar a si mesma e aos homens de maneira completamente nova. Pode, agora, mal esgotado o fluxo de sangue, “medir com as antenas da sua perspicácia mulheril toda aquela esterqueira, onde ela, depois de se arrastar por muito tempo como larva, um belo dia acordou borboleta à luz do sol”. Descontadas as nítidas influências de um meloso e bolorento romantismo, vemos o alto preço que Aluísio Azevedo pagou à escola naturalista.
Preconceitos
Essas características são acompanhadas, pari passu, por perigosas generalizações e sentimentos hostis ou depreciativos. Todas as meninas de 12 ou 13 anos, nascidas no Rio de Janeiro, seriam iguais? É o que concluímos da descrição de Zulmira, filha de Miranda, “o tipo acabado da fluminense: pálida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do nariz, das pálpebras e dos lábios, faces levemente pintalgadas de sardas”. Rita Baiana, por sua vez, é “volúvel como toda mestiça” — julgamento repetido nos capítulos 7 e 19. Logo no início, a escrava Bertoleza sente-se “feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda cafuza, (…) não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem duma raça superior à sua”. Florinda, filha da lavadeira Marciana, tem “olhos luxuriosos de macaca”. Quanto aos italianos, “habitavam cinco a cinco, seis a seis no mesmo quarto, e notava-se que nesse ponto a estalagem estava já muito mais suja que nos outros. Por melhor que João Romão reclamasse, formava-se aí todos os dias uma esterqueira de cascas de melancia e laranja. Era uma comuna ruidosa e porca a dos demônios dos mascates!”.
Como vêem, há farto material para os membros do Conselho Federal de Educação que hoje atacam Monteiro Lobato. Por que só o autor de Caçadas de Pedrinho deve ser expurgado das escolas ou receber, em seus livros, “notas explicativas”? Nossos jovens do ensino médio não necessitam também ser protegidos das aberrações literárias? Aluísio Azevedo é a prova de que a literatura brasileira em sua totalidade precisa, urgentemente, de um higienista. E pelo que tenho lido ultimamente, inclusive neste Rascunho, não faltam candidatos ao cargo…
Descontada a ironia acima, à qual não pude resistir, os preconceitos se repetem do começo ao fim de O cortiço. A figura negativa do brasileiro surge claramente nesta passagem, em que se descreve a transformação por que passa Jerônimo depois de abandonar a esposa e se unir à Rita Baiana:
A sua energia afrouxava lentamente: fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam; esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição, para idealizar felicidades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco, mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos prazeres, e volvia-se preguiçoso resignando-se, vencido, às imposições do sol e do calor (…).
Idéias que renascem, no Capítulo 19, de forma mais direta, não deixando dúvidas sobre o pensamento do narrador: “O português (Jerônimo) abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela, só ela, e mais ninguém!”. Pobres portugueses, que só pensam em economizar, não têm prazeres, não se deixam emocionar e perdem seus dias com “primitivos sonhos de ambição”. Pelo menos não são preguiçosos como os brasileiros…
O acúmulo de bobagens atávicas e expressões grosseiras, contudo, repete-se incansavelmente. Vejam o trecho a seguir:
No íntimo (Rita Baiana) respeitava o capoeira (Firmo). Amara-o a princípio por afinidade de temperamento, pela irresistível conexão do instinto luxurioso e canalha que predominava em ambos, depois continuou a estar com ele por hábito, por uma espécie de vício que amaldiçoamos sem poder largá-lo; mas desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranqüila seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus direitos de apuração, e Rita preferiu no europeu o macho de raça superior. O cavouqueiro (Jerônimo), pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas, enfarava a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer, era a volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões americanos, onde a alma de Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e onde seu corpo porejou o cheiro sensual dos bodes.
Diante de tantos exemplos, de tão batidas imagens, só podemos discordar veementemente de Lúcia Miguel-Pereira quando ela diz que, em “O cortiço, Aluísio Azevedo se aproxima da realidade sem repugnância, sem idéias preconcebidas, sem inconscientes movimentos românticos nem dogmas cientificistas”.
Personificação e biologia
Aluísio Azevedo também aprecia conferir sentimentos a seres inanimados. É outra de suas obstinações. Já no Capítulo 1, o narrador anuncia o que nos espera, ao dramatizar o crescimento do cortiço: “E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco”. No Capítulo 20, reformado, ele continua insaciável: “A feroz engrenagem daquela máquina terrível, que nunca parava, ia já lançando os dentes a uma nova camada social que, pouco a pouco, se deixaria arrastar inteira lá para dentro”.
Até as idéias podem apresentar “supurações fétidas”. Mas será a pedreira o elemento escolhido para exercitar prosopopéias. Ela pode ser “altaneira e desassombrada”, apresentar uma “ciclópica nudez”, “contemplar” os trabalhadores “com desprezo” e mostrar-se “imperturbável a todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito”. Às vezes, ela “parecia dormir em paz o seu sono de pedra”; em outra noite, de lua cheia, “ao longe, por detrás da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro iluminado na sua paz”.
É certo que, algumas vezes, o autor elabora uma bela figura, mas a repetição do recurso, somada à repugnância de grande parte dos tropos, chega a enfastiar: “A casa de pasto fermentava revolucionada, como um estômago de bêbedo depois de grande bródio, e arrotava sobre o pátio uma baforada quente e ruidosa que entontecia”. Em outros momentos, as personificações parecem corroborar as metáforas de ordem biológica, mas seu uso imoderado, ao qual muitas vezes se acrescenta a hipérbole, revigora o imediatismo do estilo e faz ressurgir a psicologia simplista. Então, vemos a fórmula banal vibrando por trás do texto: o mundo está condenado ao embotamento, à permissividade, à loucura e aos instintos abjetos.
Quando Jerônimo e sua esposa, Piedade, se reencontram, depois de o português tê-la abandonado, achamos, de início, que será possível olhar para além da degradação. Mas o único gesto digno em todo o romance não pode perseverar:
— Minha pobre velha… — balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça.
E os dois emudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentiu ânsias de atirar-se-lhe nos braços, possuída de imprevista ternura como aquele simples afago do seu homem. Um súbito raio de esperança iluminou-a toda por dentro, dissolvendo de relance os negrumes acumulados ultimamente em seu coração. Contava não ouvir ali senão palavras duras e ásperas, ser talvez repelida grosseiramente, insultada pela outra e coberta de ridículo pelos novos companheiros do marido; mas, ao encontrá-lo também triste e desgostoso, sua alma prostrou-se reconhecida; e, assim que Jerônimo, cujas lágrimas corriam já silenciosamente, deixou que a sua mão fosse descendo da cabeça ao ombro e depois à cintura da esposa, ela desabou, escondendo o rosto contra o peito dele, numa explosão de soluços que lhe faziam vibrar o corpo inteiro.
Por algum tempo choraram ambos abraçados.
— Consola-te! que queres tu?… São desgraças!… — disse o cavouqueiro afinal, limpando os olhos. — Foi como se eu tivesse morrido… mas podes ficar certa de que lhe estimo e nunca te quis mal!… Volta para casa; eu irei pagar o colégio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus Nosso Senhor que me perdoe os desgostos que te tenho eu dado!
O comportamento de Jerônimo não terá continuidade e sua promessa cairá no vazio, pois o homem naturalista obedece, inevitavelmente, a uma lei pessimista e inflexível. Lei idolatrada pelo narrador, que não permite à beleza assomar nem mesmo em dia de festa, e, sempre a um passo da obscenidade, expõe uma carcaça de animal na casa arrumada para poucas horas de alegria: “À porta da cozinha penduraram pelo pescoço um cabrito esfolado que tinha as pernas abertas, lembrando sinistramente uma criança a quem enforcassem depois de tirar-lhe a pele”. A mesma lei que sujeita Bertoleza à sua condição imutável: “À medida que ele (João Romão) galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais e mais escrava e rasteira”.
Mediania
Apesar de todos esses problemas, Aluísio Azevedo conseguiu criar boas cenas coletivas. Se lermos o longo início do Capítulo 3, no qual o cortiço desperta às cinco da manhã, e descontarmos, aqui e ali, as questões apresentadas acima, teremos uma composição enérgica, sólida e, principalmente, realista. O narrador consegue captar os movimentos, a mistura algo organizada de afazeres da comunidade, e também os cheiros, as cores, os barulhos, as características de cada personagem. O trecho não é uma exceção. No Capítulo 6, o retorno de Rita Baiana ao cortiço dá vida a parágrafos persuasivos, realmente fotográficos, nos quais cada morador reage de acordo com suas idiossincrasias. Com ótimo humor ele descreve, no Capítulo 8, a briga de Leocádia e seu marido, Bruno. E a volúpia de Rita Baiana ao dançar, no Capítulo 7, possui trechos de equilibrada sensualidade. Hábil para descrever movimentos, no Capítulo 10, quando acontece a briga entre Firmo e Jerônimo, Azevedo utiliza recursos que fazem inveja a um cineasta. E o escritor sabe introduzir certo elemento imprevisível, que não desequilibra a cena, mas a completa de modo fascinante, como no Capítulo 8, em que um irmão do santíssimo entra na estalagem para pedir donativos. Finalmente, o livro nos oferece um desfecho correto, em que o narrador une ao gesto desesperado e dramático de Bertoleza a ironia corrosiva dos brevíssimos dois últimos parágrafos.
Esses e outros trechos só nos fazem lastimar que Aluísio Azevedo tenha se submetido com tanto empenho ao romance de tese, restringindo sua história a falsos condicionamentos. Gerou, sim, um microcosmo regido pelas leis que o naturalismo preconizava, mas exatamente por essa razão naufragou nos estereótipos e na completa ausência de livre-arbítrio. O que poderia ser uma obra de sensível e profunda análise social transformou-se num romance apenas mediano.
NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Inglês de Souza e Contos amazônicos.