Há uma tese — bastante plausível — de que a literatura brasileira alcançou a maioridade no século 20, visto que seus membros (ou ao menos os considerados como de maior representatividade) abdicaram dos receituários europeus de composição e de legitimação estética para buscarem no horizonte particular e/ou local o ponto de partida de suas elaborações. Foi, inclusive, durante o período em questão que as letras nacionais também se encorparam por aspectos de ordem historicista e sociológica, dentre outros, quando então os escritores apresentavam-se não somente como literatos, mas como intelectuais, no sentido autêntico e amplo do termo.
Há, no entanto, uma corrente de pensamento adversa à conjunção entre arte e reflexões de alcance político, tomando como base de contestação dois argumentos centrais: a precariedade dos escritos panfletários que em certos períodos do referido século foram disseminados no Brasil e no mundo; e a falácia apocalíptica do fim das ideologias. Ao defender que a literatura não deve ter compromisso algum, tal corrente assevera que a obra caracterizada por fatores mais explicitamente sociais é diminuída em seu potencial literário.
Se tal juízo fosse válido, seria falsa a emancipação das letras brasileiras. Autores como Euclides da Cunha, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Autran Dourado e Ferreira Gullar (para só ficarmos com alguns) foram absolutamente originais ao construírem suas linguagens expressivas e alçaram-se ao patamar dos maiores escritores do mundo. Surpreendentemente, todos eles impregnaram seus escritos das deturpações coletivas que tornam mais angustiante a existência do homem pobre e comum. Tachar de panfletária a obra tematizada por fenômenos políticos é uma generalização bastante típica do alheamento geral que contamina inclusive os artistas, sendo isso forte sintoma de um dos períodos mais pobres da história da prosa, da poesia e da crítica brasileiras, que é o momento presente.
No ônibus
Na esteira dos livros francamente voltados para o âmbito “literatura e sociedade”, encontra-se Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo, romance notável e necessário pelos vários materiais de que se constitui. Já de início, é muito reconfortante ter em mãos uma narrativa pautada por uma gravíssima chaga urbana: os caóticos trânsito e sistema público de transportes que fazem os cidadãos de diversas partes do país definharem diariamente, em nome da ordem e do progresso. O autor segue tão à risca seu propósito de representação que constrói um enredo que se desenrola paraliticamente dentro de dois ônibus, quando o jovem Pedro, protagonista da peça, retorna do trabalho e segue em direção à casa de Rosane, sua namorada.
Grassa atualmente uma febril publicidade em prol do crescimento, verificada num discurso ramificado em empresas privadas, em igrejas evangélicas e em pessoas que vêem nas finanças hiperbólicas o objetivo maior da humanidade. Entretanto, é este tipo de crescimento que pulveriza faixas florestais, soterra espaços públicos de convivência e tritura o bem-estar do morador dos espaços onde só chegam os estilhaços do capitalismo. O livro de Rubens Figueiredo trata desses fatores com extraordinária capacidade de observação, pois, à exceção de três profissionais do Direito, todos os seus personagens são quase párias de uma grande cidade (ao que tudo indica o Rio de Janeiro, na qual nasceu e vive o autor), e a partir deles vemos que para a maioria dos seus habitantes o cumprimento das obrigações é uma condenação cotidiana, mesmo quando em momentos de finalização da jornada diária:
A simples demora do ônibus, mais longa do que a demora de sempre, talvez pudesse justificar o nervosismo, também diferente do de sempre, que vibrava agora na sua fila. Dava para sentir até de longe, até na cara dos passageiros nas janelas do ônibus parado no outro ponto. Só que Pedro não via razão para se deixar contagiar por aquela ansiedade. O atraso, por maior que fosse, ainda era só mais um atraso. Fazia parte da rotina e, dentro da rotina, havia sempre lugar para nervosismo, para irritação.
Após o fim da demora, chega então o ônibus cujo destino é o bairro Tirol, espécie de favela urbana, onde reside a namorada do protagonista. O levantamento dos reveses da população pobre apontados pelo romance tomaria o espaço de toda esta resenha, mas um deles é importante assinalar. A alta literatura prima por explorar contradições de toda sorte, e tanto neste livro quanto em outros de Rubens Figueiredo estampa-se um estranho paradoxo: aqueles que se podem considerar cidadãos de bem são penalizados por um trator oficial a lhes amputar na raiz os direitos civis e humanos. Na época em que vendia livros como ambulante, fazendo das calçadas das ruas a sua loja, Pedro foi vitimado por um cavalo de operação policial que lhe pisou a perna, a qual ficou lesionada mesmo após uma cirurgia: “O tornozelo doeu quando ele ficou de pé — a velha ferida que não fecha por dentro da pele”. O caso de Rosane é mais comum: o trabalho, meio de edificação do homem, levou-a à beira do declínio físico e moral:
Trabalhando ali, de salário, com os descontos normais, ela quase que só ganhava o bastante para pegar o ônibus e comer. Não tinha horário fixo, era obrigada a fazer horas-extras a qualquer momento e sem a remuneração devida por isso, havia mudanças de turno a toda hora e sem aviso, e por isso ela teve de largar o colégio: seus dias, mal nasciam, eram tomados um a um, em troca de quase nada.
Os passageiros do romance de Rubens Figueiredo são meras peças da engrenagem cotidiana que sustenta o ir e vir dos grandes movimentos do mundo. Frágeis, têm “a sensação de que só existe uma chance”. Daí ser bastante justa no livro a presença indireta do cientista inglês Charles Darwin, a funcionar como metáfora de um evolucionismo citadino. Na viagem de volta do trabalho, Pedro tenta ler um livro sobre o cientista, e as passagens destacadas pelo narrador evocam, também de maneira indireta, uma espécie de sobrevivência apenas dos que se adaptam ao meio e resistem às suas pulsões letais: “Pedro pensou nos pequenos parágrafos retirados dos relatos do Darwin (…). O que ele queria dizer? Se uns sobrevivem e outros não, era porque alguns eram superiores?”.
Seria equívoco ver nisso uma absorção do ideário naturalista, mas seria igualmente equivocado desconhecer que o meio, produto do homem, se não determina, inegavelmente interfere na conduta do homem e na sua postura diante da vida. Em Passageiro do fim do dia aparecem dois bairros moldados sobre o barro do abandono público: o já citado Tirol e a Várzea, que no enredo assumem a condição de rivais. Típicas áreas formadas nos restos da cidade para comportar os restos da sociedade, estes bairros periféricos encarnam o espírito desalmado de um mundo que clama por paz ao mesmo tempo em que acirra a fúria de quem precisa, a todo instante e em todas as circunstâncias, engolir um adversário por dia. Já que falamos em naturalismo, aqui temos uma semelhança com O cortiço, de Aluísio Azevedo. Mas repito não haver aqui o que se poderia classificar como retrocesso literário, tampouco como filiação à corrente neonaturalista de uma vertente literária hodierna. Há, sim, um retrato cortante (mais laminoso pelas descrições detalhadíssimas do narrador) de uma estrutura social que também não regrediu, mas nem por isso progrediu: ela permanece estática em suas bases:
Um canal no meio de uma rua de duas pistas, em tudo igual a várias outras ruas e a vários outros canais, se transformou na fronteira entre o Tirol e a Várzea. Assim ficou estabelecido, de uma hora para outra. Ninguém sabia dizer quem foi que decidiu, nem como, por força de que lei. Mas todos logo passaram a creditar que aquela faixa de terra tinha um efeito muito grave sobre quem morava à esquerda ou à direita do canal.
Além do social
O novo romance de Rubens Figueiredo não é interessante apenas por sua abordagem da sangria social brasileira. Conforme demonstrado em seus livros anteriores, como no volume de narrativas curtas Contos de Pedro ou no romance Barco a seco, o autor tem a cada vez mais rara particularidade de aliar sua ampla visão da realidade a um apurado engenho narrativo. Neste de agora, chama a atenção logo de cara a ausência de divisão por capítulos, o que adensa a narrativa ao longo de suas quase duzentas páginas. Apesar de abarcar conflitos coletivos, do ponto de vista do desenvolvimento factual da trama, o livro é nulo, visto serem os únicos acontecimentos efetivos no tempo presente da narrativa o ingresso num primeiro ônibus e a troca para um segundo.
Dentro dos veículos, os pensamentos de Pedro regem a disposição do que é relatado. À paralisia do trânsito (há uma ameaça de o ônibus ser depredado num ponto qualquer) opõe-se a memória irrefreável do protagonista. Daí ser interessante notar na narrativa uma estrutura semelhante à de um carrossel, pois as divagações de Pedro, cuja psicologia é um poço fundo, dão ocasião às digressões (muitas vezes poéticas) do narrador. Mas invariavelmente voltam as cenas de dentro da condução, lotada de lamentos, de pernas que clamam por um assento e de pessoas que passam pela vida sem quase andar pela avenida:
E o movimento do ônibus, por caminhos tão bem marcados, as pistas abertas entre o casario pobre e sem fim — desde a fila no ponto final, em companhia de passageiros que ele (Pedro) conhecia de vista — para não falar do esforço do motorista em conduzir o veículo, que se somava ao esforço do próprio motor barulhento e maltratado para carregar aquela gente, aquele peso, até o fim da linha — tudo isso sublinhava e confirmava toda semana o mesmo impulso. Assim, através das sextas-feiras, as semanas corriam sem parar, uma a uma, para dentro de outras semanas.
Foi dito num recente filme brasileiro que a vida de um homem não cabe num filme. Há livros que também não cabem no espaço de uma resenha. Tal é o caso de Passageiro do fim do dia, alegoria plena de dramas urbanos contemporâneos, cuja resolução é negligenciada por autoridades que cada vez mais querem governar para platéias. Em diversas passagens do texto, percebe-se que Pedro, mesmo inserido no ônibus atolado no tráfego, não é um passageiro qualquer, pois sua passagem é a mais fixa do romance, visto possuir uma considerável capacidade de analisar os fatos à sua volta, e ainda mais de refletir sobre suas próprias ruminações. Isto lhe dá uma mínima oportunidade, um palmo de janela aberta para uma possível transposição do ruído e da fumaça que lhe atravancam o caminho.
Assim ocorre com a literatura: suas palavras não removem o engarrafamento. Mas ela ainda nos faz, como demonstrou Rubens Figueiredo, abrir as janelas que nos permitem olhar, entrar ou sair do trânsito posto como via de mão única para se chegar a lugar algum.