Manter as complicações sem que isso seja um obstáculo para a clareza. Essa é uma maneira de dar forma às impressões de leitura de Cartas a um jovem terapeuta — livro de 2004 que teve uma versão ampliada lançada neste ano pela Planeta — e da conversa de aproximadamente uma hora e meia no consultório, em São Paulo, do psicanalista e escritor Contardo Calligaris, numa tarde fria de agosto.
Calligaris nasceu na Itália, foi alfabetizado em inglês — a língua da liberação de seu país natal, nas suas palavras, e de seus maiores amores literários —, estudou na Suíça e, posteriormente, participou da efervescência intelectual vivida na França dos anos 1970. A chegada ao Brasil se deu na década de 1980, onde ficou em definitivo depois de alguns períodos morando nos Estados Unidos. Aparentemente avesso a malabarismos retóricos e exibicionistas, nesta entrevista ao Rascunho ele comenta sobre a escrita — definida como um processo que permite o exame da própria vida — e os diversos gêneros que explorou: ensaio, crônica — ele escreve semanalmente para a Folha de S. Paulo há mais de 25 anos —, a ficção e o roteiro de um seriado televisivo, o Psi, veiculado na HBO.
Sentado em uma poltrona vermelha, enquanto acariciava uma almofada de estampa quadriculada que repousava num criado mudo, ao longo da conversa, Calligaris flanou por uma surpreendente variedade de assuntos — da cultura clássica à clínica, da literatura às experiências codificadas nas quatro línguas que fala — com deboche refinado e erudição generosa. O que sobressai é o esforço de transmissão, de chegar até o leitor e levá-lo a pensar sobre a complexidade disfarçada no ordinário e na banalidade.
• Por que ampliar Cartas a um jovem terapeuta?
Parecia que eu devia alguma coisa de novo. Até porque essa correspondência que, em tese as cartas relatam, é fictícia. Mas fictícia até a página dois, porque, na verdade, as perguntas que eu finjo que me sejam colocadas por cartas, por alguns interlocutores, são perguntas que recebi mil vezes. Então, de fato, tinham outras perguntas, as quais eu podia responder e não tinha respondido. E algumas eram também perguntas em cima de coisas que eu tinha dito na primeira edição. É o tipo de livro que, no fundo, não tem fim. Sempre dá para continuar.
“Tenho uma tremenda antipatia por tudo que é ou implica uma identidade de grupo.”
• Escrever no formato epistolar permite dizer coisas que um texto teórico não poderia comportar?
Depende. Eu teria todo o interesse em revolucionar — talvez a palavra seja excessiva —, mudar o estilo do ensaio tradicional e ainda mais do texto acadêmico. Então, o recurso epistolar é um bom recurso para dinamitar os gêneros, se é que posso dizer assim. Sobre os livros propriamente de psicanálise que escrevi, o primeiro acho que é um livro bom, mas sou totalmente incapaz de reler porque acho pesadíssimo. É um livro que eu não escreveria mais. Acho que hoje, se quisesse reescrever aquilo, seria de uma maneira completamente diferente. Estou tendo esse problema com um livro parado na minha gaveta há 20 anos — se não mais, quase 30 —, que é a minha tese de doutorado. Existe uma primeira parte que está pronta, mas não queria publicar aquilo sem que se tornasse realmente um ensaio que fosse legível, digamos, pelo leitor das minhas crônicas da Folha de S. Paulo — um leitor letrado, alfabetizado, mas não mais do que isso. E aquilo me custou um trabalho tremendo porque foi escrito como uma tese de doutorado, mas, ainda por cima, numa época em que a ensaística, sobretudo de cunho psicanalítico, sofria enormemente da necessidade que cada autor tinha de mostrar que conseguia habilmente se servir dos conceitos, muito mais do que ele conseguia realmente falar de alguma coisa. A transformação daquilo é laboriosa. Então, desse ponto de vista, Cartas foi muito interessante. Acho que, numa outra forma, não teria conseguido escrever esse livro. Ele teve público muito amplo, não sei dizer quantas edições, e foi adotado — coisa surpreendente — em cursos de psicopatologia, de primeiro e segundo ano de Psicologia, até na residência de Psiquiatria do HC. E, sobretudo, foi lido por um monte de gente no avião. Aprendi muito nos últimos anos. Cheguei ao Brasil sendo um cara que tinha sido acadêmico — continuei sendo um pouco aqui no Brasil, depois nos Estados Unidos — e, sobretudo, um cara formado na França dos anos 1970, que era um lugar mágico, extraordinário, fantástico. Foi uma década incrível de explosão e invenção cultural. Tive sorte de escutar, de me aproximar, de ser amigo de algumas pessoas que me influenciaram fortemente. Mas, ao mesmo tempo, era uma época extremamente hipnotizada pelo som das próprias palavras. Então, o risco era o de produzir textos maravilhosos, sobretudo ensaísticos, dos quais ninguém era capaz de produzir um resumo, por exemplo. Vindo disso, cheguei ao Brasil assim. O Brasil é um lugar muito peculiar, isso me levou a fazer uma série de observações sobre como eu conseguia conviver com essa descoberta. Isso deu um pequeno livro, o Hello, Brasil! — que também foi reeditado, ampliado, digamos assim —, que foi, na época, uma espécie de best-seller intelectual. Pelo menos vindo de uma pequena editora, vendeu muito mais do que eu imaginava, muito mais do que a editora imaginava. A função desse livro, na minha vida, em última instância, fez com que eu começasse a trabalhar com a Folha. Aquilo realmente me permitiu reaprender a escrever. Me reeducou.
• Reeducação pensando no alcance que aquilo poderia ter?
Parecer dominar o seu campo não era suficiente e realmente dar uma opinião não é suficiente. É uma arte escrever uma crônica, pelo menos do meu ponto de vista. A minha ideia era sempre fazer com que as coisas das quais eu estivesse falando parecessem ao leitor mais complicadas do que ele imaginava, mas não no sentido de mais confusas, realmente no sentido de mais complicadas, mais complexas. Isso foi um pouco a linha que segui. Então, reaprendi a escrever com a Folha. Desde então, escrevi romances, escrevi uma coisa enorme que ninguém vê, que é o roteiro de quatro temporadas de um seriado, Psi, algo gigantesco como quantidade de escrita. E de ensaios. Em breve deve sair um pequeno livro, que é interessante porque vai na mesma direção de coisas que eu queria dizer faz tempo. É um livro escrito a quatro mãos. Na verdade, não é um livro escrito a quatro mãos. Foi um livro criado a partir de discussões com uma amiga (a psicanalista Maria Lúcia Homem) sobre questões relativas ao feminismo, a posição da mulher hoje em dia. E aí, cada um corrigiu. É muito diferente do que seria se eu tivesse sentado para escrever um ensaio. Eu teria dito as mesmas coisas, mas certamente teria sido diferente.
• E escrever regrado pelo dia da semana? A Clarice Lispector diferenciava o que era escrito com as entranhas e o que ela escrevia com a ponta dos dedos. Para você, é diferente?
É uma obrigação da qual eu gosto. Tem uma certa temporalidade: em geral penso ao longo da semana, escrevo na segunda e corrijo na terça, porque tem um tempo de ilustração para a coluna sair na quinta. Essa regularidade, devo dizer, tornou a minha vida mais divertida, porque você está sempre pensando, meio que em off, no que poderia ser o tema da coluna da semana. A coluna é completamente livre, então você pensa nisso a cada dia quando lê o jornal, quando vai ao cinema, quando lê um livro, quando conversa com amigos, quando vai ao teatro, quando visita uma exposição. Isso combate a preguiça e faz também com o que você vê e as experiências que você tem ao longo da semana sejam mais atentas. É um esforço de se surpreender.
• Uma das cartas incluídas nesta edição se refere às leituras. Nela, você escreve que desconfia de quem não lê ficção. Qual é a perda? Ainda mais considerando que o Brasil não é exatamente um país de leitores.
Não é uma questão de sentir falta, é uma coisa que me preocupa, porque não sei se têm muitos outros caminhos pelos quais uma cultura pode se civilizar. Num sentido muito vasto. Não se trata de ter valores parecidos, não, todo mundo pode ter valores muito diferentes. Mas de ter uma certa relação com o caráter relativamente efêmero da existência, a extrema diversidade do humano, o interesse por essa extrema diversidade. Tem quase uma base ética mínima do leitor de ficção, de quem realmente lê ficção. Não é necessariamente só que a ficção treinaria a capacidade de empatia. Sim, tudo bem, isso me parece o de menos. É muito diferente que ler ensaios, ensaios que, de uma maneira ou de outra, defendem uma hierarquia de valores. Ficção é outra coisa. Ficção introduz a gente num mundo de incertezas, em que, quase sempre, a gente acaba sendo o único responsável pelas escolhas morais que a gente faz. Isso, pra mim, é o que define uma posição moral. Me parece que quem não lê ficção não subiu num bonde absolutamente crucial para se transformar num ser humano que valha a pena.
• A ficção pode ser uma maneira de investigar temas que inquietam?
No caso do seriado Psi, completamente. Para mim, foi um luxo. Escrevendo roteiros, tive uma sensação muito boa porque foi uma espécie de — como posso dizer? — legado. Os roteiros e as cartas têm muito a ver. No sentido, de maneiras muito diferentes, de tentar transmitir um pouco do que foi a experiência bizarra que é a minha, de passar uma vida como psicoterapeuta. Ou seja, no fundo, passando, a cada dia da semana, de nove a dez horas, recebendo pacientes e tentando respondê-los, de maneira adequada, a demanda que eles tinham. Eu comecei a atender em 1975, quanto faz isso? Mais de quarenta anos, em dois continentes. É uma ficção, ao mesmo tempo quase todos os casos são verdadeiros. Isso vale de alguma forma também para os romances. Se você pega o meu segundo romance — A mulher de vermelho e branco —, a dita mulher de vermelho e branco é realmente uma paciente minha. A história inicial, com a qual o romance começa, é absolutamente verdadeira. Até essa paciente, só deslocada no lugar e no tempo. No primeiro romance [Um conto de amor], a história do protagonista com o pai é absolutamente verdadeira, é uma história minha com o meu pai. Não tem muita relevância, no fundo, mas acho que a ficção é sempre uma maneira de misturar — remixar — elementos que fazem parte do seu campo de experiência. No caso de um terapeuta, ainda por cima, isso chega a ser complexo, porque as pessoas esquecem que uma terapia não é feita de um encontro, dois encontros — é muito raro que seja assim. São, na verdade, vidas nas quais você se mete durante anos, num ritmo, às vezes, muito elevado — duas, três vezes por semana — com pessoas que ligam ou voltam a falar com você em momentos cruciais da vida. Então, você se envolve na vida de um grande número de pessoas e acaba — quer queira, quer não — carregando isso consigo, como se fossem experiências que, de fato, você viveu, porque são realmente experiências que de fato você viveu, na transferência da cura.
“Me parece que quem não lê ficção não subiu num bonde absolutamente crucial para se transformar num ser humano que valha a pena.”
• Qual o efeito particular de transformar numa ficção? Qual a diferença de um relato de caso?
É diferente, sem dúvida. Eu tive uma primeira experiência com o meu primeiro livro de psicanálise, que são cinco casos — se não erro, quatro ou cinco. São casos meus daqueles anos em Paris. São pacientes que foram consultados e que deram sua aprovação, não ao texto, mas à ideia de que escrevesse e publicasse. E depois leram o que eu publiquei. E, não todos, mas a maioria veio me ver para dizer o efeito. Um dos efeitos mais curiosos para mim — que mudou um pouco a minha maneira de atender, transformou um pouco, ainda assim, não sei se o suficiente — é que todos acharam que eu dizia coisas, nos casos escritos, que eles teriam adorado que eu dissesse, e que, durante a cura deles, não tinha dito. De alguma forma, tinha a impressão que sim, fiquei com aquela sensação: “Será que fui eu que não disse ou foram eles que não tinham condição de ouvir e que, mesmo que tenha dito, eles não ouviriam?”. Não sei. Penso que isso é verdade em quase todos os casos escritos, acho que Freud disse coisas sobre o Homem dos Ratos que não disse a ele, disse coisas por escrito sobre pacientes histéricas, como a Dora e outras, que não conseguiu dizer tão claramente a elas pessoalmente. Então, isso modificou minha maneira de clinicar, sobretudo de tentar falar um pouco mais. Quanto aos casos que aparecem em A mulher de vermelho e branco — não falo de Um conto de amor porque nele o caso sou mais eu — e no Psi, gostei de poder escrever com essa liberdade. Porque, primeiro, as mudanças introduzidas são suficientes para que você não tenha um problema de esconder, para que o paciente não seja reconhecido por outros. Às vezes, isso permite juntar, numa figura só, dois pacientes com problemáticas parecidas. Uma das descobertas interessantes ao longo da escrita — até porque, na escrita, tinha uma ou duas corroteiristas com quem discutia —, quase sempre a verdade estava além. Em outras palavras, como diz Aristóteles na Poética, o importante não é ser verdadeiro, o importante é ser verossímil. Então, em geral, em matéria de clínica, os casos aos quais eu me refiro pareciam, aos produtores e aos corroteiristas, inverossímeis demais. Tivemos que, de alguma forma, amansá-los. Diminuir as estranhezas.
• Onde entra o recurso da ficção?
Eu não diria que ele é curativo. Às vezes, sim. No sentido de fazer algo, na ficção, que acho que deveria ter feito, algo que não fiz ou não fiz no momento certo. Eu perdi um bonde ou, como se diz, comi bola. Isso, às vezes, tem essa função mesmo. É um resgate, é uma espécie de arrependimento. Por outro lado, isso não é a motivação para escrever, porque no fundo eu me perdi. Agora é muito tarde, mas também nem tanto, consegui fazer muitas coisas, mas não queria ser outra coisa que não fosse ficcionista. Bom, o primeiro erro foi entrar na universidade. Eu queria escrever, não queria ir pra faculdade. Fiz duas faculdades ao mesmo tempo: Epistemologia Genética — o que me permitiu ser psicólogo depois, justamente em Genebra, quando Piaget ensinava ainda — e Letras e Filosofia. O saber me seduziu poderosamente, e aquilo me pegou. Bem, depois entrei na psicanálise e tudo foi andando. Mas a sensação de que estava deixando para trás o que eu realmente teria gostado de fazer desde sempre… Se não tivesse vindo ao Brasil, nunca teria voltado a escrever ficção.
• Um conto de amor foi o primeiro livro de ficção encerrado? O primeiro romance foi em português, então?
Um conto de amor foi escrito em inglês e em português. Tem outro livro que escrevi antes de ir pra faculdade, aos 18 anos, acho. Em italiano, que não foi publicado nunca. Acho que é péssimo, mas não tenho coragem de relê-lo. Existe o manuscrito. É divertido o fato de ter encontrado muito tempo atrás. Poderia ter se perdido na venda da minha biblioteca, mas sobreviveu.
• E você mesmo traduziu?
Sim, mas nunca é uma tradução. É uma reescrita em outra língua.
• E hoje em dia, para escrever, o português sai naturalmente? Eventualmente você tem que fazer desvios por outros idiomas?
Não, não. Mesmo depois, teoria eu escrevia em francês porque toda minha formação universitária foi em francês. Para mim, o inglês, paradoxalmente, é uma língua que continuo lendo mais do que em qualquer outra, provavelmente. É a língua dos meus grandes amores literários e leio muito ensaio em inglês. Mas não é uma língua culta para mim. A língua culta para mim é o francês.
• E o português?
O português, hoje, é a língua que habito. A língua com a qual escrevo e me sinto muito em casa. Eu tive uma simpatia imediata pela língua portuguesa. Quando cheguei ao Brasil, não falava uma palavra. Eu falava espanhol que agora não falo mais, aliás, foi totalmente devorado pelo português. Por várias coisas, adorei o português: o futuro do subjuntivo que não existia em nenhuma das línguas que eu falava. Tem várias pequenas coisas na língua portuguesa que me seduziram.
“Ficção introduz a gente num mundo de incertezas, em que, quase sempre, a gente acaba sendo o único responsável pelas escolhas morais que a gente faz.”
• Como a escrita agiu nesse processo de conhecer o país? Qual a noção de casa? É o Brasil?
Não sei. Até pouco tempo atrás, eu teria dito que casa é Veneza, que nem era realmente o lugar de residência, era a casa de fim de semana da minha infância. Na verdade, a escrita que transformou o Brasil na minha casa, de alguma forma. Não só a escrita de Hello, Brasil!, as crônicas tiveram um pouco essa função também, mesmo quando eu escrevia dos Estados Unidos, porque, justamente, eu as escrevia para os leitores daqui. Tenho uma tremenda antipatia por tudo que é ou implica uma identidade de grupo. Tenho dois passaportes, poderia ter cinco e adoraria não ter nenhum. Então, dizer que um país ou uma nação é a minha casa… não, não. Ultimamente estava pensando sobre que destino dar às minhas cinzas. Sei que é um pouco tétrico, mas, enfim, estava preparando uma lista de lugares e reservando um dinheiro para que alguém possa viajar e depositar um pouquinho em cada um desses lugares do mundo. Me parece mais adequado.