Mesmo quando respeitada e reconhecida, Buchi Emecheta (1944-2017) nunca deixou de ser uma autora rotulada de diversas formas, o que frequentemente resultava em uma menorização de sua obra. Bem à sua maneira, a escritora não deixou de reagir contra isso. Entre possíveis exemplos, talvez a demonstração mais notável de seu desconforto seja a entrevista em que retrucou àqueles que insistiam em categorizá-la como escritora “feminista” ou como alguém do “terceiro mundo”; em vez disso, Buchi preferia ser denominada escritora “negra” e “nigeriana”. Como se torna evidente por uma leitura de seus escritos, tanto os literários quanto os não ficcionais, isso não quer dizer que Buchi não apoiasse o feminismo ou os movimentos do sul; o que a incomodava era o fato de esses serem rótulos que desconsideravam as especificidades de sua condição como mulher escritora e africana — rótulos “ocidentais”, em suas palavras.
Em certa medida, esses processos de menorização se fazem ainda presentes numa etiqueta que com muita frequência tem sido aplicada a Emecheta: o rótulo de inspiradora ou influenciadora de Chimamanda Ngozi Adichie. Não se trata de desprezar as boas intenções subjacentes a essa associação, ou sua pertinência. Por um lado, é certo que colocar Buchi nessa posição significa afirmar sua importância como escritora para o público geral, a partir do alcance que o nome de Chimamanda hoje possui nos meios literários e culturais. Por outro lado, as influências de Emecheta sobre a autora de Hibisco roxo (2003) são sensíveis, tanto no que tange a aspectos temáticos quanto estilísticos; e Chimamanda não deixou de expressar sua admiração por Buchi, em diversas ocasiões. No entanto, há nisso sempre o risco de se reduzir a figura de Buchi Emecheta (e de sua obra, por extensão) à condição de precursora — como se fosse o bastante celebrá-la como alguém que pavimentou a estrada para quem a sucedeu. Isso implica relegar à posição de eminência parda uma premiada escritora e intelectual negra, autora de mais de duas dezenas de obras de diversos gêneros, detentora de títulos acadêmicos e mundialmente reconhecida por seu impacto político.
No Brasil, a obra de Buchi Emecheta é ainda pouco conhecida; não obstante, uma oportunidade para que isso mude vem sendo oferecida pela Dublinense, que já publicou traduções de três livros seus: Cidadã de segunda classe [Second-Class citizen] e As alegrias da maternidade [Joys of motherhood] aqui chegaram em 2018, em tradução de Heloisa Jahn; em 2019, foi a vez de No fundo do poço [In the ditch], em edição traduzida por Julia Dantas, merecendo destaque a bela capa e o projeto gráfico de Luísa Zardo. Considerando-se o fato de Buchi Emecheta ser uma autora pouco familiar ao público brasileiro, lamente-se apenas o fato de as edições não contarem com paratextos que a apresentem e ampliem a fortuna crítica sobre ela disponível.
Em termos cronológicos, não apenas No fundo do poço foi publicado antes das outras obras citadas, como também foi o primeiro livro levado ao prelo pela escritora — visto que o manuscrito de The bride price foi queimado pelo marido de Buchi, o que a motivou a deixá-lo. Tendo se mudado para a Inglaterra no âmbito do processo de descolonização, Emecheta ingressou como estudante de Sociologia na Universidade de Londres; foi nessa época que começou a publicar, no periódico The New Statesman, textos que tratavam das vivências cotidianas de uma imigrante africana. Desses textos nasceu No fundo do poço, romance protagonizado por Adah Obi — a mesma protagonista de Cidadã de segunda classe.
Famílias-problema
O “poço” mencionado no título da obra é o Pussy Cat, um conjunto habitacional no qual Adah vai morar após ter sido expulsa de sua residência anterior pelo senhorio nigeriano — que, embora ciente do fato de Adah ser uma imigrante separada do marido e com cinco crianças pequenas, cobrava um aluguel duas vezes mais caro do que o habitual e decidira expulsá-la quando a inquilina exigiu que ele tomasse providências a respeito da sujeira, dos ratos e das baratas que povoavam o apartamento. Há algo de desestabilizante no episódio com que se abre o livro, precisamente porque ali estamos diante de uma mulher negra, imigrante africana, que é hostilizada por um homem negro, também imigrante africano — e que, para dela se livrar, não hesita em recorrer à magia juju. Por um lado, os efeitos dessa tentativa são cômicos: Adah não se deixa amedrontar (juju poderia funcionar na Nigéria, mas não na Inglaterra, “onde se está cercado por muros de descrença”), e o senhorio acaba sendo flagrado pelos vizinhos com o corpo envolto em tecido vermelho e com uma pena de avestruz na cabeça, como “um índio de televisão que bebera demais”. Por outro lado, isso já evidencia o modo como não apenas Adah, mas também seus pares, são vistos pelos nativos ingleses: figuras estranhas, deslocadas, eventualmente perigosas — e, acima de tudo, problemáticas.
De fato, a noção de “problema” é fundamental na obra. Adah e seus filhos são enviados para o residencial Pussy precisamente porque aquele é o lugar designado para “famílias-problema”; desse modo, se alguém que lá habitasse não tivesse problemas, havia as condições necessárias para que eles fossem criados. Se a Adah não faltavam problemas — sendo uma mulher solteira que precisava trabalhar, estudar e cuidar dos filhos —, a vida no “poço” criaria inúmeros outros. Como impedir que quatro crianças pequenas e uma bebê importunassem os vizinhos, sendo muito finas as paredes que separavam os apartamentos? Como preservar a saúde em meio a escadas íngremes com cheiro de banheiro e depósitos de lixo transbordantes? Como manter o apartamento suficientemente aquecido? Não obstante, a própria assistência social cuidaria de criar mais problemas para Adah. Se, para enfrentar o juju do senhorio nigeriano, Adah encontrara forças na certeza de que, na Inglaterra, teria a liberdade necessária para manter seu emprego e dar continuidade aos estudos, isso logo é posto a perder diante da imposição de que pare de trabalhar para cuidar dos filhos. Adah é, assim, reduzida ao que dela se espera: torna-se uma mulher imigrante com cinco filhos, sem marido, sem emprego e sem futuro.
Embora todas as circunstâncias concorram para relegar Adah a uma vida de precarização e dependência, ela jamais afunda completamente no “poço”. Movida pela necessidade de seguir adiante, cuidando de seus cinco filhos, Adah ora utiliza estratégias de sobrevivência que desenvolve por conta própria (como usar sua “cara de africana”, simulando não conhecer bem a língua inglesa, nos lugares em que se esperava que ela fosse pobre; ou fingir ser negra e burra, desse modo cumprindo as expectativas sociais), ora aprende com suas vizinhas as melhores formas de lutar por vantagens e recursos. Desse modo, sem jamais deixar de lado suas heranças africanas — tanto porque sua condição racial não lhe permite fazê-lo quanto por seu apego a valores nigerianos —, Adah constrói alianças com mulheres proletárias que lhe permitem lidar com os jogos de poder impostos pelo sistema de assistência social. É poderosa a cena em que o residencial Pussy assume para Adah uma aparência fantasmagórica, e ela pela última vez lê os nomes daqueles enterrados no cemitério, num gesto definitivo de despedida. No fundo do poço, Adah aprendera a jamais se submeter.