Uma visita não planejada
Imagine que você se encontra em Moscou e dispõe de apenas três dias livres: claro, serão dedicados à peregrinação usual aos museus da cidade.
Imagine ainda que esta é a sua segunda viagem a Moscou; portanto, algumas visitas incontornáveis já foram devidamente realizadas: claro, um dia dedicado aos ícones na Galeria Tretyakov, além de um panorama multissecular da pintura russa, nessas peregrinações apressadas que somente evidenciam o muito que não se pôde ver; outro dia imerso no Museu de Arte Moderna, isto é, entre tantas possibilidades, um dia imerso na coleção das obras de Kazimir Malevich em todas as suas fases. E, por certo, você não deixou de se incorporar às enigmáticas filas, devidamente organizadas, para contemplar por um breve instante o Mausoléu de Lenin. Breve, bastante: a fila nunca para, especialmente diante do corpo do líder revolucionário, numa metáfora involuntária do tempo e seu fluxo incansável. Por que não assistir a uma missa ortodoxa que acaba de começar no momento em que você entra na Praça Vermelha? A Catedral de São Basílio pode aguardar.
Pois bem: em seu retorno à cidade, você decide se perder (um pouco — não muito mais do que isso) e caminhar sem rumo.
(Mas, devagar com o passo: o perímetro, previamente palmilhado, oscilava entre duas estações de metrô).
Um edifício imponente chama sua atenção: você sobe as escadas e descobre um improvável museu, por assim dizer, monográfico, pelo menos considerando sua denominação: Museu da Guerra Patriótica de 1812.
(Como assim?)
Um átimo de hesitação: valerá a pena passar as poucas horas de que você não dispõe num espaço evidentemente destinado ao tipo de ufanismo nacionalista, cujas consequências são sempre funestas? Mas por que não arriscar? Se nada se aproveitar, você pode fazer como o desocupado lector cervantino e simplesmente fechar o livro! Ainda é cedo e hoje os museus fecham mais tarde.
Avante?
Museu como antropologia
E eis que o inesperado faz uma surpresa: as horas, muitas, que você passou no Museu da Guerra Patriótica de 1812 seguem em sua memória. O espaço é o território de uma celebração do exército russo e, por extensão, da defesa do ideal de um império em expansão contínua. Sem dúvida, tal ufanismo interessa aos projetos de um Vladimir Putin.
Ainda assim…
O acervo do Museu, com destaque para sua exposição permanente, desmoraliza uma versão consagrada que, no entanto, finalmente percebemos ser absurda e que só repetimos porque nunca paramos um segundo sequer para refletir.
(O mesmo segundo que você parou diante da excepcional fachada do Museu da Guerra Patriótica de 1812?)
Reiteramos que o grande erro de Napoleão Bonaparte foi ter invadido a Rússia em pleno inverno. Uma e outra vez — não é mesmo? Ora, como teria sido possível que Napoleão fosse ele mesmo se tivesse tomado tal decisão? Nem precisaria ser um estratego brilhante; bastaria conhecer a história: em 1709, o Rei Carlos XII, da Suécia, perdeu seu exército devido aos rigores da estação.
As fileiras francesas iniciaram sua campanha no dia 24 de junho de 1812, ou seja, durante o verão! Em marcha acelerada, o exército napoleônico invadiu o território russo e no dia 17 de agosto atacou a importante cidade de Smolensk, que foi tomada sem combates de monta, e isso em boa medida pela incomum estratégia adotada pelas tropas do Czar: recuos sistemáticos, a fim de evitar o confronto direto com as forças numericamente muito superiores do exército inimigo. Nesses recuos, ademais, adotou-se um procedimento radical: plantações eram destruídas; pastos, arrasados; cidades, incendiadas. Desse modo, Napoleão não poderia reabastecer adequadamente seus soldados. Tudo se passa como se o exército russo se metamorfoseasse num corpo guerrilheiro.
No caminho de Moscou, os franceses sagraram-se vitoriosos na sangrenta Batalha de Borodino, em 7 de setembro, com 80 mil mortos ao final do dia. O exército russo foi derrotado, mas não aniquilado, como Napoleão desejava — e essa diferença será decisiva e levará ao colapso das forças francesas. Na semana seguinte, a 14 de setembro de 1812, Napoleão entrou triunfante — embora não triunfalmente — em Moscou. Seu plano parecia desenvolver-se a contento: uma campanha relâmpago, de modo a explicitar sua superioridade, obrigando o Czar Alexandre a assinar um acordo de rendição. Para tanto, Napoleão liderou uma tropa de 690 mil homens fiéis à mística do grande e invencível general. Mística, aliás, que empolgou a um filósofo sistemático como Hegel; para o autor de A fenomenologia do espírito assistir ao general equivalia a um espetáculo universal e transcendente, seria como presenciar o próprio “Espírito do mundo a cavalo”. A grande armée secundava o “Espírito” com uma impressionante cavalaria e nada menos do que 1.420 canhões.
(A ontologia nunca esteve tão bem armada.)
Além dos recuos, seguidos da política de terra devastada, autênticos grupos de guerrilha foram organizados: as “unidades volantes”, assim chamadas porque atacavam o exército regular napoleônico e imediatamente desapareciam; aliás, expediente também usado na Espanha, durante a resistência à ocupação francesa.
Retornemos ao 14 de setembro de 1812: Napoleão se instala em Moscou e certamente acredita ter alcançado sua maior vitória — e ele não triunfou poucas vezes! Seguindo os protocolos da guerra, envia um emissário ao Czar Alexandre, pois, senhor de Moscou, o que poderia restar ao império russo? Hora de iniciar as negociações de paz, que, naturalmente, seriam favoráveis aos interesses franceses.
Nessa constelação histórica, nessa encruzilhada de impérios, a exposição permanente do Museu torna-se pura experiência antropológica: entendemos o absurdo da versão na qual sempre acreditamos: Napoleão invadiu a Rússia no inverno…
Os painéis da exposição celebram a astúcia, não da Razão hegeliana, porém do Czar Alexandre, no fundo, do general Mikhail Kutuzov: simplesmente o Czar se recusou a receber o emissário de Napoleão e nem sequer cogitou a rendição. Seu exército não foi aniquilado, logo, poderia ser recomposto e com pleno acesso aos víveres não mais acessíveis aos franceses.
Após cinco longas semanas numa Moscou estéril, e sem condições de manter as tropas no devastado território inimigo, e, sobretudo, finalmente compreendendo que a estratégia russa supunha aguardar a chegada do inverno para então atacar a grande armée, Napoleão inicia um retorno desesperado à França.
(Mao Zedong afirmaria um século mais tarde: quem cerca, está cercado; quem sitia, está sitiado…)
Cada vez mais rigoroso, o inverno foi um aliado decisivo das tropas russas que, agora, não mais recuavam, porém caçavam os soldados invasores. No dia 14 de dezembro, sofrendo uma temperatura de 38 graus negativos, somente 10 mil homens conseguiram refugiar-se em solo francês. O que teria sido o triunfo definitivo de Napoleão converteu-se numa derrota da qual nunca se recuperou totalmente.
Contudo: Napoleão foi derrotado não por ter invadido a Rússia no inverno, porém por não ter aniquilado, a tempo, numa campanha suficientemente célere, o exército russo. O Czar Alexandre pôde então rejeitar as propostas de paz, pois para ele a guerra não havia ainda terminado; afinal, o resultado definitivo dependeria da entrada em cena do mais importante aliado russo: o inverno.
(No tabuleiro de xadrez da guerra, os russos venceram por Zugzwang. Tradução do alemão enxadrístico: se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come.)
Em outras palavras, nunca havíamos pensando na Campanha Russa com uma perspectiva que não fosse a do Napoleão derrotado. Por que nunca fomos capazes, pelo menos, de imaginar outro olhar? Por que tão poucos de nós já escutaram o nome do general Kutuzov?
(Como é possível que não o tenhamos visto inclusive ao ler Guerra e paz?)
Ainda
Atônita, você deixa a exposição permanente do Museu da Guerra Patriótica de 1812, porém não consegue sair do edifício: há uma exposição temporária imperdível: a construção da imagem de Vladimir Lenin como autêntico ícone revolucionário.
Na próxima coluna, trato dessa exposição, na qual foram colocados em paralelo impactantes cenas dos funerais de Lenin e de Stálin.