Escrevi recentemente numa rede social que quase todos os bons livros de poesia brasileira contemporânea revelam ainda algum vestígio da poética de João Cabral de Melo Neto. Claro, sabemos que muitas vezes esse tipo de afirmação fala menos sobre o cenário da poesia atual e mais sobre a visada do leitor que anuncia esse tipo de coisa. Ou seja, há sempre a possibilidade de, enquanto leitor, eu insistir em colocar traços de João Cabral em quase todo poeta que me diz algo.
Com Brinquedos que-brados, de Elson Fróes, não é diferente. Pudera!, trago em minha defesa versos de dois dos poemas que aparecem logo no início do livro: “A pedra ainda bruta/ guarda em si brilho perfeito/ como retém a fruta/ em suas entranhas o sumo” e “Nua insinua-se/ […]/ a pedra palavra/ em seus arpejos e arestas/ uns reparos, umas aparas/ asperezas por quilates”.
Não apenas pela imagem da pedra que é escola (João Cabral, 1966) ou pelas lições de Psicologia da composição (João Cabral, 1947), mas também pela aspereza de sons que palpitam nas aliterações em pedra (predomínio de “p” e “r”), bem como pelo que vai se quebrar no livro do poeta paulistano, a saber, o próprio poema, percebe-se aqui a forte presença do poeta pernambucano.
A opção por quebrar o próprio adjetivo no título do livro revela mais do que a aproximação entre poemas e brinquedos, revela também esse quase nunca perder de vista a dialética cabralina, que quebrou a lírica melódica em meados do século 20 ao introduzir, entre outras coisas, versos heroicos-quebrados em seus cantos “a palo seco”.
No entanto, apesar de vermos a persistência de Cabral em poetas contemporâneos, não é frequente encontrar complexidade plástica tão criativa no exercício das escritas atuais quanto nestes Brinquedos que-brados. Falo de uma plasticidade feita para montar e desmontar, como no poema em que lemos uma composição lexical original: Alírica (tema que Cabral defendeu, com outras palavras, para si mesmo em inúmeras entrevistas — o antilírico). Em versos desse poema lemos: “Alírica não se alicia nos/ suspiros nem se assusta/ nas pausas dos tímpanos/ que troam forçosas dores”, bem como “Má lírica dívida solúvel/ somente no esfolar ao vivo/ a contrapelo todo possível/ sentir e sonhar”.
Os temas de Cabral, logo no início do livro, anunciam-se junto aos brinquedos de Fróes, mas o modo como o poeta contemporâneo vai performar plasticamente seus versos dão ao livro visualidade original que, como todo brincar, mistura diferentes e potentes brinquedos de outros tempos, como os de Ferreira Gullar, ou Manuel de Barros. Do primeiro, que também foi artista plástico, nota-se um querer aprender sobre as palavras a partir da pintura, ou melhor da visão e do silêncio, como quem folheia um álbum de fotos ou observa um gato; do segundo, vemos a quebra semântica que nos permite aprender feito crianças. Como método poético seria algo como, nas palavras de Fróes, “enfeitiçar na palavra o que ela contém e mudar sentidos” ou “subverter seu poder de reter”. E como resultado do método: “Cantam pássaros nos olhos” ou “O canto do pássaro em sol”.
Porém, quando falarmos em visualidade na poética de Fróes, vale reforçar que sua paisagem é também sonora. Ou seja, apesar da atividade visual em searas digitais, que misturam verbo, sons e imagens, a que tem se dedicado, o poeta atinge por meio da expressão escrita uma visualidade digna de haicais, sinestésica:
[…]
nesta manhã se
uma folha deixa
o outono
na árvore
como
o sangue desta
página em
ALVA
Ressalte-se aqui a ambivalência da palavra “folha”, que o autor aproveita para fundir dois campos semânticos distintos e confundir a contemplação oriental da paisagem num amanhecer com a percepção do espalhamento das palavras na página “ALVA”. Com isso, ambas, contemplação e página, findam com uma luz forte, branca e sonora: ensolarada.
Lírica complexa
Não obstante, como em todo espaço-tempo de brincar, o livro de Fróes nos reserva também contradições (talvez embustes) dignas do mestre moderno pernambucano. Se ambos se performam como antilíricos, ou alíricos, não raras vezes notamos nos versos dos dois poetas mais uma reconfiguração da lírica do que uma ausência da mesma. Lição que avidamente, para quem está a falar de visualidades, João Cabral lapida com Miró e Fróes com uma seara de poetas mais plásticos que discursivos (isso inclui as constelações dos concretistas, ou mesmo as paisagens sonoras de Leminski).
Neste sentido, Brinquedos que-brados reserva para nós uma lírica um pouco menos formal e um tanto mais filosófica nesse complexo ludus que é não apenas a poesia, mas a própria vida. Explico: se o poeta pernambucano formaliza outra música (musa) com seus heroicos-quebrados, o poeta paulistano mistura o lúdico ao compromisso ético do devir para fazer vazar poesia original contemporânea: “E ter cuidados/ como tomar empréstimos/ para não dever nem/ deixar de ver-te bem// mas dever de verdade/ a juros render ou antes/ render-te juras de amante/ juntar sementes ao devir”.
Estes versos mostram que seu lirismo contemporâneo não se furta à crítica ao modo de ser capitalista. Este, o capitalismo, impulsionado por uma trama narrativa neoliberal, faz apropriações lexicais de campos semânticos inerentes às sensações e ao erotismo para subverte-los às transações comerciais e de publicidades. O que o poema faz, nesse caso, é tentar inverter a apropriação neoliberal; usar expressões como “render juros” para falar de amor, sem deixar, porém, de complexificar em mais um nível as misturas desses campos do capital e do amor ao se valer da monofonia presente em “de amante”. Ou seja, será que tem algo que escapa ao fetiche?!
Dito de outro modo, a modernidade lírica no livro de Fróes elide crítica ao capital, compromisso ético-estético (assumir o devir) e um jogo de arquitetar (montar ao desmontar) universos plásticos de palavras que nos impelem a ressignificações de nós mesmos. E nessa arquitetura poética o autor tenta direcionar o menos possível o leitor em meio aos brinquedos, dado que não organiza o livro com seções, subtítulos ou indicadores de temas e dado também que a maior parte dos poemas não tem títulos e estão separados apenas por três pequenos losangos.
Nessa economia poética, talvez um aspecto do livro seja excessivo, a quantidade de brinquedos (poemas). Pois se se trata de entregar o leitor à criatividade, sobrecarregá-lo com mais de 130 poemas pode implicar em excesso. Este, por seu turno, até pode ser que acabe minimizado pelo não fechamento de temas, ou subtítulos, o que, consequentemente, resulta em menos unidade. E isso começa a afastá-lo (no melhor sentido do termo, já que todo poeta precisa encontrar sua dicção e solidão) do mestre João Cabral, que quase sempre zelou pela unidade dos livros.
Mas voltemos à (a)lírica do livro. Não pense o leitor que a poética de Brinquedos se restringe ao diagnóstico benjaminiano de que até mesmo o flâneur está condenado a virar mercadoria, ou que a arquitetura dessa poética seja de rigor tão-somente racional (que é uma maneira de ler equivocadamente João Cabral). Sua lírica proporciona também coisas singelas que driblam a metafísica e vão ao encontro de expressão subjetiva moderna e bonita, como lemos na série de poemas intitulados Texturas:
[…]
Muito além aqui em minha
metafísica provisória
e lamentável
[…]
Entranho nos recônditos suspensos do enigma
[…]
Ser por lenha e chama
incendiar-se ou dar ao ar
Deixar que o vento invente
o movimento que inverte
Sentido e tino renove
Sentimento e destino
Vemos nessa série, além da textura sonora, um possível ponto de onde o poeta pretende sair, no duplo sentido do verbo sair: “começar” e/ou “deixar”. Qual seja o ponto, o autor escreve brinquedos em cuja plasticidade não se retém a voz ou a explicação de qualquer experiência. Antes, Elson Fróes compõe com esse livro brinquedos para quebrar qualquer experiência que não venha do devir criativo de quem brinca. Neste sentido, a abertura que se pensou excessiva do livro, e que nos impede de falar em unidade, acaba dando outros contornos poéticos à plasticidade que aprendemos com João Cabral. Ou seja, se os brinquedos também nos quebram (ressignificam), revelando-nos a face fetichizada que também somos, estamos todos, poeta, poema, leitor e vida, dentro do mesmo museu (de tudo), ou da mesma performance.
Se assim for, menos ruim talvez para quem souber criar algo com os brinquedos que temos e somos.