Barulho, algazarra, alvoroço, estrondo — esses substantivos são muito usados quando o assunto é o cenário atual. Nosso mundo tagarela demais, é muito blablablá. Na televisão, na imprensa, nas redes sociais, na universidade, em toda a parte.
Mas será que essa algaravia é mesmo exclusiva apenas de nosso tempo interconectado? Certas evidências afirmam que não. A arte e a literatura provam que esse fuzuê é característico de todos os lugares e épocas, não é uma exclusividade da sociedade informatizada.
Nós, humanos, gostamos muito de falar, declamar, debater, cantar, dançar etc. Então, onde há um grupo de pessoas — pequeno, médio ou grande, tanto faz — há artistas e escritores fazendo barulho, algazarra, alvoroço, estrondo.
A algaravia de hoje, impulsionada pelos meios eletrônicos de comunicação, não é sequer maior, proporcionalmente considerando, que a algaravia do período da Ditadura Militar (1964-1984), em que muitos modos de censura criativa foram impostos à sociedade.
Nos anos 60 e 70, a Jovem Guarda e o Tropicalismo fizeram um barulho danado nos palcos e na tevê, ao lado da vertente musical mais engajada politicamente. Roberto e Erasmo Carlos, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil, Os Mutantes, Raul Seixas e muitos outros igualmente talentosos eletrizaram o Sul Maravilha. Suas canções transgressoras iniciaram um novo capítulo na história da cultura de massa tupiniquim.
Ao mesmo tempo, Zé Celso Martinez Corrêa — à frente do Teatro Oficina — e Augusto Boal — com a teoria e a prática do Teatro do Oprimido — injetaram subversão na dramaturgia da época, propondo, contra a passiva poética do conforto, uma ativa poética do confronto.
Na cena literária a situação não foi menos ruidosa. O engajamento social do Centro Popular de Cultura chocou-se contra o esteticismo formalista do Concretismo, e ambos se chocaram contra a divergência ideológica da Poesia-Práxis, do Poema-Processo e da Poesia Marginal (também chamada de Geração Mimeógrafo).
Um ótimo passeio por esse campo de batalha sociocultural, cheio de explosões líricas e heróis antibelicistas, é o livro Impressões de viagem, da crítica Heloísa Buarque de Hollanda. A viagem citada no título atravessa sem pressa as principais tendências dos anos 60 e 70. Completa a análise da autora uma deliciosa minicoleção de manifestos e textos doutrinários — são a palavra-de-ordem-ou-desordem dos movimentos estudados.
Entre os documentos reproduzidos há uma longa carta-bomba de Zé Celso Martinez Corrêa endereçada aos críticos de teatro mais conservadores. Em minha opinião, nesse desabafo libertário e libertador — numa palavra: xamânico — o diretor do Teatro Oficina extrapola o âmbito teatral, defendendo a invenção em todas as esferas da cultura. Sua análise é implacável:
O novo aparece e suscita imediatamente o conflito, cresce a energia espontânea de reconhecimento do novo, ao mesmo tempo em que se rearmam e se ouriçam os superegos velhos, tomados de uma coragem defensiva e agônica.
(…)
A mutação é muito difícil, de uma consciência aprisionada e aprisionadora, ela imediatamente identificará no novo a bruxaria, o desconhecido, o irracional, pois o entendimento do novo implica sempre na construção de uma razão nova, numa percepção aberta, viajante, pesquisadora, participante, disposta a tudo, a erros e a desvios de caminho.
(…)
O corpo individual e coletivo conhece. Ao contrário dos que estão por fora, como o Anatol Rosenfeld, o transe é um fator de conhecimento e aprofundamento e revelação de verdades sociais ainda não estabelecidas. Não adianta fazer ruído com os dedos para despertar os que estão em transe, o transe é um estado de superconsciência e super-razão, apesar do racionalismo, do bom senso careta querer vê-lo como fuga. Trata-se de descobrir as verdades sociais em gestação, ainda não reveladas.
Nos anos 60 e 70, o debate ramificava-se, se desdobrando em cada bar, em cada festa. Essa rede social ancestral era sustentada por encontros, cartas, telefonemas e principalmente pela imprensa alternativa. O choque de forças foi intenso, desbundante. A algazarra também. Desse combate de linguagens surgiram novos modos de expressão musical, dramática e poética, a maioria vigente até hoje.
Olhando pra trás, sem nos preocuparmos com a fronteira teórica que separava as muitas manifestações, sem classificar nem hierarquizar as tribos em confronto, encontramos mais de uma centena de nomes e obras que definiram — no grito, com estardalhaço — a virada de século artística e literária. Nomes e obras que transcenderam o momento e continuam aí, vivos, gritantes, gerando descendentes.
Barulho, algazarra, alvoroço, estrondo. Enquanto escrevo, com o canto do olho acalmo as lombadas ruidosas na estante: Chongas, de Eduardo Alves da Costa, Galáxias, de Haroldo de Campos, Fluxo-floema, de Hilda Hilst, PanAmérica, de José Agrippino de Paula, Catatau, de Paulo Leminski — santíssima prosa. A vida não seria tão viva sem essas substâncias alucinógenas da melhor procedência.
Numa escolha mais afetiva que historiográfica ou pedagógica, são dessa época uma dúzia de poemas que marcaram muito minha juventude: Fama e fortuna, de Ana Cristina César, Cidade, de Augusto de Campos, Protopoema, de Cacaso, Ópera de pássaros, de Chacal, Revolução, de Chico Alvim, Beba coca-cola, de Décio Pignatari, Não há vagas, de Ferreira Gullar, Plantio, de Mário Chamie, Na quinta-feira, de Nicolas Behr, Tarde, de Ledusha, Olhar paralisador nº 91, de Leminski, e Visão 1961, de Roberto Piva. Sem esquecer de No caminho, com Maiakovski, de Eduardo Alves da Costa, forte o suficiente pra aumentar esta e qualquer outra lista parecida.
Releio frequentemente esses fluxos da fantasia poética. Pelo que valem, mas também por sua capacidade de me levar de volta ao passado. Quem disse que a nostalgia não é uma grande força espiritual e política? O lúcido poema de Eduardo Alves da Costa — atribuído durante décadas ao nome mais celebrado da vanguarda russa —, esse poema habita meus pensamentos também há décadas.
Seus versos mais intensos ficaram muito tempo colados na parede do escritório, perto de minha máquina de escrever, primeiro, depois do computador:
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores.
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
Esse trecho já foi declamado até em novela da rede Globo, pela personagem de Christiane Torloni, em Mulheres apaixonadas. Foi quando o país inteiro ficou conhecendo a verdadeira autoria do poema.
A partir de uma conversa com o autor, o jornalista Luís Antônio Giron escreveu uma saborosa crônica, intitulada O homem que virou Maiakovski.
Naquele tempo, como muito tempo depois, o poema foi atribuído ao escritor de vanguarda soviético Vladimir Maiakovski (1893-1930). Os manifestantes imaginavam declamar uma tradução anônima de algum militante comunista. Na realidade, como revelariam reportagens nos quarenta e quatro anos seguintes, o autor do poema era um brasileiro: Eduardo Alves da Costa. Pouca gente acreditou nisso. Muitos preferiram acreditar que Costa não passava do tal tradutor comunista. A versão parecia mais bonita que o fato, e o poema — afinal — soava bom demais para ser brasileiro. Foi assim que Costa virou Maiakovski.
Ainda hoje, passados cinquenta anos, há pôsteres com traduções de No caminho, com Maiakovski decorando paredes de cafés de Londres, Paris e Praga. Tornou-se um dos poemas brasileiros mais conhecidos no mundo. Comicamente, há críticos que afirmam tratar-se do poema mais importante da vanguarda soviética. Até hoje, Maiakovski não foi totalmente desmascarado.
(Revista Época, 11 de julho de 2014)