Aos artistas sem live
Às mães solteiras cozinhando um miojo — achando longos os cinco minutos
Ao pai presente um pouco de tempo a mais no banheiro, em suspiro
Aos amantes que se amam, e estão separados
Aos professores que odeiam tecnologia
Aos idosos trancafiados
A quem não tenta inventar uma vida nova e não montou um canal de coach, vendas, network
A quem desiste e fica na cama todo dia um pouco mais
A mim
Aos sonhos que parecem náufragos
Aos náufragos que parecem agora, enfim, normais
Aos bipolares, aos borderlines, aos esquizos
E a seus analistas
Aos suicidas atônitos, pegos no ato com a morte (enfim?) no encalço
Aos adictos, aos desvalidos, à Nossa Senhora dos Tarjas Pretas
Aos meus sapatos que pensam que eu morri, e de repente são desinfectados com álcool nas solas
Ao sol pairando apenas nos incautos
À classe trabalhadora que nunca parou e reza toda manhã pela sorte
Aos caras do Uber, Uber Eats, iFood, Rappi, Shipp
À faxineira que vejo limpando a vidraça em frente ao meu prédio, no seu décimo andar de coragem, certamente, para seus filhos
Ao vendedor de picolé que berra lá em baixo enquanto eu escrevo isso
A todos os vendedores de caixinhas: balas, meias, canela de velho, bombons
A quem não vai mais arrumar emprego esse ano — talvez nem ano que vem
Àquele que dirige a ambulância que corre na rua neste átimo
A todos vocês e para mim: desejo vida
Não desejo sobrevida, desejo vida:
dignidade, “tranquilamente no país em que nasceu”, a segurança de fazer e acontecer, sonhos na medida do real, “amantes de manhã, trabalhadores à tarde, poetas à noite”,
na sua soleira apenas os sonhos, desejos de alcançar o impossível e não apenas, um pão
Que nossos sonhos não podem ser entubados com esse oxigênio falho do capital.
Talvez, daqui a um tempo, quem vier a ler esse poema de Mara Coradello não entenda a razão primeira de sua existência: a pandemia do coronavírus. No Brasil, a moléstia se estende à política (miliciana, ignorante, genocida) que tomou conta do governo e da presidência. Em maio de 2020, já se registraram mais de quinze mil óbitos aqui, e cerca de trezentos mil no mundo, afora as inumeráveis subnotificações. Diretrizes de comportamento são incessantemente divulgadas, entre elas a dita quarentena. Em síntese, se trata de manter o máximo isolamento social para tentar diminuir a propagação do vírus e assim o colapso do sistema de saúde. Trabalhos essenciais (saúde, segurança, abastecimento etc.) podem ser exercidos, com muitos protocolos de prevenção, enquanto os demais devem ficar em suspenso ou ser feitos de casa.
Canção da desesperança foi publicado no Facebook da autora capixaba em 30 de abril, obtendo dezenas de compartilhamentos. Seu impacto se deve, além da comoção coletiva em torno do assunto, ao fato de, verso a verso, vir desenhando um painel de fragilidades, mas também de forças, que nos tocam em momento tão singular. O título, Canção da desesperança, não esconde o que pensa a poeta: falta luz no túnel. É bonito o esforço da batalha, mas a guerra, por ora, tem vencedor, e é o vírus, que tem como cúmplice nada menos que seu próprio alvo: o homem.
Verso a verso se desenha um tempo, no qual a poeta e nós, “todos vocês”, estamos: “Aos artistas sem live” diz da moda em que, por necessidade ou narcisismo, artistas e fãs se conectam virtualmente, e shows, saraus, bate-papos, debates se multiplicam. Mas há os deslocados, os marginalizados, os que ficam “na porta estacionando os carros”. Os versos são flashes de um cenário dolorido que testemunhamos: “Às mães solteiras cozinhando um miojo — achando longos os cinco minutos”. Mesmo uma refeição tão emblematicamente relacionada ao fast food, feito um macarrão instantâneo, parece demorar, dada a hipotética falta de amparo em situação de quarentena. A verve da poeta provoca o lugar assaz mais cômodo do pai — “Ao pai presente um pouco de tempo a mais no banheiro, em suspiro”: mesmo “presente”, a distância (“banheiro”) e certo tédio (“suspiro”) imperam, denunciando diferenças e privilégios dos lugares da mulher e do homem.
Cada verso exige, se não uma exegese, alguma paráfrase. Em “Aos amantes que se amam, e estão separados” fala da dor da ausência e da impossibilidade (provisória?) do afeto. Com “Aos professores que odeiam tecnologia”, o poema se refere à profusão de escolas e redes que, em meio a polêmicas, adotaram, adrede e ad hoc, o ensino a distância, para compensar a suspensão das aulas presenciais. O curto verso “Aos idosos trancafiados” é certeiro: se a ciência médica estipulou que pessoas mais velhas são mais suscetíveis à mortal doença, elas devem ser trancafiadas, “isoladas ou fechadas em determinado ambiente, para evitar o convívio social” (Houaiss). A ironia aparece às escâncaras em: “A quem não tenta inventar uma vida nova e não montou um canal de coach, vendas, network”. Oportunistas, aproveitadores, enganadores brotam, se a raiz é fraca. Da ironia à melancolia: “A quem desiste e fica na cama todo dia um pouco mais” — se as notícias trazem mortes, velórios, enterros, cemitérios, caixões, e se o luto se atualiza a cada mórbido gráfico diário, a melancolia demora mais e mais (não há tempo que seja bastante para elaboração do luto).
Este é um poema-dedicatória: diante de um quadro catastrófico, a poeta recorda, sobretudo, grupos de pessoas que são atingidas em sua vida pelo vírus. (Por email, a autora esclarece que a ausência no poema de profissionais da saúde atendeu a um princípio básico: “médicos, enfermeiras, e os que têm fome mereciam entrar no poema, mas o tornariam por demais panfletário”.) O menor verso do poema diz: “A mim”. Ou seja, importa afirmar que a desesperança atinge a todos. Uma tristeza cinza paira sobre todos. No inferno estamos todos.
O verso “Aos sonhos que parecem náufragos” traz um termo que há de se repetir, e não à toa: sonhos. Sendo sonho um misto de fantasia, desejo e utopia, a presença danosa de um vírus exterminador da vida faz, de fato, afundar todo ânimo de normalidade, daí a ternura e solidariedade “Aos bipolares, aos borderlines, aos esquizos/ E a seus analistas”. Se o mundo, sem a ameaça concreta de extinção a partir de um vírus ainda sem domesticação, já se mostra instável para tantos, que dirá se tal instabilidade se prolifera? O cheiro da morte se antecipa aos suicidas. Se obedientes ao isolamento, dependentes químicos também hão de dar sua cota de abstinência. A invocação (hilária) à “Nossa Senhora dos Tarjas Pretas” mostra que o poema oscila entre extremos de melancolia e relaxamento, entre a desesperança e a canção.
O saboroso verso “Aos meus sapatos que pensam que eu morri, e de repente são desinfectados com álcool nas solas”, inspirado (conforme a autora) em meme da internet, parece fazer a travessia para os versos finais mais engajados: o verso “À classe trabalhadora que nunca parou e reza toda manhã pela sorte” sintetiza a lista que virá, de terceirizados do Uber e afins, da faxineira, dos vendedores de rua, dos motoristas de ambulância. A legítima preocupação econômica — “A quem não vai mais arrumar emprego esse ano — talvez nem ano que vem” — ganha lugar: lasciate ogni speranza… Por todo o canto, devastação.
Eis que, entretanto, a flor vence a náusea: “A todos vocês e para mim: desejo vida/ Não desejo sobrevida, desejo vida:/ dignidade, ‘andar tranquilamente no país em que nasceu’, a segurança de fazer e acontecer, sonhos na medida do real, ‘amantes de manhã, trabalhadores à tarde, poetas à noite’, na sua soleira apenas os sonhos, desejos de alcançar o impossível e não apenas, um pão”. Se o vírus coroa a morte, no poema há de reinar a vida, muito além de qualquer migalha de pão. No citado Rap da felicidade, Cidinho e Doca cantam em tom de revolução: “O povo tem a força, só precisa descobrir/ Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”. A poeta e os compositores se unem no desejo de felicidade, de poder popular, seja diante de um corrosivo e invisível vírus, seja diante de um negacionista e visível presidente.
O derradeiro verso não deixa dúvida quanto ao inimigo-mor: “Que nossos sonhos não podem ser entubados com esse oxigênio falho do capital”. Aqui, capital significa todo o sistema de exclusão, desigualdade e injustiça que impede as pessoas de respirarem, de viverem com dignidade. A própria autora informa que no trecho “amantes de manhã, trabalhadores à tarde, poetas à noite” há ecos de A ideologia alemã, de Marx e Engels: “Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado (…) o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico (…) na sociedade comunista, a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade”. A citação explica o contundente fecho: “Que nossos sonhos não podem ser entubados com esse oxigênio falho do capital”. Não há de haver vírus que vá nos isolar, nos reduzir àquilo que não somos: seres medrosos, monolíticos, ilhados.
Diante da ameaça, devemos reinventar nossos modos de viver, nosso direito à felicidade, nosso acesso pleno ao oxigênio (literal e metafórico). Contra o silêncio indiferente da covid-19, e contra o silêncio covarde dos cúmplices, o que se pode esperar de melhor do que uma canção acontecer? O coronavírus expôs as vísceras da luta de classes, haja vista que está nos menos favorecidos a estatística maior de óbitos. Com essa Canção da desesperança, Mara Coradello recupera um clima de Armazém dos afetos e de A alegria delicada dos dias comuns, títulos de livros seus (lidos também com doses de ironia). Todos estamos envolvidos nesse clima, em busca de afeto e delicadeza, ora mais expostos aos inimigos, ora um pouco protegidos entre quatro paredes. É de nós, desse lugar-comum do existir, que vai da solidão à solidariedade, que fala o poema — triste, forte, belíssimo poema.