Um ato radical

Perplexo diante de um Brasil em ebulição, Edimilson de Almeida Pereira reúne na antologia "Poesia +" parte de sua produção dos últimos 30 anos
Edimilson de Almeida Pereira, autor de Poesia +
30/07/2020

Após mais de 30 anos dedicados à literatura, o mineiro Edimilson de Almeida Pereira reúne quase 200 poemas — de diferentes épocas e estilos, além de inéditos — na antologia Poesia + (leia resenha na página 9). Busca cobrir sua produção desde 1985, quando estreou com Dormundo, até 2019.

Esse apanhado plural, segundo o poeta, realça o efeito das diferenças dentro de sua obra, que é marcada pelo “primado da liberdade” desde o princípio. Essa afirmação, porém, não impede que Edimilson também transite por propostas fixas — como quando trabalha versos sobre conflitos sociais, tema que muito lhe interessa e bastante discutido nesta entrevista concedida ao Rascunho por e-mail.

Na impossibilidade recente de mudanças efetivas no país, uma vez que, “em muitos setores, estamos diante de um Brasil bruto e arbitrário, sem projeto de uma vida social digna para a maioria da população”, o autor de qvasi: segundo caderno (2017) e Guelras (2016), entre outros, enxerga na poesia uma potente arma contra a barbárie social e, principalmente, o aviltamento da linguagem. “A linguagem aviltada restringe nossa capacidade para combater as outras atrocidades”, reflete.

É a partir desse viés combativo que o professor da Universidade Federal de Juiz de Fora produz e busca diferentes angulações com seu fazer poético, compreendendo que o ato de escrever “pode muito, mas que esse muito é pouco e precisa mudar continuamente para sobreviver”.

• O senhor já realizou duas antologias de sua obra poética, composta por mais de 20 livros. Por que uma nova antologia com o arco de tempo de 1985, sua estreia, até 2019?
A antologia Poesia + (2019) funciona como uma cartografia de três décadas e meia de criação e reflexão que venho desenvolvendo sobre as relações entre poesia, história e sociedade. Anteriormente, publiquei duas edições de poesia reunida: Corpo vivido (1991) e Obra poética (2002-2003), subdividida em 4 volumes: Zeosório blues, Lugares ares, Casa da palavra e As coisas arcas. Poesia + é, de fato, minha primeira antologia poética. Ao organizá-la, procurei evidenciar mais do que uma seleção de textos que vieram a público em obras precedentes. Na antologia, poemas de diferentes épocas e estilos foram recombinados para configurar novos contextos e, a partir deles, novas proposições estéticas. Minha intenção foi apresentar aos leitores um novo livro. Os inéditos acrescidos ao final do volume acentuam essa proposta e estendem o arco de tempo da antologia até 2019.

• O senhor optou por fazer a própria antologia (algo comum entre poetas). Por que decidiu escolher os próprios poemas? O senhor se considera o melhor leitor da sua obra?
No final de 2017, o editor Cide Piquet me fez o convite para organizar a antologia. Desde então, revisitei os livros que publiquei entre 1985 e 2017. Optei por não incluir poemas dos livros editados em espanhol e dos livros infantojuvenis. Na condição de visitante, me fixei inicialmente nos aspectos conhecidos da minha própria escrita para, em seguida, me deixar surpreender pelas frestas que a leitura demorada me revelava. Olhar através dessas frestas me permitiu descobrir um outro sujeito da escrita e as múltiplas combinações de forma e de sentido entre os textos. Foi, portanto, como um estranho que me deparei com os poemas, convidando-os para uma contemporaneidade estranha para muitos deles. Não penso nem de longe em ser o melhor leitor da minha própria obra. Penso que preciso ser um leitor dentre outros, que se interessa em dialogar sobre o modo como as linguagens enigmáticas da poesia nos ajudam a compreender a complexidade da história.

• Quais marcas a sua poesia deixou no senhor ao longo destes mais de 30 anos?
A poesia é uma teia que me interliga a diferentes temporalidades, lugares e vivências. O que me marca dessa teia são os seus riscos: aqueles que dizem, às vezes, o que fomos, mas nem sempre indicam o que poderemos ser.

• No poema Argonautas, lemos: “A primeira lição do arqueólogo é não se reconhecer/ nos ossos que recupera”. De que maneira o senhor se reconhece ou se distancia dos poemas reunidos em Poesia +?
O sujeito que fomos nem sempre se reconhece naquilo que foi escrito. Penso na perspectiva camoniana segundo a qual a única lógica que não muda é a da mudança (“Todo o mundo é composto de mudança,/ Tomando sempre novas qualidades.”). Não há como impedir o fluxo de alteração das coisas e de nossas experiências. O máximo que se pode fazer é ficcionalizar a sua perenidade. Paradoxalmente, até aquilo que parece não mudar (o poema gravado no papel, por exemplo) não é senão o prenúncio de que logo adiante já não será igual a si mesmo. Por isso, revisitar a própria escrita consiste numa experiência de estranhamento. O reconhecimento de nós mesmos tende a ser parcial mesmo nos poemas que se vinculam a circunstâncias específicas. Se considerarmos a imediaticidade que reveste nossas práticas contemporâneas, o arco de tempo que envolve os textos de Poesia + é extenso. Ao percorrê-lo, percebo que perdi muitas referências, mas incorporei outras. Isso acontece também com os poemas na antologia, que são ressignificados ao circularem por esferas de recepção variadas no tempo e no espaço. Isso cria um circuito estético, político e cultural que antes de significar uma ruptura com minha identificação com a própria obra me estimula a pensá-la, e a mim mesmo, como suportes de vivências a serem continuamente reinventados.

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“O sofrimento e o prazer, como experiências inerentes a todos nós, estão inscritos em minha literatura.”

• Em Santo Antônio dos Crioulos, temos dois versos emblemáticos: “A poesia comparece/ para nomear o mundo”. Como a poesia consegue nomear e discutir este mundo que nos rodeia?
O enunciado dos versos embora pareça absoluto é, na verdade, relativo. Primeiro, porque entendo a presença da poesia como algo cambiante, que atravessa nossa vida cotidiana. Quando ela comparece entre nós é como se fôssemos arranhados por uma potência em dispersão, que interroga e contesta a ordem fabril que nos é imposta. Segundo, porque nomeamos aquilo que desejamos conhecer e, consequentemente, não mais perder. Porém, a poesia recria através dos nomes formas e sentidos flutuantes. Aquilo que ela nomeia ou captura se dispersa e, por isso, se predispõe a ser reinventado, sucessivamente. No mundo em que vivemos, as formas e os sentidos se dispersam pela força do utilitarismo. As perdas tendem a ser reparadas por simulacros de novidades, razão pela qual somos literalmente abarrotados de sentidos e formas que, apenas na aparência, parecem nunca ter existido. A poesia, ao contrário, não promete essa novidade fácil. A reinvenção que decorre de sua potência em dispersão exige que nós nos tornemos sujeitos criativos, capazes de nos desdobrarmos de nós para o outro, até que sejamos nós mesmos uns e outros.

• O que a sua poesia busca aprender e apreender?
Vivencio a poesia como um exercício em liberdade e o que daí decorre, uma certa poesia, tenta apreender o que chamo de potência em dispersão. Para mim essa potência consiste no impulso para apreender a multiplicidade de linguagens e, consequentemente, dos mundos que elas exprimem. Essa potência criadora não representa uma imposição de métodos, mas um estímulo para a pesquisa e a experimentação. Através dela podemos viabilizar o mergulho para o alto e o salto para o subterrâneo, em linhas de movimento que se dispersam. Considero essas metáforas vitais porque são permeadas pela recusa às restrições vindas do próprio ambiente literário, tais como a necessidade de pertencer a essa ou àquela geração ou de sentir-se inserido nesse ou naquele estilo de escrita. Procuro trabalhar criticamente essas metáforas para ir na direção da “poesia-liberdade” prenunciada por Murilo Mendes como insubordinação a todas as formas de cerceamento. As pressões provocadas pelo neoliberalismo e por outras forças neoconservadoras (que sabotam a defesa dos direitos humanos, do meio ambiente e das linguagens sem fins lucrativos como a da poesia) transformam a potência em dispersão, para mim, num ato contínuo de defesa da liberdade de pensamento e de expressão.

• A cultura afro-brasileira permeia toda a sua poesia. O senhor busca reafirmar suas origens a partir dos poemas que escreve?
O que me chama atenção na estrutura das origens (e aqui, particularmente, em relação às culturas afrodiaspóricas) é a sua perspectiva de preservação e de mudança, que ocorrem simultaneamente. Quando dialogo com esses aspectos é para me reconhecer como um indivíduo permeado por múltiplas relações históricas e sociais, por convergências e divergências de valores, enfim, por processos violentos que precisam ser compreendidos em sua condição permanente de tensão. Em função disso, não teço uma poética que prescreve soluções para os dilemas das questões identitárias, mas uma poética que mergulha nos dilemas, tentando compreender como eles funcionam e a quais interesses atendem. É evidente que algo de mim e dos outros com quem convivo se revela no espaço poético, mas sempre a partir daquela identificação autocrítica expressa nos antigos jogos de carnaval, quando num momento de encontro os interlocutores se perguntavam “Quem é você?”.

• O Brasil sempre foi um país preconceituoso em relação aos negros, independentemente do estrato social. Como o senhor vê esta situação atualmente?
Guardadas as devidas proporções históricas, a situação das pessoas negras no Brasil de hoje continua a ser um acinte contra aquilo que nos habituamos a chamar de “civilização”. Os avanços para as pessoas marginalizadas, que ocorreram em alguns setores na última década e meia, não reduzem a dimensão da tragédia que nos atinge. Antes, ressaltam-na ao demonstrar que poderíamos ter outra sociedade — inclusiva, democrática, pluralista — e não esta de agora, caracterizada, entre outros aspectos, pela violência contra LGBTQ+, negros, indígenas, mulheres, pobres, crianças e povos tradicionais. O Brasil recente exibe sem pejo o racismo e a intolerância que em outros momentos se tangenciavam, mas se contornavam com os discursos da nacionalidade, da cordialidade, etc. Entendi cedo esse cenário, por ser testemunha dele. Logo, escrever num país onde a maior parte de sua população vive sob o fantasma do genocídio e do estado de exceção consiste num ato radical, que procura vislumbrar alguma saída para a dignidade humana, sobretudo quando essa saída é intencionalmente bloqueada. Trata-se, nesse caso, de defender a liberdade, o direito à vida e, simultaneamente, pensar para realizar, algum dia, uma sociedade que não se volte contra as pessoas e os seus sonhos. Sob outra perspectiva, é preciso entender que as populações da afrodiáspora tiveram de reinventar, em meio ao caos, outras lógicas para atribuírem sentido ao mundo e às experiências pessoais. Tenho chamado esse campo de conhecimento de epistemologias da liberdade: ele é vasto e profundo como os oceanos que foram atravessados. Porém, não é um campo vencido pelas perdas. Elas são contabilizadas e serão cobradas no instante devido. A princípio, as linguagens e práticas desse campo dizem respeito às populações afrodiaspóricas. Porém, a imersão dessas populações em diferentes territórios tem contribuído para a formação de paisagens culturais complexas, pulsantes, não obstante a repressão a que são submetidas. Essas linguagens e práticas permitem às regiões periféricas, em países como o Brasil, moldarem uma atmosfera onde é possível respirar — apesar das bombas de efeito moral; onde é possível imaginar — apesar do boicote do Estado à educação dos menos favorecidos; onde é possível criar símbolos e comportamentos — apesar da asfixia promovida pelo fundamentalismo religioso. Diante disso, além do contraste entre os “dois Brasis” enunciado pelo sociólogo Jacques Lambert (Os dois Brasis, 1972), precisamos ficar atentos à conflagração que caracteriza as relações entre os discursos hegemônicos e a miríade de territórios culturais que ainda não conhecemos de maneira profunda. No que diz respeito ao campo da poesia, o diálogo com poetas e artistas das novas gerações, provenientes dessa miríade de territórios culturais, tem sido um raro aprendizado acerca das epistemologias da liberdade.

• Uma infância rodeada de dificuldades transformou-se, no seu caso, em instrumento fundamental para ampliar o olhar sobre a realidade brasileira?
Sim. Porém, do ponto de vista da justiça social seria pertinente que nem eu, nem milhares de crianças em tantos países tivéssemos que viver a pobreza para transformá-la, em algum período, em instrumento de visão crítica. A vida das pessoas corre risco permanente quando submetida à privação de direitos básicos como alimentação, moradia, educação, segurança. Essa privação — fruto de processos histórico-sociais articulados por grupos, indivíduos e instituições que se beneficiam da miséria de muitos — não pode ser tratada como determinação dos céus. É uma condição forjada historicamente e, como tal, pode e deve ser alterada em nome de uma lógica social mais justa. Uma das lições que me ficaram da infância em situação de precariedade foi não acreditar que o bem-estar de uma pessoa a isenta de trabalhar pelo bem-estar das demais. Só há um sentido pleno da estrutura social quando ela propicia liberdade e acesso a direitos para todos. Sob esse aspecto, a realidade brasileira é um pesadelo, que transforma meus sonhos pessoais em perplexidade e indignação.

“O Brasil recente exibe sem pejo o racismo e a intolerância que em outros momentos se tangenciavam, mas se contornavam com os discursos da nacionalidade, da cordialidade, etc.”

• Qual foi a importância da escola pública para as suas escolhas intelectuais, para chegar à universidade, ao meio acadêmico e literário?
Minha trajetória foi toda em escola pública, exceto no ano de 1982, que antecedeu minha entrada na universidade. Estudei em escolas de bairro, nas quais as tensões e as relações da comunidade permeavam as salas de aula. Convivi com professoras e professores que fizeram, com grandes esforços, as mediações entre esses espaços. O aprendizado da mediação me ajudou a reconhecer zonas de conflito e possíveis vias de diálogo num meio social em que eu pertencia à parte menos favorecida. Aprendi a escutar os rumores de quem está distante dos locais privilegiados do discurso. Aprendi que, além de confrontar as estruturas de opressão, é necessário compreender e inserir nos debates públicos os sistemas de pensamento e de ação das comunidades discriminadas. Há experiências nesses sistemas que apontam para modos de viver em sociedade de maneira menos agressiva. Não é questão de idealizar esse ou aquele modo de vida, mas dizer que há outros para além desse — de espectro patriarcal, capitalista, xenófobo, misógino, etc. — que nos enredam. Durante a infância e a juventude, graças às escolas públicas que frequentei, tive contato com ideias que valorizavam a individualidade simultaneamente ao apreço pelas experiências coletivas. Isso me permitiu na universidade, como aluno e depois como docente, continuar atento aos modos de vida social deixados de lado pelos grupos hegemônicos, incluindo alguns setores da própria universidade. Com os recursos críticos apreendidos da cultura acadêmica, e incorporados à minha sensibilidade, ampliei o desejo de pensar desde dentro a comunidade de onde vim, bem como outras comunidades com as quais fiz contato no meio rural e também no meio literário. Em qualquer das circunstâncias, vi e vejo minha capacidade de mediação ser testada a todo momento. Ela não implica em abdicar da tomada de posições, pelo contrário, implica em não sucumbir às relações impregnadas de injustiça e de medo quando se trata de conviver com a diversidade humana que somos.

• Numa absurda inversão de papéis, os professores brasileiros são relegados a um descaso indecente, com péssimos salários, precárias condições de trabalho, falta de incentivo à carreira. O senhor imagina alguma alternativa a esta situação?
É preciso pensar em alternativas, sobretudo quando nos deparamos com um cenário de retrocesso como esse que você descreveu. Uma parte expressiva da sociedade brasileira trabalha contra si mesma quando impede a melhoria das condições de saúde, educação e segurança para as populações vulneráveis; quando se recusa a atuar contra o racismo e a misoginia; quando violenta a pluralidade religiosa em nome do fundamentalismo. Articular um campo epistemológico que se oponha a esse modelo e, ao mesmo tempo, mostre a viabilidade de outros modos de vida em sociedade é uma tarefa urgente. Tarefa que deve ser assumida como política de um Estado democrático, aliado às ações de indivíduos autocríticos. Sei que essa é uma imagem ainda à distância, mas é tecendo a utopia que também forjamos as bases reais da sociedade. Essa alternativa soa um tanto quanto abstrata, mas sem esse passo não há como evidenciar outras práticas culturais. Porque é aí, no domínio das práticas, naquilo que fazemos concretamente, que se estabelece uma visão mais imediata da virada subjacente às epistemologias da liberdade. Há um árduo trabalho de diálogo a ser desenvolvido, no sentido de descortinar modos de pensar e agir não destrutivos mas, ao contrário, autocríticos e fraternos. É preciso estar e ser com as pessoas e os grupos feridos historicamente — o que significa, em certa medida, estar e ser com a maioria das pessoas desse país — para gerar respostas à necropolítica que nos afeta. É preciso estar, particularmente, com tantos de nós, professoras e professores, agredidos como jamais fomos em nossos corpos e subjetividades.

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“Uma das lições que me ficaram da infância em situação de precariedade foi não acreditar que o bem-estar de uma pessoa a isenta de trabalhar pelo bem-estar das demais”.

• O Brasil passa por um momento político e social dos mais turbulentos. Como o senhor avalia os rumos que o país vem tomando nos últimos anos?
As escolhas numa democracia penhorada como a nossa têm consequências imediatas, às vezes desastrosas, o que dificulta a retomada dos rumos para desenvolvermos em nós mesmos um profundo espírito democrático. No período de 2003 a 2014, tivemos um amadurecimento desse espírito, sem menosprezar as contradições inerentes aos acordos de governabilidade que foram realizados. Contudo, tinha-se perspectivas de ações humanitárias, espaços para o diálogo e a escuta de demandas de grupos vulneráveis. Tinha-se a expectativa de ativação dos valores desses grupos como instituintes das epistemologias da liberdade. Os últimos anos representam um corte violento dessas perspectivas: em muitos setores, estamos diante de um Brasil bruto e arbitrário, sem projeto de uma vida social digna para a maioria da população. O peso dessa brutalidade, que sempre se abateu sobre os menos favorecidos, chegou às mídias sociais, podemos senti-lo em tempo real. Isso nos obriga, os que sempre fomos alvos da arbitrariedade, a lançarmos mão de uma absurda necessidade de sobrevivência. Isso nos exige um esforço sem medidas para não sepultarmos o desejo e a vontade de existir. Sabemos, por força, que não podemos morrer, enlouquecer, engrossar os números do Brasil horizontal (aquele de milhares de pessoas negras, migrantes, desempregadas, agredidas que dormem nas calçadas de nossas cidades). Os rumos que podem nos afastar dessa situação degradante não são os que vêm sendo apontados nos últimos anos. Há outros rumos, que nos devolvem ao conforto de uma casa, à dignidade da segurança alimentar, à utopia de uma educação pública, gratuita e de qualidade; e à capacidade de convivermos com as nossas diferenças identitárias. Para nós que escrevemos desde as epistemologias da liberdade existe um país ainda em estado de sonho a ser vivenciado como história.

• Se o inferno realmente são os outros, quem o senhor nomearia como demônio-chefe?
Acho problemático utilizar esses enunciados, que são retirados de seus contextos e, em tom proverbial, passam a funcionar como fórmulas capazes de resolver a complexidade das relações sociais. Entendo a que modalidade de outro se refere o pensamento existencialista, mas, na vida cotidiana, esse outro adquire uma materialidade que tem cor, gênero e classe social. E essa materialidade, em sociedades como a brasileira, se refere a mim e à maioria das pessoas que amo, que são consideradas inferiores e aprisionadas sob a imagem do outro. Por isso, não partilho de maneira imediatista da ideia de que o inferno são os outros porque ser o outro é, desde sempre, a minha condição pessoal e da comunidade à qual pertenço. Para mim, dessa comunidade de “outros”, profundamente humana e sofrida, vem a desconfiança com afirmações tão definitivas. Para sobreviver, temos que nos desdobrar, mudando e preservando o que somos. Essa dialética identitária não se realiza sem rupturas e sem embates. O que há de luminoso nela é a disposição para reconhecermos a responsabilidade de quem assume posicionamentos excludentes e os converte em política de Estado. A partir daí, esses agentes apontam quem é o outro e o discriminam. Isso evidencia que não há demônios nem inferno, ou seja, proposições abstratas das quais se valem alguns grupos para justificar suas atitudes hediondas. O problema maior ocorre quando determinados grupos, tendo à frente algum indivíduo específico, tomam posse dos órgãos públicos, reivindicam para si o direito à verdade e restringem as liberdades de quem não pensa e age de acordo com eles. Essa estrutura representa o contrassenso das sociedades que se desejam progressistas. Essa estrutura, claramente, não é um “demônio-chefe”, mas um projeto político de exclusão que precisa ser contestado. Por isso, é pertinente afirmar a consistência dos sujeitos sociais e a materialidade da história, isto é, realidades diante das quais precisamos assumir e cobrar responsabilidades.

• O senhor acompanha a poesia brasileira contemporânea? O que mais lhe chama a atenção?
Na medida do possível, sim. Continuo a receber as obras que chegam por via postal, leio as publicações online, vou às livrarias em busca das edições recentes. Isso me dá uma visão apenas parcial e é a partir dela que dialogo com a nossa poesia contemporânea. Sei que estou diante de uma paisagem cultural tensa e contraditória. Procuro entender como a atuação daqueles que a constituem contribui para a manutenção ou não de um ambiente de resistência à barbárie do nosso tempo. Os dias atuais são uma ponte a atravessar se não quisermos destruir o desejo por aquilo que ainda vamos viver. Considero que a poesia tem um papel importante nessa travessia, entendendo-se aqui a poesia como uma aproximação crítica às nossas contradições.

• Todo autor tem uma definição sobre o que a literatura representa em sua vida. Para o senhor, a escrita está mais ligada ao sofrimento ou ao prazer?
O sofrimento e o prazer, como experiências inerentes a todos nós, estão inscritos em minha literatura. Porém, o que a movimenta é a perplexidade diante da violência das ordens sociais que nos rodeiam. Por que nos comportamos como inimigos que infestam o corpo do planeta? Por que deixamos de apreender subjetividades que não são explicitamente humanas? Por que furtamos de nós mesmos o direito à liberdade? Essas são algumas indagações que, na ausência de respostas satisfatórias, me impulsionam a refletir sobre o ato de escrever, sabendo de antemão que ele pode muito, mas que esse muito é pouco e precisa mudar continuamente para sobreviver.

• Se o senhor tivesse que reescrever trechos da sua vida pessoal, quais capítulos teriam cortes ou acréscimos significativos?
A vida tem sido generosa comigo, mesmo nas perdas. Minha mãe costumava dizer que a vida dela era um livro aberto. Sempre gostei dessa metáfora do livro para a vida. O meu livro está em curso. Quando o releio, gosto dos fragmentos que estão rascunhados, dos eus que fui e que, de certa maneira, olham para mim com um ar bem-humorado. Nesse livro-em-fluxo, os fragmentos se escrevem por si mesmos. Embora, às vezes, o autor, esse caniço por onde sopram as palavras, tente controlar o ritmo da escrita com pontuações severas.

• Sem ser panfletária, o que a poesia precisa combater no mundo atual?
Ainda o de sempre: a mediocridade de quem se vale do poder para cometer tiranias, a expropriação da liberdade dos que vivem em situação de risco (os de sempre: crianças, idosos, mulheres, negros, LGBTQ+, indígenas, imigrantes, a humanidade, enfim). No entanto, combater o aviltamento da linguagem (em suas diferentes modalidades) me parece ser um dos desafios mais relevantes. A linguagem aviltada restringe nossa capacidade para combater as outras atrocidades. O que é ainda mais grave: o aviltamento da linguagem nos impede de acessar a intensidade do desejo e a imprevisibilidade do imaginário. Sem essas instâncias, a própria poesia se fragiliza e respira por aparelhos.

• Quais desafios o senhor se impõe ao encarar a construção de um novo poema? Como se dá a gênese do poema?
Desde a edição do meu primeiro livro, Dormundo, em 1985, tenho a escrita como uma experiência marcada pelo primado da liberdade. Escrever com liberdade, embora pareça uma condição simples, nem sempre é possível. As demandas nascidas do meu interesse pelos conflitos sociais impõem, muitas vezes, os temas e os modos como eles devem ser abordados. Mais do que a fugacidade dos poemas de circunstância, trata-se de falar aqui de uma relação intrínseca entre a vida e a escrita sintetizada numa poética que mimetiza o real. É fato que, em alguns momentos, essa modalidade de poema se faz presente em minha obra. No entanto, não deixo de buscar a liberdade para escrever poemas que sequer tangenciam a realidade concreta. São poemas que se arriscam na abordagem de realidades imaginadas. Escrever essa modalidade de poemas me permite sentir, por algum período, o quanto da poesia é, para lembrar de Octavio Paz, um circuito de “signos em rotação”. A gênese dos meus poemas é pensada no plural: há mais de uma, a depender da estrutura do livro que estou compondo. Na edição da Obra poética, de 2002-2003, delineei quatro núcleos poéticos, sendo possível perceber em cada um deles uma gênese específica. Ainda em 2020, sairá uma outra edição de poesia reunida: desta vez os livros serão dispostos em ordem cronológica, de 1985 a 2017. Nesse caso, livros completamente distintos aparecerão lado a lado, realçando o efeito das diferenças dentro do conjunto maior da minha obra. Para essa edição, ao invés de agrupar livros a partir de pontos de origem semelhantes, teremos a dispersão dos núcleos de origem numa espécie de declaração sobre a impossibilidade de o poeta tecer, de fato, uma obra completa.

“Escrever num país onde a maior parte de sua população vive sob o fantasma do genocídio e do estado de exceção consiste num ato radical.”

• As oficinas de criação literária estão espalhadas pelo país e ganharam força nos últimos anos. Qual a sua opinião sobre “aprender” a escrever ficção/poesia?
Sem deixar de reconhecer que o excesso de métodos pode engessar o primado da liberdade no ato da escrita, gostaria de ressaltar um aspecto instigante das oficinas. Em tempos obscuros e arbitrários como esse que nos aflige, espaços de encontro e de debates funcionam como claraboias que nos estimulam a vislumbrar um sol lá fora. Uma oficina bem articulada propicia o acesso às técnicas da escrita e viabilizam o mergulho na subjetividade de diversas vozes autorais, inclusive na subjetividade dos frequentadores da oficina. Não creio que seja impossível escrever sem algum desses instrumentos, mas se os tivermos à mão é interessante aproveitar os recursos que eles nos oferecem.

• Vivemos tempos muito apressados e cheios de ansiedade, potencializados pelas redes sociais. Como o senhor se movimenta nestas teias infinitas, levando em consideração que a poesia é um espaço lento, um refúgio à balbúrdia?
Não tenho dificuldades com a teia das redes sociais, porque tento não me deixar levar pela ansiedade ou pela ideia de que é preciso aproveitar todo o tempo do tempo. Para mim, acompanhar o ritmo que demanda cada texto é mais importante do que responder aos estímulos para publicar ou aparecer nas mídias. Por um lado, convivo com textos num largo fluxo temporal, a exemplo de um trabalho de ficção que iniciei em 2001 e que sairá somente agora, em 2020. O texto não estava pronto antes e ao olhar para ele, quando impresso, continuarei a dizer que lhe falta algo. Por outro lado, há textos que convivem em meu pensamento por pouco tempo. Ao cuidar de escrevê-los, eles sobem à tona sem peso, ávidos por dialogar. Não é incomum que esses poemas surjam exatamente no coração da balbúrdia, extraindo dela o seu oxigênio. Sabendo desse contraste, procuro estabelecer uma movimentação crítica entre as redes sociais e os espaços concretos. A liberdade para experimentar essa movimentação é uma condição fundante da minha escrita. É através dela que enfrento, com alguma esperança, as relações tensas e contraditórias que dão sentido àquilo que chamamos de vida literária.

Leia Resenha de Poesia +

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho